quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Medalha de Ouro da FLUP - 30.XI.2012






Atribuída no dia 30 de Novembro passado a um dos autores deste blogue.
Obrigado, FLUP, pelo que me deste e continuas a dar!
Vítor Oliveira Jorge



Dicionário de Arqueologia Portuguesa, 2012


Dei hoje uma primeira vista de olhos ao "Dicionário de Arqueologia Portuguesa" recentemente editado, e dirigido por dois ilustres colegas: Profs. Jorge de Alarcão (Coimbra) e Mário Barroca (Porto). A edição é da Livraria Figueirinhas, Porto. Este exemplar foi-me oferecido pelo Mário Barroca no dia 30 de Novembro, com uma dedicatória muito gentil e amiga, que muito agradeço. Claro que com tais coordenadores tinha de sair obra de qualidade, e útil. E é-o sobretudo para a época romana e medieval.
É sempre fácil apontar defeitos ou fazer elogios ocos ao que os outros fazem, e eu (que estive empenhado numa obra desta natureza durante mais de um ano, a qual, como os coordenadores deste livro sabem - porque nela colaboravam e me deram todo o apoio - só não foi para a frente porque muitos dos nossos outros colaboradores nunca enviaram as suas "entradas" ou "verbetes") estou bem consciente disso. Não quero pois apontar defeitos, ou fazer elogios sobre temas específicos, reservando para mais tarde uma reflexão mais detalhada. Neste tipo de obras cada um tende a ser muito subjectivo e parcial na sua apreciação. O que é importante notar é, para mim, desde já: pena que não haja um único arqueólogo da Universidade do Porto (para além de MB, obviamente) que contribua para o Dicionário. Pode apagar-se assim de certo modo parte importante do contributo de uma universidade como a nossa?...Na área da Pré-história, predomina uma visão que tem todo o direito a existir, obviamente, mas já não é a mais profícua, a meu ver. Há um claro défice no que toca a problemáticas teóricas, que tão centrais são, desde há décadas, em arqueologia (veja-se a importância do resultado dos TAGs britânicos, que em boa hora foram iniciados há décadas pelo Prof. Colin Renfrew, e outros, e mudaram a face das problemáticas arqueológicas). Ainda se discutem problemáticas que parecem pertencer à história da arqueologia, como a da Revolução dos Produtos Secundários, uma invenção do childeano A. Sherratt, que tão bem conheci.
Para só me referir a um dos sítios em que a equipa a que pertenço mais se tem empenhado, o Castanheiro do Vento, aquilo que escreve o meu colega João Luís Cardoso (Lisboa) não espelha minimamente o conhecimento da problemática do sítio e da sua complexidade, exposta em dezenas de trabalhos colectivos, publicados em todos os tipos de suportes, desde a revista local de Foz Côa (Côavisão) até publicações nacionais e internacionais. Desconhecer isso, ou evitar discutir isso, mesmo nas entradas de um dicionário que têm de ser sucintas, é pena.
Dito isto, saúdo os coordenadores, pois sei bem o trabalho que dá fazer uma obra destas. Até uma próxima intervenção minha mais detalhada. Bem hajam pelo esforço. Parabéns!:)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Um texto de 2005




Castanheiro do Vento, Vila Nova de Foz Côa, 2009
Um "bastião" (estrutura semi-circular) desta colina monumentalizada calcolítica (3º milénio a. C.)



ESPAÇO, MEIO, PAISAGEM, TERRITÓRIO, REGIÃO E LUGAR NA EXPERIÊNCIA DE UM ARQUEÓLOGO: ALGUNS CONTRIBUTOS REFLEXIVOS
por Vitor Oliveira Jorge
Prof. de Arqueología – Depto. de Ciencias e Técnicas do Patrimonio da Universidade do Porto
 
para o(a) leitor(a), que de certeza é você
Introdução
 
Um novo “estilo” de arqueólogos começou a aparecer nos útimos tempos nalguns países – os principais exemplos que conheço são britânicos. São escritores, pensadores da arqueologia, pessoas que se referem a sítios e questões arqueológicas (por vezes de forma muito detalhada), e escreveram em certos casos livros de grande interesse. Porém, nunca realizaram uma escavação como investigação continuada, com princípio, meio e fim.
Se fizeram “trabalho de campo”, ele foi sobretudo constituído por “prospecções”, esparsas ou sistemáticas, visitas ao terreno e seus “acidentes”, num tipo de experiência muito peculiar: uma espécie de deambulação meditativa ou reflexiva sobre as paisagens e monumentos, algo que poderíamos designar em termos orçamentais “arqueologia light”, barata a montante, na produção (botas, chapéu, caderno de notas, máquina fotográfica) e por vezes rentável a juzante, na venda (obras de referência disponíveis no mercado internacional, em inglês).
Claro que há certos domínios da “arqueologia” (aqueles sobre os quais se pode dissertar sem fazer escavações) que se prestam mais a este estilo do que outros. Mas é sobretudo uma questão de imaginação e de inteligência.
Isto não significa que esses autores não sejam sérios, honestos nas suas intenções de acrescentar saber, motivados para questões fundamentais, que não saibam muito, que não produzam reflexões de grande interesse, nem é, da minha parte, um “piscar de olhos” aos arqueólogos “hard”, aqueles que escavam “no duro” ou estudam colecções infindas de artefactos, produzindo obras de tomo, imparáveis “ratos” de campo ou de biblioteca!
A arqueologia é hoje uma complexa nebulosa de contornos indefinidos, como qualquer saber ou actividade. Normalmente, a maturidade de um “campo” não se mede hoje por fronteiras ou características rígidas, mas pelo seu grau de disseminação (pela forma como impregna e inspira profissões, práticas, saberes – as procuras de outros), bem como pela sua “autoridade” (a sua força política para agir como fonte de poder, no momento das decisões).
A arqueologia nem é propriedade de “profissionais”, nem é apenas necessariamente caracterizável por essa suposta actividade essencial, nuclear, identitária, quase ritual de iniciação, que seria a “escavação”. Há muita gente a escavar, ou mesmo a julgar que é arqueólogo, e que é capaz de não ter uma ideia precisa do que pretende fazer na sua vida, possuindo tão só o humano e compreensível desejo de receber o salário no fim do mês. Enfim, as coisas não estão fáceis para promover a investigação, em qualquer das suas modalidades; e sem investigação (procura demorada e titubeante, feita de avanços, paragens, recuos, um caminho sempre problemático) a arqueologia, de certeza, simplesmente não é digna de ser considerada como um saber, ficando reduzida a uma simples tecnologia descarnada de motivação e de objectivos. Uma aplicação boçal e rotineira de regras simples.
 
