sexta-feira, 15 de maio de 2009

Giorgio Agamben - esquema (transcrição livre) da palestra postada neste blogue (mensagens anteriores) sobre "O Poder e a Glória"- parte 2

[Continuação dos tópicos "transcritos" por mim. Peço desde já excusa por qualquer erro de incompreensão da minha parte - o som nem sempre permite uma perfeita audição do que o autor está a dizer, além de que passar a escrito o oral é sempre uma torção; porém, isto não pretende, de modo algum, ser uma transcrição literal da palestra. Trata-se apenas de uns apontamentos para melhor incorporar a estrutura de pensamento do autor]



Não há fundação (fundamento) no ser na economia, na acção de Deus, segundo os téologos. Como eles disseram, literalmente, é um mistério anárquico. Archè, em grego, significa como se sabe início, fundamento. A economia de deus não tem fundamento [o autor usa a palavra inglesa foundation], não tem começo. Ela é completamente independente do ser de Deus. Isto torna-se compreensível quando tentamos perceber nesta perspectiva o sentido da controvérsia sobre o arianismo que tanto dividiu a Igreja entre os sécs. IV e VI. Por que foi este debate tão longo e importante, envolvendo o poder profano, que sobre ele tomou posições? O que estava em causa neste debate era o carácter anárquico (sem fundamento ou fundação, sem começo, sem archè) do filho, de Cristo. Arius (que se tornou depois um herético) defendia que Cristo, o filho, que era o logos, a palavra, a acção de Deus, tinha as suas bases no pai [was grounded in the father]. Não era anárquico, como o pai, mas tinha o seu começo e fundamento no pai.
A doutrina que prevalecia e que se tornou ortodoxia
afirmava veementemente que o filho, Cristo, é anarchos, sem fundamento, exactamente como o pai. Assim Cristo é uma figura independente, sem fundamento [without foundation], sem começo no pai.
Esta tese da anarquia de Cristo é talvez a mais ominosa herança que a teologia cristã legou à modernidade. Porquê? Porque implica que a linguagem e a acção divinas não tinham qualquer fundamento no ser, e são, nesse sentido, anárquicas. Isto significa a ruína, para sempre, da ontologia clássica, grega, com a sua ideia de uma ligação substancial entre o ser e o logos, o ser e a linguagem, o ser e a praxis, a acção. Qualquer tentativa, desde então, para fundamentar a linguagem no ser está condenada ao falanço. De acordo com Aristóteles, Deus movia o mundo (os "céus"), mas na verdade não o movia, queria-o assim, porque o seu ser coincidia com a sua acção. Os Padres cristãos inverteram completamente este ponto de vista: a acção de Deus não tem nada a ver com o ser de Deus. E esta é a herança que tivemos de enfrentar. Se a acção não tem qualquer fundamento no ser, a política, a ética, etc., tornam-se extremamente problemáticas.
Acima de tudo, é porque o ser e a acção são ambos anárquicos, no sentido apontado, que um governo se torna possível e mesmo necessário. Governo vem do grego κυβερνήτης que significa a arte do piloto, o homem do leme, o que guia o barco. É o carácter não fundado, não fundamentado da acção humana e divina que torna possível governar essa acção. Se a acção e ser fossem o mesmo, não se podia governar. Mas isto significa que a economia, oikonomia, quer dizer, a governância, é essencialmente anárquica. Que há uma solidariedade secreta entre governo e anarquia. Há um governo apenas porque os elementos que constituem este governo são anárquicos, sem fundação ou fundamento.
Uma das personagens do filme de Pasolini Salò diz que a única anarquia real é a anarquia do poder, e W. Benjamin escreve que não há nada de tão anárquico como a ordem burguesa - essas afirmações devem ser tomadas de forma extremamente séria. Há uma solidariedade entre governo(s) e anarquia.
Este é o primeiro ponto que queria abordar na minha análise da estrutura do acto de governância.

Ao segundo ponto chamarei "o Reino e o Governo", isto é, a dupla estrutura do governo. Um dos pontos que haveria de ter grande impacte na cultura ocidental é a conjunção estratégica desta doutrina da economia divina com a teoria da providência, isto é, do governo divino do mundo (é isso que significa "providência"). A junção destes dois paradigmas, que têm diferentes origens ou proveniências ("providência" vem da história filosófica grega, etc), está já presente em Clemente de Alexandria no fim do século II, e até ao fim do século VII deu origem a uma quantidade incrível de "literatura" teológica e filosófica (a "providência é o assunto sobre o qual os teólogos e filósofos mais escreveram). "Providência quer dizer que Deus está constantemente empenhado no governo do mundo; e, se ele parasse por um só instante que fosse, então o mundo entraria em colapso. Esta é a base teológica da providência. Mas como é que a providência, este governo divino do mndo, funciona? Desde o princípio vemos que a providência é concebida como uma máquina dupla ou bipolar. Isto é uma constante, desde o princípio: a providência tem uma estrutura dupla.
Deus não governa o mundo directamente em todos os seus detalhes e até ao mais ínfimo pormenor de um insecto, como diz o Evangelho, mas através do princípio universal. Os teólogos distinguem portanto entre uma providência geral que estabelece as leis universais e transcendentes, as causas primeiras (e chamam a isto ordinatio, ordenar, a ordem), e uma providência especial que está entregue aos anjos ou ao mecanismo das causas imanentes ou secundárias, a que chamam execução - executio. A máquina governamental divina é pois constituída pela lei geral e pela execução (isto tem a ver com o modelo democrático). Seja qual for o modo como os teólogos concebem a relação entre estes dois pólos, em qualquer caso a estrutura bipolar deve estar presente. Se os dois pólos estão completamente divididos, não é possível qualquer governo. Haverá de um lado um soberano impressionante, mas que é de facto impotente, e de outro lado a confusão caótica de um eixo particular de intervenção - a governância.



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