terça-feira, 30 de outubro de 2012

lodo

lodo




às vezes o fim de tarde
traz-me um sabor a fim de vida
e de forças

sei que amanhã
se ainda estiver vivo
me hei-de contorcer de novo


e continuar na luta

mas às vezes o fim de tarde
traz-me este sabor antigo
a lodo na maré baixa

esta sensação de que
cada dia é uma vida inteira
e de que às vezes, quando entardece,

seria preciso
(seria mesmo merecido)
algo verdadeiramente
luminoso,

prenúncio de anjo
anúncio sublime do crepúsculo,
visitação

promessa
de que amanhã
vai ser diferente

e não este correr miserável
de todos os dias
este lodo venenoso

que me tolhe as asas
de ave apanhada

no óleo derramado
da poluição:

no óleo viscoso,
brilhante,
que até fica bonito
nas fotografias

mas cujo reflexo
asfixia
pouco a pouco
num odor de narinas
contaminadas

embora sim, eu sei, eu saiba
que talvez seja apenas
esta sensação de agonia

própria do fim de tarde

quando a maré baixa
e vêm ao de cima, borbulhando,
todas as misérias desta terra
ingrata e fedorenta

out. 2012

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Evento



Epoché

Conferência na Associação dos Arqueólogos Portugueses – secção de Pré-história


Lisboa, Museu Arqueológico do Carmo, quinta-feira 25 de Outubro de 2012 – 18 horas – entrada livre

Tema:
ALGUMAS PROPOSTAS PARA UM ENCONTRO URGENTE: Arqueologia e Pensamento Crítico Contemporâneo