Que significa a experiência de um – acentuo um - arqueólogo? Algo de bastante específico, que não é generalizável a outros “colegas de profissão” senão em termos muito abstractos. Por isso, este texto refere-se à experiência de quem o escreve, isto é, toma-a como única base segura para pensar – como acontece com qualquer outro investigador. Por experiência entendo algo de muito abrangente, que envolve a pessoa no seu todo, e que implica um permanente jogo entre o seu passado e o seu presente, a sua disposição psíquica e anímica. Nós pensamos com o corpo todo, e no momento de pensar (idealmente, confundido com cada momento da vida) mobilizamos a totalidade do que somos, ou supomos ser. As melhores ideias, numa pessoa criativa, imaginativa (isto é, inteligente) surgem quando menos se espera, não por milagre ou inspiração romântica, mas por concreção súbita de todo um trabalho inconsciente, que por vezes aflora ao campo da consciência e se perfila como interessante, como uma ideia a explorar, a desenvolver pelo trabalho subsequente.
Um arqueólogo, como qualquer outro investigador, precisa de dispor de conceitos claros. Mesmo que discutíveis, corrigíveis por outros. Esse “índice” ou “thesaurus” faz penosamente falta, mas a sua ausência revela ainda o grau de imaturidade da disciplina, a sua dependência da importação de noções de outras ciências (por vezes já obsoletas na origem, como acontecia dantes – e certamente ainda ocorrerá - com certos países importadores, que absorviam as obsolescências dos centros produtores/inovadores). Na economia política da interdisciplinaridade, a arqueologia é largamente deficitária, desequilibrada: importa muito, e exporta pouco, a não ser a metáfora da profundidade (relacionada com a “escavação”, e a descoberta de realidades ocultas) e suas derivadas. Não confundir, claro, com toda uma procura do maravilhoso, originário, mítico, etc., em que a “arqueologia” é largamente utilizada como produto de consumo. Com frequência, pessoas doutoradas ainda confundem o fascínio da arqueologia com o exótico das viagens e o fascínio das descobertas de “tesouros” ; por vezes pergunto-me como conseguem conciliar essa ideia (ou impressão pouco trabalhada, pouco informada) com um mínimo de consideração intelectual por nós, arqueólogos.
Uma enciclopédia ou dicionário de arqueologia é em geral ainda hoje, no aspecto conceptual (quando se sai da mera identificação/descrição de coisas), uma grelha desconexa, ou manta de retalhos, de noções mais ou menos mal adaptadas de outras áreas do conhecimento, ou de noções próprias pouco amadurecidas. É evidente que se imporia fazer uma boa obra desse género, que seria uma das traves-mestras da nossa disciplina.
Perdidas as “tabelas” de referência em que a arqueologia processual, neopositivista, acreditou (e que, pela sua simplicidade, alguns ironicamente caricaturizaram como “leis de Mickey Mouse) a arqueologia está hoje perante um desafio muito grande neste domínio, devendo partir, a meu ver, da teorização da sua própria praxis, entendendo já dialogicamente essa praxis como uma teoria em acção.
Neste curto texto pretendo apenas abordar de forma sucinta e pessoal alguns conceitos que reputo importantes. Os textos curtos são o “output” possível de uma actividade universitária pesada, onde as aulas pouco estimulantes e a burocracia sem tréguas funcionam como máquinas para não pensar (o que é paradoxal num organismo vocacionado para o saber). E sobretudo para o pensamento isolado, perante a inércia/comodismo de uns, o silêncio de outros, o fechar-se na sua concha de ainda outros, etc. Muitas vezes estas várias tipologias de indivíduos são inamovíveis; outras vezes movem-se apenas para criticar aqueles que, apesar de tudo, nestas condições mais que adversas, tentam pensar. Temos de viver com tudo isso – são factores “a orçamentar” na economia da nossa vida entendida como um projecto. Temos de contar permanentemente com o “ruído” dos que parece que adorariam que não existíssemos, e, nada podendo fazer contra a nossa existência, parece que adorariam que ela se pautasse pela inércia que permitiria que o pouco que fazem sobressaisse um pouco. Naturalmente que é para os restantes que escrevo, na esperança sempre renovada do diálogo e da interacção comunicativa.
Vamos então breve e esquematicamente, e de um ponto de muito pessoal, aos conceitos enunciados no título do texto.
Antes ainda, porém, é de advertir o leitor de que quase tudo o que vou dizer se poderia equacionar sob a rubrica “espaço”, como muitos antropólogos, sociólogos, etc., não deixaram de acentuar. A bibliografia sobre o assunto é vastíssima, quase tendente a baixar os braços e nada escrever. Mas aqui quero deixar – esperando que isso não pareça pretensão excessiva - um esquema meu, não tomando “espaço” nessa acepção tão geral, o que talvez permita distinguir melhor, e operacionalizar, uma série de conceitos.
 
