"A Evolução do Darwinismo", livro (ed. Fim de Século, Lisboa, 2009) do Prof. António Bracinha Vieira, foi hoje apresentado no Porto (pelo Prof. Paulo Gama, etólogo da Unversidade de Coimbra), numa sessão organizada pela Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (Centro Unesco, R. José Falcão), como se anunciou neste blogue. Antes, o Prof. Bracinha Vieira (médico, psiquiatra, professor de Paleontologia Humana aposentado da UNL e escritor) tinha feito a sua notável conferência intitulada O QUE É O HOMEM? ANOTAÇÕES SOBRE A FRONTEIRA E OS LIMITES DA HUMANIDADE. Não poderia haver tema mais interessante, no ano Darwin e no momento em que se estão a publicar tantas reflexões sobre esta cesura fundamental da nossa tradição filosófica que é a da natureza e da cultura, do homem e do animal.
Como disse o Prof. Paulo Gama, ninguém hoje se lembraria de pôr em causa o movimento de translação da Terra, como também ninguém deveria pôr em causa a evolução da espécies: são factos, realidades assentes. Sem dúvida, de um ponto de vista científico isso é indesmentível, como é indesmentível o facto de Darwin ter invertido completamente, no séc. XIX, a nossa maneira de ver o mundo, na medida em que, com disse o mesmo Professor, introduziu três novidades:
1) as espécies são constituidas não por tipos mas por organismos diferentes e variados, isto é, populações;
2) há na "natureza" uma ausência de finalismo, de teleologia;
3) a origem do homem é uma consequência da evolução das espécies.
Tudo isto é inquestionável. Também a palestra do Prof. Bracinha Vieira foi incrivelmente bem fundamentada, como aliás é de esperar da sua competência e capacidade interdisciplinar.
A questão porém que resta, e não é de modo algum uma interpelação ao que fica dito no sentido de lhe diminuir o alcance, mas um acrescentamento, uma lembrança, é que por muito que perfilhemos um monismo, isto é, uma continuidade entre o homem e a natureza, des-sacralizando assim a nossa própria condição como "excepcional", isso não explica obviamente as características específicas da vivência da humanidade (como de qualquer outra espécie, aliás).
Ora, se por exemplo as baleias se pudessem reunir em assembleias destas, e discutir a sua condição, teriam de ter um darwin delas, ou seja, dariam importância simultaneamente à teoria geral que fez delas baleias, e muito especialmente à sua condição particular, como é óbvio.
Acontece que somos nós, humanos, a pormos o problema. E isso, assumidamente subjectivo e particular, é para nós vital, seres humanos. Qualquer que seja a nossa origem, explicada cientificamente (do lado das respostas) fica sempre felizmente em aberto o debate sobre o nosso sentido, o sentido de sermos humanos, que está do lado das perguntas, ou seja, do lado da filosofia, do lado do questionamento íntimo e inevitável. A filosofia não é reduzida progressivamente pela ciência: ambas se nutrem mutuamente. E o facto de estarmos descentrados e assim "reduzidos à nossa insignificância", não quer dizer - nem nenhum dos intervenientes hoje o sugeriu sequer - que os nossos problemas estejam resolvidos, ou que o nosso futuro seja previsível. Por um jogo de acasos e de necessidades, estamos aqui, produziu-se um Darwin, produziram-se as nossas modestas pessoas, e temos de nos haver com esta aporia, que é: e agora? Se os outros animais, cada um ao seu modo, também a põem ou vivenciam, isso é lá com eles, passe a expressão redutora. É como homens que aqui estamos, que nos entendemos pela linguagem articulada e que sabemos que vamos morrer, que temos de nos haver, existamos como humanos há 200.000 ou há 600.000 anos já.
Por isso: viva Darwin, e vivamos nós o suficiente para continuar a pensá-lo e, com a ajuda dele e de muitos outros, continuar a pensar. Para além deles todos, se formos capazes. Em ciência não há vozes definitivas, nem deuses. Obviamente.
E um outro aspecto interessante seria agora também desenvolver, na linha de Foucault, em que condições se instala a biologia (de que a teoria da selecção natural e da evolução das espécies é eixo central) como ciência no século XIX, e em que medida isso está ligado ao conceito de biopoder moderno desenvolvido por aquele autor, isto é, um novo tipo de poder que se aplica pela primeira vez a toda a população sem excepção, e que se dirige à "vida nua" (vida como zôê dos gregos, isto é, na sua pura realidade de subsistência e reprodução) no dizer de Agamben. As ligações com o "quadro dos possíveis pensáveis", no qual surgem a biologia e as ciências humanas, e a sua inextricável relação com a "politização da vida nua como tal" (Agamben) são temas fascinantes, que Foucault e, na sua esteira, Agamben, nos trouxeram. Ou seja: por que surge Darwin historicamente, e a sua teoria, precisamente quando surgem? E a que modificações estruturais do pensamento e do poder estão ligados, e vêm reforçar? É isso que é importante questionar hoje, em que uma certa biologia prossegue a sua tarefa de principal aliada de um certo (e em certos casos problemático, para o dizer softly) biopoder.