por Vítor Oliveira Jorge

Alguns tópicos prévios…
“(…) a verdade é parcial, só acessível quando se toma partido, e não deixando por isso de ser universal.”
……
“Esta pergunta [a implícita no título de um célebre livro de Benedetto Croce sobre Hegel – “O Que Está Vivo e o Que Está Morto na Filosofia de Hegel”, 1907] pressupõe, da parte do autor [Croce], a adopção de uma arrogante atitude de juiz do passado [Hegel]; mas, quando estamos perante um filósofo realmente grande, a verdadeira questão a pôr não se refere ao que esse filósofo poderá ainda dizer-nos, poderá ainda significar para nós, mas antes a oposta: ou seja, que seremos nós, que poderá ser a nossa situação contemporânea, aos olhos dele, como aparecerá no seu pensamento a nossa época?”
Slavoj Zizek, “Da Tragédia à Farsa”, Lisboa, Relógio d’ Água, 2010, p. 14
_
Há quarenta anos, mais ou menos, que milito nesta ideia: a de que a arqueologia deve, como qualquer outro campo do saber/actividade profissional, inserir-se de pleno direito (e também com a consciência de que isso é um dever incontornável) nos grandes problemas “filosóficos” (para não dizer, nos grandes debates político-ideológicos) contemporâneos. Isso exige de nós evidentemente um esforço intelectual acrescido, e que é também um dever ético.
Quando Paulo Tunhas, num livro recente (“As Questões Que Se Repetem”, Lisboa, D. Quixote, 2012, p. 11), se refere às origens da filosofia, ao que esta fundamentalmente é, diz: “Mas é com os gregos que se acrescenta à interrogação sobre a origem do cosmos aquele que é o acto inaugural da filosofia: uma reflexão sobre o próprio acto de pensar e sobre a origem do pensamento no espanto, ou maravilhamento, com a própria existência de um mundo ordenado, de um cosmos.”
Ora acontece que, num sentido não especializado, nem só os filósofos “fazem” filosofia. Se ela é uma reflexão sobre o próprio acto de pensar, então qualquer investigação, e, por extensão, qualquer actividade humana, porque envolve pensamento, deve implicar cedo ou tarde uma reflexão, não só sobre si própria (epistemologia interna, por assim dizer), mas também sobre questões inter e transdisciplinares que o seu objecto levanta a nível mais geral (epistemologia externa, passe a expressão).
A chamada “arqueologia pré-histórica” está na interface das chamadas ciências naturais e ciências sociais, uma vez que o próprio conceito (muito discutível, é óbvio) de “pré-história” nos coloca aqui desde logo perante um problema: que é isso de uma história anterior (“pré”) à própria história? Que significado tem pesquisar um “antecedente” sempre em recuo, sempre mais longínquo, na obsessão de preencher um vácuo fundamental, na própria tentativa de perceber “definitivamente” quem somos? Para que noção continuista, cronológica, convencional, de tempo linear, sub-dividido em períodos, desde logo aponta esta nossa demanda?
Mas mesmo a palavra arqueologia, à letra, ciência da “archè” (origem, fundamento, princípio legitimador de algo) não é nada pacífica, uma vez que parece pressupor uma busca de uma essência, de um princípio das coisas, que temos de compreender no contexto histórico muito preciso em que emerge: Ocidente, modernidade, racionalismo, invenção da ideia de património, alargamento da noção de documento histórico à realidade material, extensão da noção de tempo histórico, etc, etc.
Neste sentido, a “pré-história” poder-se-ia considerar o domínio mais “puro” da própria arqueologia, de algum modo o seu extremo limite inicial, na medida em que procuraria as origens de um fundamento anterior a qualquer registo escrito. Não é assim de admirar que a maior parte dos trabalhos no âmbito da “teoria” da/na arqueologia tenham sido escritos por “pré-historiadores”, como é bem conhecido. Os “arqueólogos das épocas históricas” habitualmente reportam-se à “teoria da história” e, portanto, a toda uma outra genealogia de reflexões.
Realmente, a arqueologia pré-histórica, ou, se se quiser, a pré-história, parece que teria a missão de preencher um vazio entre a natureza e a cultura/civilização, entre a animalidade e o homem, isto é, de criar um nexo narrativo/temporal/causal para a emergência de nós próprios, humanos, como seres “domesticados”, pensantes, reflexivos, imersos no “simbólico”, primeiro criadores de mitos e, mais tarde, da própria filosofia.