 
Espaço

É uma realidade extensa, mensurável, subdivisível, neutra, e, na sua versão comum, euclidiana, e que usamos no nosso viver quotidiano, enquadrável por três coordenadas. Espaço é também, na sociedade mercantil, uma mercadoria, que se mede (compra e vende) por m2. Uma realidade que se não traduz apenas ao nível do chão, uma vez que a construção em altura permite virtualmente a multiplicação do “espaço” assim mercantilizado.
Espaço e tempo dialogam entre si, no sentido de que eu posso “espacializar o tempo” ou “temporalizar o espaço”, o que vai dar praticamente ao mesmo, apenas com uma mudança de tónica (marcando o espaço com um conjunto de “sinais” que apontem para uma rítmica, para formas de referência ao devir, ou ao passado e futuro, qualquer que seja o tipo de tempo considerado; de facto, enquanto o espaço é materializável nas três dimensões do vivido, o tempo é-o apenas em aparelhos de medida, a começar pelos vulgares relógios).
Espaço, assim desmaterializado, digamos, abstraído, é uma ideia típica sobretudo da sociedade ocidental e, em particular, contemporânea. Através de inúmeras invenções (os instrumentos de óptica, a perspectiva, o cinema, a fotografia, a televisão, a comunicação por computador) esta sociedade procurou primeiro um “espaço realista”, objectivo, coordenado, em completo controlo por parte do observador, e hoje cada vez mais nos mergulha em espaços literalmente virtuais, onde é difícil saber onde e quando nos encontramos. Há uma in-diferenciação entre realidade observada e sujeito observador, uma espécie de proliferação de espaços/tempos dentro do aparente espaço/tempo comum da quotidianeidade.
Ou seja, ao mesmo tempo que “objectivava” o espaço, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande (a ponto de escapar à imaginação corrente e de ter de ser expresso em fórmulas matemáticas) a nossa cultura também o desmaterializou, o transformou num espaço meta-físico, fazendo-nos mergulhar constantemente em espaços/tempos muito diversificados. O positivismo deu lugar à relatividade e à incerteza. O espaço é uma mercadoria, certamente, mas é também uma pletora de metáforas: até para se vender eficazmente, seja como produto imobiliário (ocupação permanente), seja como produto turístico (uso efémero), seja como produto imaginativo (espaço virtual, ciber-realidade). Quando compro uma casa, uma viagem, uma experiência, nesta economia dos signos em que vivemos, estou cada vez mais a comprar espaços/tempos imaginários, retrabalhados pela imagética publicitária em que a minha própria imagética pessoal vive mergulhada, como consumidor.
A palavra “espaço” não diria nada a um aborígene australiano, a um “índio” americano, ou a um ameríndio amazónico, antes de contactar com a nossa cultura. Fazendo corpo com a terra, sentindo-se elementos da terra como quaisquer outros, muitas comunidades que encontrámos pelo mundo fora tiveram particular dificuldade em perceber a ocupação, a utilização agressiva, a demarcação em propriedades, a exploração de algo que para eles não era uma entidade inanimada e extensa, a terra, mas uma espécie de ser parental envolvente, ontológico, que a todos produziu e que a todos há-de sobreviver. A nossa chegada maciva foi vista, naturalmente, como uma profanação e uma falta de respeito por valores que, na altura, a maior parte dos “descobridores” e “exploradores” não estavam interessados sequer em considerar como possíveis. O que viram foi uma natureza selvagem, virgem, e uma série de habitantes que viviam como animais – um espaço, precisamente, livre e apto a colonizar pelos nossos valores ideológico-económicos.
Às vezes falamos do espaço em que se desenrola a acção humana como se fosse um cenário, ou um palco. As metáforas teatrais, performativas, são úteis para a arqueologia, porque todas apontam para uma experiência do corpo e chamam a atenção para o carácter “encenado” das nossas representações do passado. De facto, o passado é hoje, é uma construção nossa, a partir de materiais recolhidos, que temos de trazer à colação, e aos quais temos de dar um sentido para os nosso contemporâneos.
Porém, não nos deixemos enganar pelas metáforas. Para os homens e mulheres da pré-história, como para muitas das comunidades estudadas pela antropologia, não tem sentido distinguir seres humanos e meio envolvente como se fossem realidades distintas, sendo o meio relativamente estável (cenário fixo, ou semi-fixo) e a acção humana por definição dinâmica (cenário semi-fixo, ou móvel). Essa é a nossa visão de ocidentais, que por um esforço de objectividade temos de descartar. Porque se o “processo do conhecimento” é histórico, os episódios dessa história têm muito mais a ver com descartes de interpretações anteriores, tornadas inverosímeis, do que com simples acumulações de “dados”, como queriam as várias modalidades de positismo.
 
 
Meio
 
Meio (no sentido de meio-ambiente, ou do inglês “environment”) é o que rodeia um organismo, isto é, a realidade com a qual todo o ser vivo (incluindo o humano) tem de estabelecer trocas metabólicas para sobreviver (e, se possível, se reproduzir). Meio é pois algo que se conota com adaptação, com equilíbrio, mas uma adaptação bi-unívoca e um equilíbrio sempre (mais ou menos) instável. Isto é, os organismos transformam e fabricam “meio”, que os transforma e “fabrica” permanentemente a eles. Há uma interacção constante, muito complexa.
O meio tem diferentes escalas, conforme consideremos o local, o regional, ou o global, que em última análise é o universo todo. Vai, evidentemente, do micro ao macro. As escalas do meio em que os organismos sobrevivem têm a ver, está claro, com múltiplas formas de comportamento, mas também com questões de quantidade, como a massa de que aqueles são compostos: o “espaço vital” de um animal de grande porte não é o mesmo de uma bactéria.
À medida que pensemos em organismos com um sistema nervoso mais complexo, temos de ter em consideração que este é – certamente entre outros - um poderoso sistema adaptativo, aumentando a gama de meios em que certos organismos podem sobreviver.
A capacidade de previsão, isto é, de “pressentir” (senão mesmo de pre-figurar) o futuro é um factor decisivo, como se nota claramente no ser humano, cujo domínio do planeta e capacidade de adaptação a todos os tipos de meios (inclusivamente extra-terrestres, nas últimas décadas) resulta desta capacidade, naturalmente que muito associada à técnica e a tudo quanto a ela se conota como uma infinda colecção de “próteses do organismo”.
O conceito de adaptação, como se sabe bem, está intimamente ligado ao tempo e à previsibilidade, à capacidade de mutação, de mudança, ou seja, à noção de pré-adaptação. Idealmente, um organismo (dir-se-ia melhor, uma população) bem adaptado não é o que está apenas preparado para viver no presente, mas sobretudo para “colonizar” o futuro, antecipando-se-lhe, na medida do possível.
Aquilo a que habitualmente chamamos “cultura” (e que sabemos hoje não ser um exclusivo humano) é exactamente essa capacidade de forjar antecipações, que no homem se ligam à reflexividade muito acentuada de que dá mostras. Podíamos dizer que o ser humano criou para si mesmo um “meio” particularmente artificial, embora tenhamos de ter cuidado com esta distinção entre o natural e o cultural, entre o inato e o adquirido, entre o herdado e o socialmente construído, etc, tudo dicotomias que perpetuam “ad infinitum” a nossa obsessão ocidental de pensar correntemente por polaridades binárias, por dicotomias simples, a que somos arrastados pela lógica do discurso, do “habitus” (disposição comportamental e epistemológica incorporada, sentida como natural, porque resultante de experiências muito antigas, e em larga medida inconscientes), da tendência para não pensar reflexiva e criticamente (para não problematizar o que pensamos).
 
