Ontem dizia-me uma pessoa que um amigo meu lhe disse que eu me entusiasmo por determinado "pensador" e, naquele momento, "aquele é que é o maior"; e isto acontece sucessivamente com "pensadores" diferentes. Claro que esse meu jovem amigo estava conscientemente a "amandar uma boca"... ele sabe tão bem com eu que uma vida não chega, senão em certos privilegiados, para fazer sistema e ter um modo de pensar próprio. O que em geral fazemos é um conjunto infinito de citações que nos fascinam e que procuramos ligar; o carácter artificial dessa ligação nos mais novos é sempre evidente. As (excepto algumas raras) pessoas não podem, senão depois de décadas, constituir-se como um núcleo autónomo (como a fantasia de que têm uma posição própria e original). Daí o pudor de muitos trabalhadores da filosofia em se intitularem filosófos, porque atribuem ainda a tal título (a contra-corrente da sociedade "horizontal" em que nos encontramos, em que todos estamos funcionalizados ao mesmo nível, desde a "mulher da limpeza" - passe a expressão e com todo o respeito - ao tal filósofo... hoje quem investiga e ensina tem de passar grande parte da vida em actos que antigamente eram de "secretaria"...) essa característica de sistema paradigmático que encontramos por detrás das figuras de Aristóteles, Kant, Hegel ou Marx...
Estou aqui agora a ler um livro fascinante (na tradução espanhola - "Órganos Sin Cuerpo. Sobre Deleuze y Consecuencias", de Slavoj Zizek, Valencia, Pre-Textos, 2006 - a edição em inglês é de 2004) e a apreciar a "genialidade" do autor. Uma das suas dificuldades é a constante deriva - vai numa sucessão interminável de conexões que só uma pessoa culta pode conseguir acompanhar, de modo que ficam sempre "brancas", ou "meias-compreensões", pelo meio da leitura, que no entanto prossegue, fascinante. Tal como nas conferências. Nestas Zizek é sempre anárquico, diz anedotas, funga, puxa o cabelo, puxa a t-shirt, coça-se, esbraceja, mas no fundo dali sai qualquer coisa de perturbante novo, um acontecimento "intelectual". Tal qual com este livro, um dos grandes livros de Zizek (as melhores - mais sólidas, mais substanciadas filosoficamente - obras de Zizek não estão traduzidas em português). Ele "elogia" profundamente Deleuze, ao seu modo (mesmo e justamente na crítica sistemática que se propõe fazer-lhe, atribuindo o aspecto negativo da sua obra à fase em que se "liga" a Guattari), e o próprio título do livro é um jogo de palavras com o conceito de Deleuze de "corpo sem órgãos". E diz que a melhor maneira de darmos continuidade, devir, aproveitamento, a um autor é traí-lo, quer dizer, incorporá-lo de modo tal que depois ele deixa de ser uma entidade que queremos ou não seguir, mas algo que está metamorfoseado na nossa própria experiência. Neste sentido não se trata de tomar partido por esta ou aquela posição, por este ou aquele autor, é entusiasmar-nos com o que há de profundamente interessante e sugestivo no seu pensar para o devir do nosso próprio pensamento. E, chegados aí, a questão não é de alinhamento com autores "contraditórios", ou opostos, ou inconciliáveis. A questão é na nossa abertura para esse júbilo do pensar, da lucidez, da premonição do "novo". E assim as mais diferentes inspirações encontram, em nós, em cada momento de nós, comum medida, não para um consenso, mas para uma transfiguração, a partir da nossa experiência de leitura, de reflexão. Quem se lembraria de ir a artistas e de dizer que só porque gosta de um, põe de parte um outro totalmente diferente?
Nesta coisa de pensar, sou como o visitante de um museu, ou, talvez melhor, de uma grande exposição de arte: vou-me fascinando de sala em sala, de stand em stand, diferentemente é óbvio consoante o que mais me atrai. E esses entusiasmos de momento vão-se caldeando naquilo que eu próprio não posso adivinhar que advirá.
E assim na vida corrente também...
O que é importante não é tomarmos partido. Às vezes aquilo a que mais vigorosamente nos contrapomos é aquilo que mais intimamente nos fascina (mesmo que não o saibamos, por certo). A suspensão da decisão (ao contrário do que julgam ou fingem julgar os tecnocratas que administram o mundo) não é atarantamento: como diz Zizek, talvez seja preciso inverter a célebre frase de Marx (por sua vez a inversão do pensamento de Hegel) para afirmar "aqueles que pensam devem precisamente pensar, antes de actuar". E pensar é pensar contraditoriamente, largar-se ao devir dos "entusiasmos"... é daí que pode advir algo contra a asfixia que nos rodeia.
2 comentários:
Perceber o conceito lacaniano de Outro ajuda também a perceber a questão da extimidade (a que me referi num comentário anterior neste blog).
O problema não é o entusiasmo com que se adere a certas ideias. Diria até que se trata de uma questão de Amor enquanto agape (essa questão que Badiou e Zizek desenvolvem a partir da sua análise de S. Paulo), uma adesão a uma causa, uma incorporação.
O nosso discurso está sempre pleno de uma alteridade; ele transborda de Outro.
O que me parece mais problemática é o que a adesão "tout court" que vem sempre a revelar-se fatal a longo prazo.
Penso que se torna claro o problema se, por exemplo, lermos o recente "The Subject of Anthropology" da Henrietta Moore.
É uma questão de consequência..
No fundo talvez haja a necessidade de ter cuidado com S1 (e perceber que S1 é sempre S1).
O que aprendemos de alguém, nem sempre é a colagem daquilo que ele diz (ou escreve). Muitas vezes o que se destaca dos sistemas de pensamento mencionados é exactamente essa "praxis" do pensar.
Talvez por aí estejamos a navegar pelas águas que dão título a este blog. Talvez o melhor contributo dessa relação seja a capacidade de trans-ferir.
(não deixa de ser também curioso o modo como a opinião dos outros surge aqui como uma "ferência" - é algo da ordem do sintomático)
O que é uma adesão tout court?
O que é fatal?
O que é o longo prazo?...
Tenho esse livro da H. Moore mas ainda não o pude ler, só consultar.
Obrigado pela sua reflexão!
Assim mais viessem...
Um abraço
Vitor
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