Trata-se portanto, como tem sido notado tantas vezes, de uma versão laica, racionalizada, “científica”, do livro da Génese, e portanto de uma das problemáticas mais constantes da nossa consciência ocidental.  São suas temáticas, por exemplo: que significa ser-se humano, “civilizado”, o que é o laço social que nos distingue das comunidades animais, o que implica falar, usar a/ser-se usado pela linguagem, qual o papel da fabricação de utensílios e de todo o tipo de “externalidades” relativamente ao corpo (e dos seus contextos de “produção”, é claro) – como por exemplo a produção do espaço e da arquitectura - na própria constituição de uma comunidade humana, etc, etc.  Tópicos sobre os quais já os gregos pensaram, quer em termos de mitos, quer depois em termos de filosofia. Tópicos que nos continuam a dar que pensar.
Independentemente de muita arqueologia se ter feito e ainda continuar a fazer de acordo com pressupostos do senso comum, de um “realismo” ou positivismo ingénuos, etc., ou então de evitar mais ou menos intencionalmente as questões “filosóficas”, opção agora mais reforçada pelas condições objectivas extremamente negativas com que as pesquisas em geral se deparam, importa continuar a dizer a velha frase: “nada há de tão prático quanto uma boa teoria”.
Há evidentemente que aproximar/conjugar as “culturas” (ciências e “letras”), evitar a armadilha de uma arqueologia tecnocrática (supostamente progredindo apenas por “aplicações” das “ciências”) e perceber ao mesmo tempo que a filosofia transbordou para fora de si própria, e não é um “campo” (como aliás todos os outros) fechado. E por isso também se optou aqui por utilizar a expressão “pensamento crítico”, mais abrangente e interventivo, para alguns, ou pelo menos à primeira vista, do que a palavra “filosofia” poderia eventualmente pressupor.
Não se deve confundir, porém, esta noção abrangente e necessariamente convencional de “pensamento crítico” em ciências sociais e humanas e estudos conexos (na verdade, reconheço, tão vaga que alguns a não aceitariam) com as perspectivas próprias da “teoria crítica” associada à chamada “escola de Frankfurt”, em particular representada pelos trabalhos de Adorno e Horkheimer, e de que Habermas é um representante mais recente. Esta última, quando muito, pode ser vista como uma das formas que o pensamento crítico contemporâneo assumiu, numa vastíssima constelação problemática, mas onde é muito importante algum radicalismo e a vontade de unir teoria e prática política, num sentido emancipatório que nos livre dos horizontes da ideia de “fim da história” propalada por muitos em relação com o término da “guerra fria” e o colapso do sistema falsamente “comunista” da União soviética.
Mais do que nunca, neste momento de crise estrutural do próprio modelo societal que criámos, somos obrigados a repensar tudo desde a raiz, tanto na nossa prática de arqueólogos como na nossa vida. Não é de economia que se trata, claro, é em termos de modelo de sociedade que de novo hoje temos que radicalmente pensar, pois parece esgotado o “ciclo” que podemos designer capitalista, pelo menos como ideal emancipador, e não há para ele uma teoria geral de substituição, mas apenas se nota na maior parte dos que pensam uma conformação geral com a ideia de “reforma”, que parece cada dia mais utópica, ou totalmente impossível. O colapso em que entrámos não tem ponto de retorno à vista.
A atitude crítica moderna parte já de Kant, que operou “uma revolução [copernicana] na maneira de pensar de uma importância decisiva.” (Tunhas, op. cit., p. 224), de que ele mesmo tinha consciência, através de uma obra sistemática que abarca todos os grandes temas filosóficos, dando um enorme “salto” em relação a Descartes. Realmente, os seus três livros de “crítica” (…) “investigam quais as condições de possibilidade do nosso conhecimento, quais os seus limites e qual a estrutura do nosso espírito requerida para que tal conhecimento se produza.” (id, ib.). O sujeito é colocado por Kant “no centro do próprio processo de conhecimento.” (id, p. 226), tratando-se de esclarecer quais os princípios organizadores da experiência. Pelo menos uma parte significativa da filosofia posterior não pôde ignorar a obra de Kant, a qual “(…) em virtude da própria afirmação da incognoscibilidade das coisas em si, proibia qualquer conhecimento do Absoluto.” (Tunhas, p. 243).
Tenhamos sobretudo presente que a crítica, num sentido kantiano, é uma investigação sobre as possibilidades do conhecimento.