Paisagem
 
Paisagem é um conceito ligado à visão: é a extensão de espaço em redor que somos capazes de alcançar com os nossos olhos. É algo dinâmico, porque raramente estamos parados (a imobilidade total é divina), podendo multiplicar os pontos de vista, nem que seja em milímetros de diferença.
Como tal, é uma noção que está muito ligada à pintura, à perspectiva (capacidade de dar a ilusão de realidade, das três dimensões, em apenas duas), e depois à fotografia, etc., e de uma maneira geral à obsessão típica da nossa cultura pelo visual, em detrimento de outros sentidos. Nesse aspecto, referir uma determinada realidade como paisagem é já colocar-se na posição de sujeito contemplativo, furtado à acção, isto é, alguém que se destaca dela, e que tem a possibilidade de dispor de tempo de ócio suficiente para a contemplação.
Não admira assim que a “paisagística” esteja ligada à ascensão da burguesia moderna; o que admira é que se utilize a palavra para caracterizar realidades de populações pré-históricas ou de outras culturas que não a nossa. Um trabalhador rural tradicional jamais contemplaria uma “paisagem”, jamais nos descreveria uma paisagem, mas quando muito “uma terra”, com cuja materialidade o seu corpo activo faria um “continuum”. Claro que se eu (como faziam os primeiros etnólogos) insistir muito em que o meu informador me diga determinada coisa segundo os parâmetros que eu transporto, e me esforço em “traduzir” (tradução, palavra-chave!), esse informador acabará por me dizer o que eu quero, quanto mais não seja para se ver livre de mim e ir à sua vida. Com base neste tipo de equívocos escreveram-se muitos livros de antropologia, depois tornados “clássicos” até para os próprios “entrevistados”, que posteriormente passaram, para defender a sua “etnicidade” ou identidade construída a partir de fora (único modo, perceberam, de sobreviver num mundo globalizado) a funcionar segundo modelos que vinham nos livros. A anedota é bem conhecida…
A paisagem liga-se à disponibilidade de utilizar o trabalho dos outros como mercadoria, e de usufruir do mundo como um objecto de contemplação esteticizada, apanágio das elites, antes de ser massificada pelo turismo moderno. Ver paisagem é ter poder sobre. Naturalmente que o turismo de massas está menos ligado à contemplação tradicional, cultivada (a qual pressupunha e pressupõe distância, educação da espontaneidade, estilização de comportamentos, refinação da sensibilidade, etc.) do que à electrização de instantes de emoção “corporal” repetitiva a que se ligam os fenómenos de massa contemporâneos (concertos pop, futebol, consumo de excitantes, pornografia, novas “religiosidades”/ritualidades, e de uma maneira geral tudo o que promova a colagem à acção – situação confundida com “sentimento” - numa espécie de promessa de êxtase contínuo, ou “light non stop”).
A paisagem é pois uma “vista”, uma visão (são célebres as imagens dos trabalhos nos campos, ou das cidades vistas em gravuras ou pinturas panorâmicas), e hoje está muito ampliada pelas tecnologias da fotografia/filme, do voo, dos satélites, e da monitorização de toda essa “informação” em computador através dos modernos sucedâneos dos mapas militares: os sistemas de informação geográfica e os programas de três dimensões em computador.
A sofisticação destes meios tende a permitir a esperança de uma visão “absoluta” da paisagem (visão de Deus), quando não há nada de mais “qualitativo e circuntancial do que uma paisagem, qie fica melhor colada a outra palavra, seja ela um substantivo ou um adlectivo. De facto, a paisagem está ligada a uma forma de experiência, de acção, de subjectividade, sendo algo que está permanentemente a mudar no campo perceptivo de cada indivíduo.
Não admira, dada essa fluidez e pluralidade, que quem “vê” uma paisagem sinta assim um certo “poder” sobre ela, até porque é o seu “ponto de vista”, único e irrepetível; não espanta que quem a fotografa de algum modo tenha a ilusão de a possuir. A paisagem fotografada é um “auto-retrato” da nossa sociedade arquivística – mata o que julga querer conhecer e conservar, e dá vida a espectros (coisas que jamais existiram a não ser na objectiva fotográfica e na reacção à luz de certos produtos químicos; hoje, com o digital, as coisas alteraram-se, ou seja, o real e o virtual de algum modo sobrepuseram-se).
Certas formas de projecção de grande escala, envolvendo o “espectador”, ou certos programas de computador, mergulham-nos dentro da paisagem e con-fundem-nos com ela. Os extremos da objectividade e da subjectividade tocam-se. A tendência da nossa sociedade e suas tecnologias sofisticadas é para cada vez mais con-fundir realidade “real” e “realidade imaginária”, fazendo-nos passar para uma indiferenciação entre as duas, transformando a “vida” em desejo compulsivo de entretenimento (distração pela acção). Não se trata já de contemplar passivamente, como Narciso mirando o espelho, mas de ser actor da própria realidade contemplável – de transformar a transcendência e a imanência da imagem em circunstâncias mutuamente permutáveis.
A paisagem deixou de ser o sítio do recolhimento meditativo, para ser o lugar trepidante das emoções. A festa, dantes confundida com certos momentos do calendário, agora é a toda a hora: espécie de CNN ou de internet de banda larga, está sempre disponível. Veja-se no que se vão transformando tendencialmente as universidades: em locais da festa ou de rituais (nas suas múltiplas modalidades, desde as praxes aos doutoramentos “honoris causa”), onde apesar de tudo circulam alunos e professores (leia-se pessoas realmente interessadas no processo de aprendizagem). A cada momento o “screen-saver” do meu computador muda de paisagem.
 
