Fui sempre um monogâmico. Uma pessoa cujo desejo está intrinsecamente ligado à noção de casal solidário. Não faço juízos sobre isso: constato retrospectivamente.
Nada disso teve em mim nunca nada a ver com questões práticas ou "económicas". A minha economia foi sempre individual e sempre virada para um sentido de sublimação de um capital cultural relativamente parco que herdei. Sou um espartano, sem dúvida ferido por debaixo da armadura, sem dúvida pisado por debaixo da ironia, sem dúvida ácido mesmo na minha ternura.
O casal monogâmico, profundamente ligado, não é aquele em que um elemento possui o outro, ou domina o outro - essa é uma ligação superficial. É aquele em que um elemento, cada elemento, não quer saber das "aventuras exteriores" do outro. Obviamente que esse processo de sublimação, de "largar o outro", de tentar ultrapassar o ciúme que é constitutivo do amor e da amizade, nunca é perfeito. O ódio, sabemo-lo bem, é a outra face do amor, é a sua sombra. Mas a idade traz-nos esta sabedoria: cada um de nós é um ser totalmente frágil e desguarnecido. E o melhor que podemos dar ao outro, ao absoluto outro que é todo o outro ( a começar pelo outro de nós) é essa liberdade de não querer possuir. Esta des-possessão, esta privação voluntária é o respeito e a amizade transportados a um nível superior de entendimento. A intimidade do outro, como a intimidade do outro que há em mim, não me pertencem. Não me pertence a sua morte, como não me pertence sequer a minha. Cada um de nós é um ser imensamente des-possuído. E só a partir desse patamar se pode afirmar na soberania de si, no sofrimento e na solidão, e por vezes na incrível, inesperada, im-possível alegria e humor da consciência da comédia da vida.
Sempre procurei, de forma ingénua, conhecer outras pessoas, sem classificar a minha relação com elas. Mas o trabalho tomou e toma a maior parte da minha vida. Sou e sempre fui um trabalhador. Assim, o que pode entravar em mim a intrusão do outro, ou a sua aproximação, é querer interromper o meu trabalho, por um lado, ou atentar contra o coração do meu compromisso de lealdade monogâmica. Herdei uma cultura masculina dominante. Uma aventura, se estivesse virado para aí, se tivesse essa disponibilidade (coisa que a vida me ensinou não ter, ou praticamente não ter), sim. Mas alguém que atentasse, que se quisesse substituir a essas duas fidelidades de forma perene, ou seja, a do casal e a do meu trabalho como constitutivo da minha pessoa, era e é por mim liminarmente excluído.
Eu sei que estes discursos de "explicação" da subjectividade própria estão cheios de fantasias, moralismos, para dizer depressa, mentiras, encenações.
Mas aquele que está à espera da encenação ideal de si e se fecha em copas, esse(a) é o(a) supremo(a) narciso(a) e o(a) supremo (a)ingénuo(a), sem dúvida perturbado(a) e infeliz.
Acho... e como não acredito em psiquiatras e outros "psis", (acreditaria em me submeter a uma psicanálise com uma mulher, com uma psicanalista, mas onde está ela? Esse é que é sempre o problema, encontrar o que precisamos, no meio deste mercado oriental onde há muito pó e todos discutem preços) tenho de me haver com as minhas próprias reflexões.
Não tenho "pais" a quem pedir conselhos: estou , nesse aspecto, sem tecto. Por isso me fecho no estudo como meu (quase) último "recreio". Aqui pode-se jogar jogos extremamente interessantes, que ultrapassam de longe a banalidade e ridicularia do que, para meu espanto, parece ser o quotidiano de tanta gente, que não sei como consegue sobreviver. Felizmente aprendi a aprender. De vez em quando, longe das multidões que rezam, choram, imploram despudoradamente em privado e em público, anseiam ter mais que nem sôfregos(as) ou lutam que nem cães(cadelas) danados(as) pela "fame and fortune", sinto e vejo algumas fulgurações, e tento comunicá-las. That is all.
O mais importante é uma pessoa preparar-se, com coragem, para os verdadeiros momentos das más notícias (da morte que cada uma delas anuncia, ou da morte em si, des-possesão definitiva e libertadora). Eles hão-de vir.
É o pensar e sentir coisas deste tipo que nos distingue dos animais, mesmo daqueles que são muito parecidos connosco, ou daqueles que têm uma "racionalidade" diferente da nossa. Não somos senão um produto da evolução da "vida", essa fabulosa invenção conceptual, e é fundamental esta descentração que a observação e a ciência permitiram, pois claro: mas somos um produto que, para si mesmo, é muito especial. Vivemos dentro da linguagem (já nascemos dentro dela) e vivemos na consciência iminente da morte. E isto não pode ser esquecido (ainda estou a lembrar-me das coisas de ontem... do que li para ir à sessão, e em relação com o curso que ando a dar, do que lá ouvi, e do que a seguir pensei).
2 comentários:
gostei bastante de ler. decalco-me em algumas passagens.
um abraço.
Obrigado.
Um abraço do (esforçado) artista...
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