Desde os fins do séc. XVIII o tema da evolução e do progresso histórico tomam uma importância grande, que vem desembocar em Hegel e Marx no séc. XIX, a par do evolucionismo das ciências naturais, com Lamarck e Darwin. Estas “correntes”, ligadas ao antiquarismo e à etnologia nascente, tiveram aliás e como é bem sabido muita importância na emergência da ideia de pré-história tal qual ainda hoje vulgarmente a concebemos.
Uma das formas que assume aquilo que podíamos chamar a “consciência crítica” moderna é a aguda percepção, ou suspeita (generalizada a muitas pessoas, pois que em certas minorias “intelectuais” estas questões ou outras comparáveis há muito ocorriam, embora formuladas de diferentes maneiras) de que o que aparece à nossa percepção/compreensão imediata é sinal ou sintoma de algo de mais subtil, invisível, escondido, antigo, “arcaico”, ou profundo. Ou seja, com o jogo da aparência/verdade, da presença/ausência, afinal uma problemática que em última análise num certo sentido “repete” Platão. O que tem tudo a ver, evidentemente, com a arqueologia (basta ler Julian Thomas, “Archaeology and Modernity”, Londres, Routledge, 2004).
Aí a influência de Saussure e do seu “Curso de Linguística Geral” (publicado em 1916), entre muitas outras, foi bastante grande. Como escreve Tunhas (op. cit, p. 337), “De acordo com a opinião comum estruturalista (…) o sujeito é um efeito de superfície determinado por uma estrutura da qual, por definição, ele não se encontra consciente, e o trabalho filosófico consiste em conhecer essa estrutura.” Mas essa estrutura profunda “(…) está longe de ser propriedade exclusive do estruturalismo. O marxismo, bem entendido, já havia identificado a estrutura profunda com o modo de produção e a superfície com todo o aparato do direito, da religião, da arte, etc. Do mesmo modo, Freud distinguirá o conteúdo manifesto do sonho e o seu conteúdo latent, constituindo este, que a análise deverá decifrar, o verdadeiro pensamento do sonho. Russell, e o Wittgenstein do “Tratactus”, procuravam a “forma lógica” por detrás da enganosa “forma gramatical”. E a gramática generativa de Noam Chomsky (…) buscará também a “estrutura profunda” da linguagem.)”
Um dos aspectos mais pertinentes para nós, arqueólogos, do pensamento crítico contemporâneo, tal como ele nos aparece em autores como Walter Benjamin (as famosas teses sobre a história) ou Giorgio Agamben (“Infância e História”, por exemplo, livro de 1978, mas traduzido para francês em 1989 – Paris, Payot; ou ainda “Signatura Rerum”, Paris, Vrin, 2008, sobretudo pp. 93-128 – cap. “Archéologie Philosophique”), é a forma de conceptualizar a história, a memória, as relações entre passado, presente e futuro. Outra, é a interface homem-animal, conceptualizada entre muitos por Agamben também, num livro já traduzido em Portugal pelas Edições 70, “O Aberto” (com reimpressão em 2012).
A história sequencial faz parte do pensamento metafísico ocidental, que tantos autores contemporâneos (Heidegger foi certamente um deles, e, até certo ponto na sua esteira, Derrida um outro, entre muitos) tentaram, quiçá em vão, superar.
Por mim, estudando filosofia “às arrecuas” (ou seja, escolhendo autores contemporâneos cuja problemática me toca, e de cujas fontes de inspiração vou depois, por tentativa e erro, procurando acercar-me) tenho vindo a interessar-me particularmente pela obra do esloveno Slavoj Zizek, um filósofo hegeliano que pôde compreender Jacques Lacan (o psicanalista que trouxe Freud e a psicanálise definitivamente para a filosofia) através do seu “herdeiro” Jacques Alain-Miller, e assim faz uma conjugação particularmente original e, aos meus olhos de “estudante”, muito perspicaz, de teoria lacaniana com um novo hegelianismo que tem vindo a surgir nas últimas décadas.
Por exemplo, a ideia, que ainda nos apresenta um autor sério como Paulo Tunhas (op. cit., pp. 243 e segs.) de um Hegel, sem dúvida o máximo expoente do idealismo alemão, como tendo desenvolvido uma teoria do desenvolvimento histórico (a qual, sem dúvida, vai influenciar Marx) e que tende para um sistema fechado e absolute, não é bem aquela que corresponde à que desenvolve Zizek.
Este autor (como a citação inicial destes tópicos exprime) defende que é preciso ler os autores com os olhos do presente, quer dizer, fazê-los dizer o que “eles não sabiam que sabiam”, noção que corresponde bem a uma (contra-intuitiva) causalidade retrospectiva que me parece muito frutuosa (os acontecimentos “criam” as suas causas, o que vem depois é um revelador do que aconteceu antes, postula as suas próprias causas, por assim dizer).