Como disse o Prof. Paulo Gama, ninguém hoje se lembraria de pôr em causa o movimento de translação da Terra, como também ninguém deveria pôr em causa a evolução da espécies: são factos, realidades assentes. Sem dúvida, de um ponto de vista científico isso é indesmentível, como é indesmentível o facto de Darwin ter invertido completamente, no séc. XIX, a nossa maneira de ver o mundo, na medida em que, com disse o mesmo Professor, introduziu três novidades:
1) as espécies são constituidas não por tipos mas por organismos diferentes e variados, isto é, populações;
2) há na "natureza" uma ausência de finalismo, de teleologia;
3) a origem do homem é uma consequência da evolução das espécies.
Tudo isto é inquestionável. Também a palestra do Prof. Bracinha Vieira foi incrivelmente bem fundamentada, como aliás é de esperar da sua competência e capacidade interdisciplinar.
A questão porém que resta, e não é de modo algum uma interpelação ao que fica dito no sentido de lhe diminuir o alcance, mas um acrescentamento, uma lembrança, é que por muito que perfilhemos um monismo, isto é, uma continuidade entre o homem e a natureza, des-sacralizando assim a nossa própria condição como "excepcional", isso não explica obviamente as características específicas da vivência da humanidade (como de qualquer outra espécie, aliás).
Ora, se por exemplo as baleias se pudessem reunir em assembleias destas, e discutir a sua condição, teriam de ter um darwin delas, ou seja, dariam importância simultaneamente à teoria geral que fez delas baleias, e muito especialmente à sua condição particular, como é óbvio.
Acontece que somos nós, humanos, a pormos o problema. E isso, assumidamente subjectivo e particular, é para nós vital, seres humanos. Qualquer que seja a nossa origem, explicada cientificamente (do lado das respostas) fica sempre felizmente em aberto o debate sobre o nosso sentido, o sentido de sermos humanos, que está do lado das perguntas, ou seja, do lado da filosofia, do lado do questionamento íntimo e inevitável. A filosofia não é reduzida progressivamente pela ciência: ambas se nutrem mutuamente. E o facto de estarmos descentrados e assim "reduzidos à nossa insignificância", não quer dizer - nem nenhum dos intervenientes hoje o sugeriu sequer - que os nossos problemas estejam resolvidos, ou que o nosso futuro seja previsível. Por um jogo de acasos e de necessidades, estamos aqui, produziu-se um Darwin, produziram-se as nossas modestas pessoas, e temos de nos haver com esta aporia, que é: e agora? Se os outros animais, cada um ao seu modo, também a põem ou vivenciam, isso é lá com eles, passe a expressão redutora. É como homens que aqui estamos, que nos entendemos pela linguagem articulada e que sabemos que vamos morrer, que temos de nos haver, existamos como humanos há 200.000 ou há 600.000 anos já.
Por isso: viva Darwin, e vivamos nós o suficiente para continuar a pensá-lo e, com a ajuda dele e de muitos outros, continuar a pensar. Para além deles todos, se formos capazes. Em ciência não há vozes definitivas, nem deuses. Obviamente.
E um outro aspecto interessante seria agora também desenvolver, na linha de Foucault, em que condições se instala a biologia (de que a teoria da selecção natural e da evolução das espécies é eixo central) como ciência no século XIX, e em que medida isso está ligado ao conceito de biopoder moderno desenvolvido por aquele autor, isto é, um novo tipo de poder que se aplica pela primeira vez a toda a população sem excepção, e que se dirige à "vida nua" (vida como zôê dos gregos, isto é, na sua pura realidade de subsistência e reprodução) no dizer de Agamben. As ligações com o "quadro dos possíveis pensáveis", no qual surgem a biologia e as ciências humanas, e a sua inextricável relação com a "politização da vida nua como tal" (Agamben) são temas fascinantes, que Foucault e, na sua esteira, Agamben, nos trouxeram. Ou seja: por que surge Darwin historicamente, e a sua teoria, precisamente quando surgem? E a que modificações estruturais do pensamento e do poder estão ligados, e vêm reforçar? É isso que é importante questionar hoje, em que uma certa biologia prossegue a sua tarefa de principal aliada de um certo (e em certos casos problemático, para o dizer softly) biopoder.
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