 
Território
 
Território deriva de terra, terra trabalhada e vivida, o que lhe dá desde logo certo estatuto de autenticidade, telúrico, ancorado. Há aqui implícito um sentimento de vivência e de pertença, cheio de simbolismos e de afectividades. Por isso um território tem akgum tipo de fronteiras, demarcações, mesmo que lassas, uma vez que ele se prende com a identidade dos que o habitam, dos que têm de o “defender” dos intrusos. Dos que, constituindo uma parcela da terra como seu território, assim se autentificam por contraposição a outros.
Ao contrário da ideia de espaço, indiferenciado, neutro, sem qualidades, um território é algo de qualitativo, antes de estar submetido ao cadastro e à parcelarização, às leis do Estado e da economia. Um território pode não ter um centro, mas tem com certeza um conjunto de pólos de referência, uma rede de mnemónicas, uma estratificação de recordações e de histórias. Um território é, fisica e mentalmente, um palimpsesto, uma sobreposição de temporalidades.
Sabemos porém que também um território não é um conceito a-histórico, que possamos usar ingenuamente, de forma independente do contexto. Aliás, certos autores falaram de “processo de territorialização” (“ancoragem” de uma comunidade a uma zona) e em particular relativamente à pré-história, quando as populações, em suposto crescimento demográfico, teriam “enchido” o espaço disponível (pelo menos aquele que em certas alturas teria sido o mais “cobiçado”, por uma grande diversidade de motivos), criando eventuais fronteiras, centros e periferias, hiearquizações de “sítios construídos”, balizas físicas referenciais, monumentos, etc. Estabelecer-se-ia assim uma malha a partir da qual, mais tarde, as sociedades mais hierarquizadas ou estatais se teriam gerado.
O território é algo que pode variar muito em função do tipo de sociedade considerada, mais sedentária ou mais móvel, mais complexa ou menos complexa (conceito sempre muito difícil de definir). No fundo, é uma rede de percursos e de nós, ou seja, de caminhos e de pontos de fixação, que se pode considerar ao nível de uma comunidade mais ou menos ampla, ou mesmo referir-se a diversos grupos que se reclamem de identidades ou de modos de vida diferentes.
 
Região
Região é um conceito complexo, cheio de tonalidades afectivas, identitárias, com um passado e tradições comuns, supostas ou imaginárias (ou seja, as regiões estão muito conotadas com o imaginário das pessoas relativamente a sub-unidades locais dos espaços nacionais). Realidades fluidas, históricas, e contingentes, situadas, ao nível do estado-nação, entre este e a autarquia local, são de muito difícil delimitação em certos países, nomeadamente em Portugal, onde no entanto um acentuado regionalismo (incrementado pela folclorização estimualada pelo Estado Novo) foi durante muito tempo mantido pelo arcaísmo do país, pelo isolamento das populações e pela dificuldade de circulação.
A mitificação da ruralidade, quase realidade intemporal, segundo técnicas ancestrais e rendimentos muito baixos dos que trabalhavam efectivamente na terra, foi uma das obsessões de Salazar. De modo que o país não precisou, durante muito tempo, de museus em que se representasse: ele era o seu próprio museu, e os consumidores (classe média) em número e grau de escolarização que os não exigiam. Quer queria cultura desse tipo ia ao estrangeiro. De tal forma que um dos museus das “grandezas” de Portugal era o coimbrão “jardim dos pequeninos”, situado na “cidade dos lentes”, e o Museu de Arte Popular, em Lisboa (Belém) simbolizava as várias regiões do país através de um conjunto de estereótipos folclóricos: era, também, um Portugal pequenino explicado às crianças cívicas em que os portugueses se tinham tornado.
A região, como instância intermédia, de carácter administrativo, entre o poder central e as autarquias (heterogéneas por definição, sobretudo em recursos económicos) existe, segundo diferentes modelos, em quase toda a Europa, de acordo com o princípio de que é derperdício (perda de tempo e de meios) resolver questões locais ou regionais em instâncias centrais (subsidiariedade). Pelo que a descentralização do nosso país, do ponto de vista da sua administração, é inevitável, apesar dos resultados do primeiro referendo. Muitas pessoas invocavam que não estavam bem informadas, o que só demonstra a extrema iliteracia em que se encontravam, porque informação sobre o assunto não faltava para quem quisesse, de facto, facilmente obtê-la. Enfim, a análise da história local e regional tem vindo a desenvolver-se, e é possível que isso, a juntar a estudos etnológicos, geográficos, etc., ajude a estruturar um país mais articulado na sua diversidade, o que significa um país que tente ir todo a um só velocidade e com alguma harmonia inter-regional.
Para o passado pré-histórico, é difícil utilizar o conceito de região, até porque dispomos ainda de muito poucos dados para não só caracterizar os paleo-ambientes, como para estabelecer, para cada época, or modos diferenciais de vida que existiriam ao longo do território hoje português. Mas é óbvio que temos de partir da realidade presente (e toda a realidade, incluindo a arqueológica, “fala” no presente) para o passado, eliminando o que é manifestamente recente para, como escrevi noutro lado, num “strip” sucessivo da paisagem, a irmos imaginando como seria antes. Naturalmente que condicionalismos naturais, que ainda hoje determinam as realidades da vida no nosso território, deveriam igualmente ter a sua influência no passado, como as oposições norte-sul ou litoral-interior, mas é óbvio que não só a realidade geográfica deve ter sido sempre um mosaico muito complexo, como também os modos de vida e as “opções culturais”.
 