Por exemplo, quando Marx referia, inspirando-se em Hegel (e retiro esta ideia de Zizek, que a refere muitas vezes), que a anatomia do homem nos fornece a chave para compreender a anatomia do macaco, estava em causa essa visão de que a “verdade” de uma coisa se “revela” nos seus “desenvolvimentos” ulteriores. Ou seja, o que foi contingente passa depois, retrospectivamente, e de certo modo, a aparecer como “necessário”. O presente interage dialecticamente com o passado, não tanto no sentido de tese- antítese-síntese (afirmação- negação- negação da negação) com vista a um todo harmonioso e uno, mas no sentido de uma “negação reveladora”, que “descobre” no passado o que ele mesmo continha como potencial, potencial esse porem que não “estava lá”, mas só aparece depois como potencial, no futuro.
Ou noutro exemplo, escreve Zizek: (2012, v. adiante, p. 245): “(…) na análise do universo do Capital, nós não devíamos apenas empurrar Hegel na direcção de Marx, mas o próprio Marx devia ser radicalizado: só hoje, com o capitalismo global na sua forma “pós-industrial” é que, para o dizer em termos hegelianos, o capitalismo está a chegar ao nível da sua própria noção. (…) ou seja, para conseguir descrever a estrutura da noção inerente de uma formação social, devemos começar pela sua forma mais desenvolvida.” Por outras palavras, a “história” só se compreende retrospectivamente.
Esta ideia articula-se bem, até certo ponto, parece-me, com as reflexões críticas de Agamben sobre a história, só que estas, creio, não vão talvez tão longe quanto as de Zizek, no seu potencial revolucionário.
A obra deste autor é gigantesca, mas o seu último livro, que corresponde a um enorme esforço de concatenação das suas ideias (mais de 1000 pp.) é “Less Than Nothing. Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism” (London, Verso, 2012), e parece-me crucial.
Vendo na obra de Hegel o que Hegel não podia ter “visto” no seu tempo (um grande dinamismo, e não uma síntese aconchegadora), e vendo no ensino de Lacan (filtrado por Miller, é certo, dado que Lacan nunca quis ser um autor publicado, sempre recusou o discurso do mestre e o discurso universitário) o que o próprio Lacan por vezes não consciencializou (por exemplo, o seu profundo hegelianismo, nomeadamente na fase tardia em que Lacan nunca refere Hegel), Zizek dá-nos o embrião de uma visão nova e corajosa do ser humano, da sociedade, da história, da acção política, da necessidade da acção emancipatória.
Esta minha intervenção tem a intenção, como estudante de Zizek, de chamar mais uma vez a atenção para o lermos no que ele tem de mais “sério” (para além dos aspectos superficiais criados pela sua aparição nos media), e assim abrirmos o debate, também em arqueologia, em relação com os grandes problemas do nosso tempo, criando espaço para o pensamento. Pois que, precisamente em épocas de crise, quando o poder existente nos incita a actuar, nos incita ao diálogo (para nos chamar ao seu campo de jogo, no qual estamos à partida vencidos), é crucial mostrar que o mais urgente é suspender (suspensão, a que os gregos chamavam “epoché”) a urgência com que o poder nos chama à liça. Criar uma pensamento/praxis alternativo das alternativas que, até agora, todas falharam na criação da “comunidade por vir”, porque enquadradas na moldura da democracia burguesa e do pensamento liberal, tolerante e consumista (pensamento/acção alienados).
E a quem nos chamar loucos ter a coragem de referir que uma tomada de decisão (neste caso, pensar criticamente e radicalmente) é e foi sempre até certo ponto um acto de “loucura”, pois que jamais um ser humano ou uma organização decidem com base na ponderação de todos os efeitos que essa decisão pode acarretar, pela razão simples de que (nomeadamente numa situação complexa, sistémica) jamais é possível tal conhecimento antecipado. Se ele fosse possível, a política reduzia-se à administração, que é aquilo a que nos querem conduzir na sociedade digital em que vivemos.
Recusar, também em arqueologia, um modelo gestionário de sociedade e, no plano da pesquisa e da actuação social, descentrar-nos relativamente a um modo de estar dominante, que se limite a alimentar as indústrias do património, por um lado, e por outro  preencha uma narrativa histórica linear, enfadonha e impotente, que objectivamente serve de enquadramento ideológico daquelas indústrias – eis o que pretendo sugerir.

