domingo, 3 de maio de 2009

ondulação



Olho daqui para um barco que está no alto mar
E penso, e sinto, o que será ser barco, e corda, e marinheiro,
E estar assim tão longe deste meu mundo, no meio
Do sal e do sol, no meio de odores e de ventos estranhos.

Uma onda inebriante azul percorre-me as narinas
Enquanto olho de novo para as linhas dos livros.
Este entrançado que tenho de seguir, de perscrutar.
É um mar, um alto mar este, em que também busco.

E volto a mirar lá fora os prédios, e a ondulação
Dos grandes lençóis ao vento, a secar. E penso, e sinto,
Como deverá ser-se lençol, assim pendurado num abismo,
Entregue aos caprichos do vento e do sol, balouçando.

Esta ondulação dos panos grandes é a ondulação da manhã,
O único sinal do tempo no meio de prédios silenciosos,
Aparentemente desertados de todos os seus habitantes,
Que fugiram para o sol, o mar, as estradas, eu sei lá.

Só ficaram as fachadas, as janelas, as gaivotas que vêm e vão.
E eu volto a olhar para os meus livros, a retomar o fio
Da meada, a repor o sentido que eu próprio inventei
Para esta manhã onde os pássaros cantam como outrora.

Onde as árvores ondulam como sempre. Onde ao longe
Uma onda acaba de vir bater em terra. Há quanto tempo
Venho assistir a isto tudo sempre espantado, e interrogo
As janelas, as ausências, as ondulações, os livros.

O destino que me coube. O que estará a gerar-se para amanhã.
Quando voltarás da rua, trazendo à sala os bichos todos
E as novidades, as compras, o lá-fora de que me vedei
Para tecer o texto infindo, fazer avançar o barco na ondulação.

Que mistério encerram estas manhãs e esta paisagem esperada.

Tudo palavras. Tudo linhas que teço. Há apenas uma ondulação.
Um barco que pousa, como se espera, no alto-mar. E só uma ou outra
Prega, que ondula de um verso para o seguinte, e me pergunta
Como se caísse lentamente por uma fachada abaixo, qualquer coisa

Que tenho de escrever, porque não sei, não me lembro do que é.



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Pintura: René Magritte
Texto: VOJ 2009

1 comentário:

Gonçalo Leite Velho disse...

para os que estão na margem
navega no horizonte,
para os outros navegantes
presos como que numa rede invisivel dispersa pelo oceano,
surge essa candeia,
que no meio do oceano
toma a forma e esperança
de um farol.