Lugar
 
Lugar é. ao mesmo tempo, uma “unidade” mais pequena das que temos vindo a considerar, e onde um sentimento de vivência e de “pertença” parece mais fortemente ancorado. É o espaço onde se sedimenta a memória humana, onde é mais densa a teia de significados decifráveis, Lugar é onde fica o lar, o “foyer” a “home” de uma pessoa ou família. É o sítio onde se volta sempre, apesar de que com algum desgosto pelo “déjà vu”, mas compensado pelo sentimento de conforto da privacidade, da continuação dos hábitos adquiridos, que permitem diminiuar os níveis de atenção vigilante ao perigo que usamos quando nos deslocamos, por exemplo, para longe.
É certo que na “sociedade nómada” em que vivemos, muitos, sobretudo quadros da classe média, acabaram por viver em transportes ou em sítios de passagem, os “não-lugares” de Marc Augé. Mas isso é uma excepção recente ao que foi mais habitual na história: a profunda ligação afectiva e experiencial das pessoas a um território, e dentro deste a um núcleo que é a sua casa. Por isso os “homeless” (ou até os idosos que habitam lares pouco agradáveis) nos fazem tanta impressão por representarem a suprema desumanidade da sociedade em que vivemos, a de desprover as pessoas do sentimento de pertença a um sítio peculiar.
O facto das pessoas que se deslocam encontrarem substitutos afectivos para não habitarem lugares, investindo o automóvel, ou todo um conjunto de equipamentos portáteis, de signos de identidade e conexão (computador, telemóvel, etc.) é um outro problema, relacionado com a globalização e com a proliferação do mesmo em todo o sítio por onde se passa (conforto de ver uma multinacional de hamburgers, de roupas, ou de livros num aeroporto por onde se circula; conforto aliás efémero, mais da ordem do simbólico, e imediatamente anterior a se relembrar os sabores ou o aspecto de tão monótonos e insonsos produtos; sem dúvida que a detecção de uma caixa multibanco com o símbolo do nosso cartão de crédito pode ser aliviante, mas por pouco tempo…).
O lugar tem sempre muito de mítico (o “génio do lugar”), na medida em que é investido por um indivíduo de qualidades afectivas que a outro podem nada dizer. Por isso o bairrismo (amor frenético ao rincão natal) é um sentimento hoje tão irritante e inspirador de ridículo, dada a movimentação frequente das pessoas, e o regime de favorecimento do cosmopolitismo (prazer no despaisamento- veja-se a raiz da palavra – sentimento de estar for a do seu país, no sentido de região natal) em que vivemos. Parece absurdo, por vezes, vermos os adeptos de clubes de futebol entrarem em transe pela vitória do seu clube, toda conseguida à base de atletas contratados, estrangeiros; ou a xenofobia de certas pessoas, que pode levar ao racismo e ao crime, perante comunidades de emigrantes ou de pessoas pertencentes a “minorias étnicas”, que no entanto fazem as casas para elas ou lhes tratam da limpeza no dia a dia.
 
O lugar, o sítio (ou “estação arqueológica”) é ainda erradamente muitas vezes a unidade de análise dos arqueólogos. Felizmente que uma perspectiva mais ampla, dirigida ao território no seu todo (mas ainda muito condicionada, nas zonas fronteiriças, pela realidade, recente para um pré-historiador, dos estados-nação) tem vindo a crescer. Cada vez mais a “arqueologia da paisagem” se impõe, não no sentido funcionalista (como se fosse um conjunto de recursos, ao modo de hoje) mas também nos sentidos fenomenológico (lugar da experiência dos indivíduos imersos no mundo) e semiológico (uma paisagem de significações “versus” uma mera “paisagem económica”).
E, neste contexto, cada vez parece mais irrisória aquela época, da segunda metade do século XX, em que se faziam sondagens à procura de estratigrafias e de objectos-tipo, e se organizavam “sequências culturais” nessa base, mesmo que já se usassem métodos quantitativos. Aliás, muitas pessoas deixaram de fazer escavações porque se aperceberam do anedótico carácter deste tipo de trabalho. Só com projectos de certa envergadura, dirigidos a escavações sistemáticas, a prospecções exaustivas, a estudos interdiscipliares do território (hoje, e retrospectivamente) se pode chegar a algo de sério. E isso custa muito tempo, muito dinheiro… porque, ao mesmo tempo que tentamos generalizar, temos de estudar cuidadosamente cada contexto… o que, no país por excelência da burocracia, que é o nosso, implica uma vontade férrea de querer continuar a ser investigador.
Mas o campo e os laboratórios não bastam, porque sem leituras e sem cultura geral que permita a renovação dos nossos questionários, numa fase em que a arqueologia mundial está numa crise paradigmática, também não se vai a lado nenhum. Ou seja, é-nos pedido tudo (pela nossa consciência, pela nossa honra de investigadores), e os meios que nos são dados são muito escassos.
Mas, se um poeta disse que não podia adiar o amor para um próximo século, nós também não podemos adiar a vontade de pensar, e de comunicar, e o gosto de trabalhar e de conhecer, para uma outra vida. É aqui e agora, ou nunca.
 