voj loures outubro 2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conferência

















ASSOCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS PORTUGUESES
SECÇÃO DE PRÉ-HISTÓRIA
Conferência
ALGUMAS PROPOSTAS PARA UM ENCONTRO URGENTE: Arqueologia e Pensamento Crítico Contemporâneo
pelo
Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge (prof. cat. aposentado da FLUP)
25 de Outubro de 2012 18 horas – Entrada Livre
Museu Arqueológico do Carmo – Lisboa

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Fim de tarde


Fim de tarde
(apontamento de circunstância)



Custam-me a passar os dias sem ti,
Embora me interrogue, claro,
Quem é este que se adianta a mim
A dizê-lo: e quem és tu, a quem ele
Aparentemente se dirige.

Às vezes os dias são duros como o asfalto
Molhado e escuro da noite que veio
Demasiado depressa, e nunca o teu rosto
Me visitou com o sorriso de outrora.

E não há música, dentro do nosso ser,
Nem ruas animadas de passantes,
Apenas os candeeiros parados, e a chuva
Lá fora, companheira insaciável daquele
Que lê, e que não chega jamais ao fim

Para poder talvez pousar as mãos cansadas
Sobre as tuas mãos frias, vindas lá de fora,
E sentir-se em casa, numa noite talvez longa,
Cheia de promessas e descobertas e murmúrios.

Caminhas às vezes à minha frente, e pergunto-me
Que imagem é essa, e por que é que os meus passos
Tentam imitar os teus, em percursos onde apenas
O teu cabelo, e jamais o teu rosto, me aparece.

Por que vamos os dois tão aparentemente
Indiferentes, cada um ao encontro da sua
Morte privada, ainda por cima quando chove,
E o asfalto é escuro, escorregadio, e espelha
Os versos contra o charco de si próprios,
Como que a insinuar a inutilidade de se escrever.




para a Flor

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Apocalipse

Como sabemos, o debate público/privado é tão antigo quanto pelo menos os gregos na nossa cultura ocidental.
O que se passa porém neste momento a nível nacional, europeu, e mundial, é um fenómeno muito peculiar da história, que certamente terá diversas interpretações de acordo com a opção político/ideológica de cada um, expressa ou tácita. É um problema de filosofia política, em última análise, obviamente.
Parece porém ser geral a opinião (a impressão, para não dizer a aflição) de que estamos num momento particularmente inquietante e grave no sentido de que a crise do capitalismo que atravessamos não é exactamente como outras. O sistema capitalista, implantado há séculos no Ocidente, e hoje globalizado, alimenta-se precisamente da inquietude e crise, vivendo sobretudo do lucro no curto prazo. Mas enquanto no chamado Estado social (ou Estado-providência, para que ainda aponta a Constituição), e que era a face optimista/humanitária do sistema (a oposta foram os fascismos) se prometia a redistribuição de uma parcela desse lucro através do Estado, em bens e serviços aos cidadãos, acontece que agora a finança internacional parasitou o sistema e, para superar a crise a favor do lucro (de poucos), está a condenar à pobreza e à miséria a maioria dos cidadãos e dos bens/serviços que lhes foram prometidos. Apresenta-se como credora, ditando as regras do jogo e condicionando os governos como muito bem quer, ainda por cima sob o aspecto de virtuosos adiantamentos de capital a juros por ela mesma determinados. Mas foi tal finança que levou à criação (subjectiva e objectiva) da situação caótica que, se levada ao extremo, a ela própria a médio prazo a ameaça.  Evidentemente que o problema que se põe, de carácter apocalíptico diria, é saber como poderá um tal sistema existir, numa forma altamente sofistiscada e tecnológica de dominação, condenando o ser humano a “homo sacer”, no sentido que lhe dá G. Agamben, inspirado no direito romano (ver o livro “Estado de Excepção”, publicado pelas Ed. 70). Na verdade, quando já não houver senão uns poucos consumidores (nome actual dos cidadãos), nem trabalho/empregos para a maior parte, e o sistema de segurança social colapsar (hoje um jornal diz que será em 2020) mas apenas eventualmente tecnologia altamente sofisticada, gostaria de ver a que tipo de filme de ficção científica os então ainda sobreviventes assistirão.
Nesta situação inédita na história, que nos coube viver, o património cultural e em particular a arqueologia com que sonhámos (qualquer que fosse o lugar/modo como tentámos e tentamos pô-la em prática) são (quase) invisíveis.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

MÃOS

MÃOS

Às vezes, quando leio e sublinho
Vejo-me a mim mesmo já morto
E as mãos das pessoas em volta dos meus cadernos
E livros, e apontamentos, a preparam-se
Para deitar tudo fora, pois claro.

