quinta-feira, 28 de maio de 2009

Será possível pensar e viver na multiplicidade?

"(...) Somos modelados por ma filosofia geral da unidade (...)"
J. Baudrillard, Palavras de Ordem", Porto, Campo das Letras, 2001, p. 61.
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"Porque o pensamento não actua na identificação das coisas, como o pensamento racional, mas na sua desidentificação, na sua sedução, isto é, no seu desvio, apesar da vontade fantasmática de unificar o mundo sob a sua capa e em seu nome."

idem, ibidem, pp. 64-65




Creio que um problema essencial é o da unidade, o do desejo último que nos trabalha que é o de reduzir o múltiplo e aberto ao uno e fechado, completo - em suma, o de passar pela (ultrapassar a) análise para desesperadamente construir a síntese, a explicação, o princípio de ordem. Aceitar a óbvia complexidade e multiplicidade do mundo é ainda um passo para esse horizonte de unidade, de completude, que é a nossa utopia por excelência. Com todas as tensões e dialécticas pelo meio...
O Uno, todas as suas facetas se apresentam constantemente; todas as dialécticas visam de certo modo um consenso, uma explicação, um acordo, um término do diferendo. Nós sofremos com as metamorfoses da realidade, queremos encontrar algo de fixo para além da aparência, procuramos uma razão, a razão, um princípio unificador. De outra maneira sentir-nos-íamos à deriva e parecer-nos-ia ser impossível construir comunidade, sociedade, que aparenta ter de se basear num consenso mínimo, nem que seja no da impossibilidade de consenso e portanto no do conflito potencial ou em acto. Mesmo quando nos aparece um pensamento desconstruidor, que demole algumas das nossas convicções, logo aos seus críticos se apressa a dizer: atenção, as polaridades fixas (sejam o sujeito, sejam a realidade, sejam o real, sejam a transcendência, seja o que for) não são mais do que um efeito do discurso, da linguagem - mas no fundo o que eu procuro, através da diferença, é algum "depósito", ou resto, que lhe resista, mesmo que evanescente. E se eu digo que a repetição cria diferença, eu estou ainda a tentar discernir as molduras dessa diferença, estou a tentar abarcar numa síntese esse vazio de realidade ainda não conceptualizado ou simbolizado. É como um oleiro que fizesse um vaso à mão e ele, vaso, nunca deixasse fechar a pança, o corpo, por forma a ser um contentor perfeito. Nós ambicionamos caixas, arrumação, e mesmo a desarrumação que é ainda um último avatar da arrumação, a exposição nostálgica ou cínica da sua impossibilidade.

Criar conceitos, estabelecer sistemas de conceitos, chegar a conclusões, fechar sistemas... e, contraditoriamente, quando nos dizem que circulamos dentro de um anel de Moebius (ele próprio o símbolo da completude) sentimo-nos asfixiados. Nós queremos poder subjectivar-nos como sujeitos livres, sabendo bem que essa liberdade é uma ilusão desejada como tal, porque a liberdade total seria a que se acercaria do sublime insuportável, seria a morte. Ou seja, a liberdade estabelece-se sobre um pano de fundo de normas, a diferença sobre um pano de fundo de referentes... mas se todos eles são também construções inestáticas, fluidas, como fazer? É possível um pensamento da diferença radical, da que se liberte do mito do primitivo (da origem - do éden - do ser humano colado à vida, vivendo no pleno usufruto do não pensar, da despreocupação) e de uma teleologia regeneradora, escatológica? É possível fugir ao tempo da história, da biografia? É possível uma ontologia do fragmento e da aparição como tal, sem re-presentação? É possível uma existência sem a estabilidade de referências fixas, sem cordões umbilicais?
É possíver vermo-nos livres deste projecto totalizante da modernidade ocidental (uma realidade sem restos) sem cairmos nas filosofias orientais da diluição do ser? Ou nas suas caricatas adopções ocidentais de tipo new age, ou outra ridicularia assim? Como orientar a nossa vida na multiplicidade, sem nos perdermos?
Creio que essa ontologia não existe.
A ontologia do uno está inscrita na linguagem (essa aliás tem sido a questão das feministas, como aliás de todo o projecto antropológico, que nada tem de inocente na sua abertura ávida e tolerante: sim digam-me quem são para eu, compreendendo-vos, ó vós que sois outros, vos poder absorver... isso já começou com os missionários do "ultramar"...).
Mas quem poderia garantir ser impossível?
Que filósofos me corrijam ou ajudem, por favor. E se tiver dito disparates, aqui está a mão para a palmatória.

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