Um livro de poemas, como aliás qualquer poema, é como um corpo: tem as suas partes duras e moles, tem a sua ortopedia, os seus joelhos, os seus pontos de articulação. Tem a sua respiração, que muda de cada vez que se lê. É angustiante quando se revê as provas tipográficas de um livro longo, porque ele tem de ser um corpo único na disparidade e mesmo dispersão dos seus órgãos. Tem de haver uma articulação mesmo na sua desconformidade. E até no que toca ao seu valor, quer dizer, àquilo que nos prende como sugestão "estética", há os picos e os vales, as planícies e os rios, uma variedade que é também uma diversidade qualitativa: ninguém consegue aguentar numa obra longa sempre o mesmo extremeçar de emoção, que como bem se sabe é tipicamente na obra de arte algo de totalmente construído (são pensamentos e sentimentos que não estão no mesmo plano do vivido quotidiano, claro, são totalmente teatralizados). Assim, se uma obra é curta, mas densa e conseguida, pode manter-se a um nível que julgamos bom, mesmo fantástico; se uma obra é mais longa, como uma vida, tem de ter coisas mais puras e outras menos puras, tem em muitos momentos de ser tão banal como a vida mesma. Como o som de fundo de uma sinfonia, em que sobre essa planície abstracta, sobre essa continuidade de respiração básica, de vez em quando se erguem, ou tentam erguer, as grandes emoções. Ou num quadro, em que o trabalho geral da estrutura, a força da sua arquitectura se apoia sempre numa superfície neutra e talvez até cansativa (por isso o pintor começa logo a trabalhar noutro, mal pode). Jogo difícil, uma doença, uma febre em que se vive. Ainda por cima rever as provas de um livro de poemas não tem a mesma autonomia de pintar um quadro: tem de se lidar com o gráfico, que tende a ver o grafismo como o principal, não se apercebendo sempre de que o grafismo é uma anotação, é uma pauta de uma música, está ao serviço desta. Não se trata de distinguir forma e conteúdo. Trata-se precisamente de dizer que são uma e a mesma coisa, e que, se uma pessoa se não acautela, o gráfico, nas torções que faz ao escrito, acaba por escrever uma obra diferente da que tínhamos (?) concebido... ou pelo menos daquela que agora, no "rever das provas", queremos a todo o custo conceber, fazer, como quem faz um corpo na sua respiração própria.
Transferência "(...) A PSICANÁLISE INVENTOU DE FACTO UMA NOVA FORMA DE AMOR CHAMADA TRANSFERÊNCIA." JACQUES-ALAIN MILLER (Lacan Dot Com)
quarta-feira, 13 de maio de 2009
matérias subtis
Um livro de poemas, como aliás qualquer poema, é como um corpo: tem as suas partes duras e moles, tem a sua ortopedia, os seus joelhos, os seus pontos de articulação. Tem a sua respiração, que muda de cada vez que se lê. É angustiante quando se revê as provas tipográficas de um livro longo, porque ele tem de ser um corpo único na disparidade e mesmo dispersão dos seus órgãos. Tem de haver uma articulação mesmo na sua desconformidade. E até no que toca ao seu valor, quer dizer, àquilo que nos prende como sugestão "estética", há os picos e os vales, as planícies e os rios, uma variedade que é também uma diversidade qualitativa: ninguém consegue aguentar numa obra longa sempre o mesmo extremeçar de emoção, que como bem se sabe é tipicamente na obra de arte algo de totalmente construído (são pensamentos e sentimentos que não estão no mesmo plano do vivido quotidiano, claro, são totalmente teatralizados). Assim, se uma obra é curta, mas densa e conseguida, pode manter-se a um nível que julgamos bom, mesmo fantástico; se uma obra é mais longa, como uma vida, tem de ter coisas mais puras e outras menos puras, tem em muitos momentos de ser tão banal como a vida mesma. Como o som de fundo de uma sinfonia, em que sobre essa planície abstracta, sobre essa continuidade de respiração básica, de vez em quando se erguem, ou tentam erguer, as grandes emoções. Ou num quadro, em que o trabalho geral da estrutura, a força da sua arquitectura se apoia sempre numa superfície neutra e talvez até cansativa (por isso o pintor começa logo a trabalhar noutro, mal pode). Jogo difícil, uma doença, uma febre em que se vive. Ainda por cima rever as provas de um livro de poemas não tem a mesma autonomia de pintar um quadro: tem de se lidar com o gráfico, que tende a ver o grafismo como o principal, não se apercebendo sempre de que o grafismo é uma anotação, é uma pauta de uma música, está ao serviço desta. Não se trata de distinguir forma e conteúdo. Trata-se precisamente de dizer que são uma e a mesma coisa, e que, se uma pessoa se não acautela, o gráfico, nas torções que faz ao escrito, acaba por escrever uma obra diferente da que tínhamos (?) concebido... ou pelo menos daquela que agora, no "rever das provas", queremos a todo o custo conceber, fazer, como quem faz um corpo na sua respiração própria.
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1 comentário:
Eva Cassidy: WHAT A WONDERFUL WORLD.
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