Ou então no passado em casa
Da minha primeira namorada, quando até

Era impossível fazer uma festa na mão
Não viesse logo a repressão maternal implacável
- E a pensar nos livros que havia de escrever


Para poder um dia dispor das minhas mãos
E dizer sobre uma mesa: alto, aqui é passado,
Presente e futuro confundidos.

E sobre eles vou pôr esta jarra de flores
Imperecíveis, que ficarão a lembrar
Estas mãos que essas sim hão-de morrer.




voj out 2012

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Realidade


Realidade


Ao contrário do que crê o realismo ingénuo, empírico, não existe “uma realidade” no sentido de algo apreensível pela experiência imediata, não mediada. O que tomamos habitualmente como “realidade”, e que nem nos lembramos de questionar, é determinado por um conjunto de pressupostos.Na verdade – e aqui baseio-me em S. Zizek, que praticamente cito à letra (v. “Arriesgar lo Imposible”, Madrid, Trotta, 2006, livro de entrevistas muito úteis com Glyn Daly, de que também se pode encontrar edição inglesa) – a “realidade” é já o resultado de uma perspectiva “distorcida”. Para lá destas “distorções” que constituem a chamada realidade, não há qualquer realidade positiva. Nenhuma entidade positiva existe objectivamente, mas antes emerge como resultado de uma diferenciação (distorção parcial) entre perspectivas.
Estamos aqui pois ante um perspectivismo materialista radical, universalizado.
Por que é que a chamada realidade não aparece sob uma forma neutral? É que, obviamente, o observador é parte do observado. A nossa mente obviamente não está fora da realidade, mas sim é parte dela: e daí ocorrerem as referidas “distorções”. O materialismo (opção filosófica) não admite uma realidade numénica* situada para além da perspectiva distorcida que temos dela. O mundo, enquanto todo fechado sobre si mesmo, não existe, pois que não há um observador externo a ele que o possa ver como um universo positivo. A nossa mente não existe fora do mundo. Assim, a questão que se coloca é: em que condições existe a minha mente? Como é que a minha mente é inerente à realidade? As aquisições das ciências da cognição, com as suas extensões na inteligência artificial, na neurologia, hoje tão na ordem do dia, não são de desprezar de modo algum, mas em última análise não resolvem o problema da consciência e da auto-reflexividade. Não por qualquer razão mística ou transcendente, anti-materialista. Escapa-lhes a importância decisiva da psicanálise, e em particular da psicanálise lacaniana, cuja ambição, se conjugada com uma perspectiva dialéctica herdada do chamado idealismo alemão, é imensa, implicando uma maneira totalmente diferente da mais comum na forma de viver/sentir/pensar a realidade. Desde logo, e isso reporta-nos para Hegel, a realidade fundamenta-se numa certa exclusão, inconsistência ou incompletude. A realidade é um “não-todo”. Evidentemente, esta nótula em si não é nada senão um “aperitivo” para mais reflexões. Tentarei.

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* Númeno opõe-se a fenómeno. Para Kant, o númeno é a coisa em si, ou seja, o que está para além do mero fenómeno ou manifestação.