 

 

 

 

Algumas leituras recomendadas sobre estes temas

 
 
- Augé, Marc (1994), Não-Lugares. Introdução a uma
Antropologia da Sobremodernidade , Lisboa, Bertrand Ed.
•  Bender, Barbara (1998), Stonehenge. Making Space , Oxford, Berg.
•  Bender, Barbara (ed) (1993), Landscape. Politics and Perspectives , Oxford, Berg.
•  Gibson, James J. (1986), The Ecological Approach to Visual Perception , Hillsdale, New Jersey/London, Lawrence Erlbaum Ass., Inc., Publ.
•  Grosz, Elizabeth (2001), Architecture from the Outside. Essays on Virtual and Real Space , Cambridge- Massachusetts, MIT.
•  Hirsch, Eric & O' Hanlon, Michael (eds.) (1995), The Anthropology of Landscape. Perspectives on Place and Space , Oxford, Clarendon Press.
•  Ingold, Tim (2000), The Perception of The Environment. Essays on Livelihood, Dwelling and Skill , London, Routledge.
•  Jorge, Vítor Oliveira (2005), Vitrinas Muito Iluminadas. Interpelações de um Arqueólogo à Realidade que o Rodeia , Porto, Campo das Letras, no prelo. http://configuracoes.planetaclix.pt/VitrinasIndex.htm
•  Kent, Susan (ed.) (1990), Domestic Architecture and the Use of Space. An Interdiciplinary Cross-Cultural Study , Cambridge University Press.
•  Lash, Scott & Urry, John (2002-2ª ed.), Economies of Signs and Space , London, Sage Publications.
•  Lefebvre, Henri (2000- 4ª ed.), La Production de l' Espace , Paris, Anthropos.
•  Low, Setha & Lawrence Zúñiga, Denise (ed.) (2003), The Anthropology of Space and Place: Locating Culture , Oxford, Blackwell.
•  Paul-Lévy, F. & Segaud, M. (1983), L'Anthropologie de L'Espace , Paris, Centre Georges Pompidou.
•  Silvano, Filomena (2001), Antropologia do Espaço. Uma Introdução , Oeiras, Celta Editora.
•  Tilley, Christopher (1994), A Phenomenology of the Landscape , Oxford, Berg.
•  Tilley, Christopher (2004), The Materiality of Stone. Explorations in Landscape Phenomenology , Oxford, Berg.
•  Thomas, Julian (2004), Archaeology and Modernity , London, Routledge.
•  VV.AA. (1987), Espaces des Autres. Lectures Anthropologiques d' Architectures , Paris Les Éditions de la Villette.
 
Porto, 1 de Maio de 2005 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

matinal






Uma mulher quer-se nua,
Já se sabe,
Mas mais nua
Ou menos nua
Do que nua mesmo:
Sempre antes e depois de o estar,
De o ser
Completamente,
Para que a sua nudez
Esse jogo de saias e sombras
Em movimento,
Se abra totalmente ao eixo
Que antecipa,
Louco,
O seu desvendamento.

Uma mulher, de certo modo,
Está sempre nua
No seu apelo desvairado
À fixação do eixo.

Uma mulher,
No seu próprio movimento
É como o animal
Já trespassado,
No exacto momento
Em que arregala o olhar
Para a intersecção mortal.

As cortinas esvoaçam, sucedem-se,
E assim o desejo percorre
O espaço, o desejo animal
Que vive inseguro e descalço,
Sempre apelando, incansável,
E sempre já trespassado.



voj loures novembro 2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Passado: algumas notas breves


