O equilíbrio afectivo das pessoas depende muito de uma variedade de factores contingentes, mas é muito importante que na constituição da subjectividade haja sempre um programa ou projecto pessoal não utópico, isto é, algo a que a pessoa se vá "fazendo a" (como o pegador "se faz" ao touro), no sentido de dominar as forças que tendem a arrasar o sujeito.
A afeição em excesso prestada aos nossos animais de companhia, que estão sujeitos a doenças e a uma vida muito mais curta do que a nossa (em princípio), é, mais cedo ou mais tarde, uma tremenda fonte de sofrimento quando transferimos para eles a frustração inerente ao próprio viver, a esta convivência com o vazio e a solidão que é a vida.
Zizek disse algures que a(o) companheira(o) ideal é aquela(e) que nos permite viver a nossa inabalável solidão.
Disse também que um casal, que uma união afectiva estável entre duas pessoas só se realiza quando, para além do "amor" (?!) exista um projecto comum. Sem esse projecto comum, que nada tem a ver com afeições amorosas, tudo o resto não se aguenta. Na impossibilidade, para muitos casais, de construirem esse algo em comum que escape à inescapável rotina está, ou estava, parece-me, a necessidade de preenchimento do vazio a que correspondia a quase obrigação social e institucional de um casal ter filhos. Prendendo o casal a uma responsabilidade que era produto do próprio acasalamento, os filhos eram, por assim dizer, o álibi ideal, socialmente encarecido, para o casal se manter, mesmo na hipocrisia da maior ou menor indiferença mútua (da inexistência de um "projecto" partilhado, alvo de constante disputa, mas partilhado) e da correspondente infidelidade escondida. O importante era o aspecto institucional da família. Mas a própria passagem da sociedade disciplinar a uma sociedade de controlo (muito mais disciplina sob a fachada hedonista da tolerância hipócrita) a família tradicional tendeu a tornar-se um escolho tão grande ao capitalismo como outrora as fronteiras regionais anteriores aos estados nação. Hoje, a palavra de ordem é fluir e fruir. Fruir quem pode e enquanto pode, e fluirem para fora dos empregos cada vez mais pessoas todos os dias. Que se amanhem. As pessoas, reduzidas a mão de obra, tornaram-se agora excedentárias para o sistema liberal que tomou conta do mundo até mais ver.
Foi todo um equilíbrio precário que se rompeu, não se sabendo que formas dominantes (e muito variadas) vão assumir as relações de vida íntima em comum... entretanto, as pessoas têm todas cada vez mais "pets"... e sofrimentos inevitáveis aquando do seu desaparecimento. E cada uma vai fazendo o luto como pode... o sofrimento, a culpa interiorizaram-se, requintaram-se.
Quanto aos jovens, com felizardas excepções (há sempre sobreviventes das piores catástrofes, até agora) estão noutra: conscientes do desequilíbrio geral (não só da "economia" estrita, mas da economia libidinal a ela ligada, ou seja, da total obscenidade da sociedade que os produziu - precisamente, já não é uma sociedade, já não é uma comunidade, mas um conjunto de tribos à deriva, de sujeitos vazios) entraram numa de indiferença e de "curtição do instante", numa espécie de resistência passiva a uma sociedade louca, para evitarem a loucura. Compreendo-os, compreendo-os muito bem, eu que ainda sou do tempo em que podíamos ter ilusões de forjar consistentemente a ilusão de um programa de vida.
Hoje li ("Actual" do Expresso de ontem) que o escritor light Paulo Coelho (creio que o autor mais vendido no mundo, o que nos diz bem o que é o "mundo") tem agora uma biografia que ele confiou a um indivíduo que, a priori, não iria incensá-lo. Manobra esperta. Porque se viesse uma biografia morna, ou aduladora, seria mais um "livro paulo coelho", mais do mesmo, que é já muito. Não. Parece que é uma obra (com a qual desde já confesso não pensar perder mais tempo do que nesta referência) que mostrando a acidentada vida do autor, e como ele, apesar disso tudo, conseguiu ser o que é (rico, famoso, conhecido, lido), acabará por se tornar, quase de certeza, mais um "best seller", a acrescentar aos muitos do biografado, dando-lhe uma apreciável mais-valia. E assim vai o mundo...(que remate tão pouco imaginativo... bem, deixa-me voltar ao Zizek).
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