sábado, 6 de outubro de 2012

Job


Zizek sobre o Livro de Job: "Diria que talvez seja o primeiro exemplo da moderna crítica da ideologia." (p. 152) Job "quer afirmar a falta de sentido do seu sofrimento." (...)
" E no instante em que aceitas o sofrimento como algo que não tem um significado mais profundo isso significa que podemos mudá-lo, combatê-lo. Este é o nível 0 da crítica da ideologia - quando a tua interpretação mostra que as coisas não têm um significado [uma razão de ser assim]."
O sofrimento de Job, demonstrando a derrota de Deus (que reconhece a injustiça do que acontece a Job) (...) "aponta para o sofrimento de Cristo. Passamos do judaísmo ao cristianismo quando esta separação infinita entre o Homem e Deus - o instante em que o Homem simplesmente não pode dar sentido ao seu sofrimento - é transladada para Deus ele próprio. É assim que devemos interpretar o grito desesperado de Cristo quando diz: "Pai, por que é que me abandonaste?" Não devemos entender esta pergunta  como "por que me atraiçoaste?", em termos das expectativas de um menino não satisfeitas pelo pai, que o não pode ajudar. É algo de muito mais desesperado. A queixa é dirigida muito mais directamente à impotência do Pai. O Pai não é omnipotente, e Cristo representa nesse sentido tanto a impotência de Deus como o sem-sentido do seu próprio sofrimento."

Slavoj Zizek,
"Arriesgar lo Imposible. Conversaciones con Glyn Daly, Madrid, Ed. Trotta, 2006, pp. 152-153 (trad. minha).

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Idealismo alemão e psicanálise lacaniana: a perspectiva de Zizek


Por que é que se pode e deve conjugar o chamado idealismo alemão (Hegel) com a psicanálise, segundo Zizek?




"No cognitivismo deparamo-nos com um paradoxo fundamental: a consciência e a mente humana pressupõem certo gesto não económico, certa falha. Isso proporciona-nos o contorno de um certo mau funcionamento que não se pode explicar em termos de evolucionismo cognitivista. Pois bem, claro, o coelho que tiro do meu chapéu é que tanto o idealismo alemão como a psicanálise têm termos que especificam essa mau funcionamento: no idealismo alemão é a negatividade auto-referencial absoluta; na psicanálise, a pulsão de morte. É isto que está no núcleo do que eu faço. A tese básica que defendo é que a característica central da subjectividade no idealismo alemão - a noção des-substancializada da subjectividade na ordem do ser - concorda com a noção do "objecto pequeno a" que, como todos sabemos, é para Lacan uma falha. Não se trata de conseguirmos encontrar-nos com o objecto, mas de que o próprio objecto é simplesmente o vestígio de uma certa falha. O que estou a dizer é que esta noção de negatividade auto-relacional, tal como tem vindo a ser articulada desde Kant a Hegel, significa filosoficamente o mesmo que a noção freudiana da pulsão de morte - esta é a minha perspectiva fundamental. Por outras palavras, a noção freudiana da pulsão de morte não é uma categoria biológica mas situa-se num plano filosófico.
"Ao tentar explicar o funcionamento da psique humana em termos do princípio do prazer, do princípio da realidade, etc., Freud foi constando cada vez mais que há um elemento radicalmente não funcional, uma destrutividade básica,um excesso de negatividade, que não podia ser explicado. E essa é a razão pela qual Freud propôs a hipótese da pulsão de morte. Creio que a pulsão de morte é exactamente o nome correcto para este excesso de negatividade. É esta, de certo modo, a grande obsessão de todo o meu trabalho: a leitura da noção freudiana da pulsão de morte combinada com o que o idealismo alemão tematiza como negatividade auto-relacional."


"Slavoj Zizek. Arriesgar lo Imposible. Conversaciones con Glyn Daly", Madrid, Ed. Trotta, 2006, p. 63
(trad. minha)

[original inglês de 2004, da Polity Press - estas conversas tiveram o seu remate em Londres no verão de 2002]

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Colóquio na Gulbenkian sobre recintos pré-históricos

http://www.era-arqueologia.pt/coloquio/programa.html

Palestra em Lisboa



No próximo dia 25 de Outubro farei uma palestra na Associação dos Arqueólogos Portugueses - Secção de Pré-história, em Lisboa, a convite desta. Será às 18 horas no Museu do Carmo.

Título:

ALGUMAS PROPOSTAS PARA UM ENCONTRO URGENTE: ARQUEOLOGIA E PENSAMENTO CRÍTICO CONTEMPORÂNEO.