Passado: algumas notas breves



As questões do tempo, da temporalidade, do estatuto da história e, em função disso,  do que podemos entender por passado, presente e futuro, são cruciais.  Naturalmente que estão ligadas aos temas da memória, da recordação, etc., tanto ao nível colectivo como individual, e portanto levantam questões “permanentes” da filosofia ocidental desde os pré-socráticos.
A concepção mais habitual, linear (uni ou multi-linear) do tempo histórico (humano, que é só esse a que me reporto aqui), associada à noção de uma realidade social monoblocal, isto é, com uma dinâmica que, tudo somado, acaba por ser no seu conjunto mais ou menos homogénea, leva a erros crassíssimos.
Braudel por exemplo mostrou como existem temporalidades diferentes, diferentes ritmos na história, fazendo por exemplo do Mediterrâneo um “actor” histórico de longa duração. Jorge de Macedo explicou como cada momento histórico devia ser visto como um conjunto de possíveis dos quais só alguns se concretizaram, chamando “fenómenos minoritários” àqueles que não tiveram vencimento.
Esta complexificação da noção ingénua de realidade histórica é muito importante, mas é preciso, creio, dar alguns passos em frente, por forma a definitivamente abandonarmos a visão continuista da história, como devir/narrativa que se desenrola linearmente, rectilineamente, entre um princípio (um alfa, uma origem) e um fim (um ómega, um Juízo Final ou Apocalipse). Esta noção comum é de origem cristã.
Para muitos, positivistas ainda, ou simplesmente ingénuos, a tarefa do historiador (e, claro, a do arqueólogo) seria a de “reconstituir um passado efectivamente acontecido”, através de uma metodologia “científica” consolidada pelas chamadas “ciências históricas” desde o séc. XIX, o grande século da história e em geral da emergência das “ciências humanas”.
Desconstruir tão simplista e infantil noção (reconstituir o passado como “coisa em si” significaria conhecer o presente – ser-se contemporâneo do presente – e poder prever o futuro, em suma, ser omnisciente) é fácil, mas tem os seus perigos. Relativizar o “acontecido” pode levar ao extremo de se negar, por exemplo, a existência do Holocausto, como diversos autores tentaram. A história é obviamente uma formação discursiva política e a sua narrativa sempre “comprometida”. Ora eticamente não nos interessa um relativismo que ponha em causa de forma radical a objectividade, a “pulsão de verdade” que anima a história, e que consiste em nos podermos confrontar com o que aconteceu por mais absurdo e inenarrável que isso nos pareça. Por exemplo também, desde a queda do muro de Berlim que o sistema capitalista, democrata-liberal, de algum modo se pretende apresentar como “o fim da história”, isto é, como um modo de organização da sociedade e uma filosofia que abarcaria todo o horizonte do possível, passado (que não seria mais do que uma série de etapas preparatórias dele), presente e futuro. Hoje o simples facto de se enunciar seja o que for sobre o capitalismo como um todo (tentando ver um horizonte para lá dele, e malgrado todas as “crises” que estruturalmente o atravessam) é considerado de imediato como uma aberração, uma heresia.
Em suma, estamos perante um problema que exige uma nova visão do tempo histórico, uma nova maneira de encarar a temporalidade humana/social, como têm acentuado autores tão diversos como Aby Warburg (que fez uma história da arte” muito pouco ortodoxa e muitíssimo mais interessante do que aquela), Walter Benjamin (teses sobre a história), ou Giorgio Agamben (nomeadamente no seus livros “Infância e História”, 1978 e “Signatura Rerum”, 2008). Estes últimos autores levantam a complexa e difícil questão, em que não vou entrar aqui, da relação entre uma perspectiva “de esquerda” (nomeadamente o marxismo) e uma tradição messiânica oriunda da teologia judaica.
Num texto de Henri Bergson citado por Slavoj Zizek (in “A Marioneta e o Anão. O Cristianismo entre Perversão e Subversão”, Lx, Relógio d’ Água, 2006, p. 213), escreve aquele primeiro autor: “(...) podemos sem dúvida inserir o possível no passado, ou melhor, o próprio possível vai aí inserir-se, em qualquer momento. À medida que a realidade se cria, imprevisível e nova, a sua imagem reflecte-se atrás dela no passado indefinido: essa nova realidade terá sido sempre possível; mas só no momento preciso da sua actual emergência é que começa a ter sido sempre possível, e é por isso que eu dizia que a sua possibilidade, que não precede a sua realidade, tê-la-á precedido quando essa realidade emerge.”
E comenta Zizek (ib., p. 214), fiel ao seu hegelianismo: “(...) em qualquer momento do tempo existem múltiplas possibilidades que esperam por ser realizadas; logo que uma delas se actualiza [quer dizer, se concretiza, faz vencimento], as outras são canceladas.” Portanto, acrescenta, o que é preciso é “a ideia de uma escolha/acto que abra retrospectivamente a sua própria possibilidade: a ideia de que a emergência de uma novidade radical muda retrospectivamente o passado – não o passado real, evidentemente, pois não estamos numa história de ficção científica, mas as possibilidades passadas, ou, para nos exprimirmos mais formalmente, o valor das proposições modais relativas ao passado.” Zizek comenta aqui, não só Bergson, como também Jean-Pierre Dupuy (num livro que não li, mas que parece aliciante: “Pour Un Catastrophisme Éclairé”, Paris, Seuil, 2002).
Quando Zizek refere “as proposições modais” leva-nos para a lógica formal, área em que não tenho competência. Porém, há no seu discurso uma oscilação, que se compreende. Ou seja, se o que acontece agora muda radicalmente o passado, o modo como qualificamos, ou articulamos, em termos lógicos (de possibilidade, impossibilidade, necessidade ou contingência) o “acontecido” – como é que este se pode alguma vez estabilizar, por assim dizer, em “passado real”, bem distinto da ficção, a que se refere? Esse é o nó do problema (por mim creio que é já dentro de uma série de axiomas, ou conjunto de expectativas (se se quiser, em última análise, em função de uma crença ou projecto político), que se pode equacionar certezas relativamente ao futuro; é assim que tal ou tal passado se pode apresentar retrospectivamente como mais ou menos verosímil.
Ou seja, aquilo que é provável que venha a acontecer depende de uma decisão a tomar agora, e essa decisão, antecipando o futuro, criando condições de emergência de um determinado futuro, cria ao mesmo tempo espaços conceptuais permitindo a elaboração de um passado condizente. Quando uma determinada potencialidade se vem a concretizar na realidade, a ser um efeito, a efectivar-se, ela constrói então os seus antecedentes, que passam a ser “causas”, ou seja, de algum modo a dar a “ilusão” de que tal futuro não era contingente, não dependia de uma luta política, de um choque de alternativas, mas, antes pelo contrário, correspondia à lógica da história linear. A história linear fecha, para legitimar, um passado que está, de facto, sempre em aberto, como campo de luta.
Seremos capazes algum dia de a superar, criando novas condições lógico-gramaticais da revolução por vir?
Seremos capazes de recriar a história fugindo aos demónios do historicismo?
Peço colaboração a quem saiba mais que eu, ou tenha achegas para dar nestas matérias, e que me ajudem a pensar, que as apresente. Obrigado.

Loures, Novembro de 2012
voj

terça-feira, 30 de outubro de 2012

lodo

lodo




às vezes o fim de tarde
traz-me um sabor a fim de vida
e de forças

sei que amanhã
se ainda estiver vivo
me hei-de contorcer de novo


e continuar na luta

mas às vezes o fim de tarde
traz-me este sabor antigo
a lodo na maré baixa

esta sensação de que
cada dia é uma vida inteira
e de que às vezes, quando entardece,

seria preciso
(seria mesmo merecido)
algo verdadeiramente
luminoso,

prenúncio de anjo
anúncio sublime do crepúsculo,
visitação

promessa
de que amanhã
vai ser diferente

e não este correr miserável
de todos os dias
este lodo venenoso

que me tolhe as asas
de ave apanhada

no óleo derramado
da poluição:

no óleo viscoso,
brilhante,
que até fica bonito
nas fotografias

mas cujo reflexo
asfixia
pouco a pouco
num odor de narinas
contaminadas

embora sim, eu sei, eu saiba
que talvez seja apenas
esta sensação de agonia

própria do fim de tarde

quando a maré baixa
e vêm ao de cima, borbulhando,
todas as misérias desta terra
ingrata e fedorenta

out. 2012