[esta intervenção de Agamben - genial autor que se apercebeu de com as nossas estruturas de pensar actuais são antigas e radicam na construção teológica alto-medieval, na sua consolidação da ortodoxia cristã - aqui é extremamente lúcida e no meu entender saudavelmente subversiva, isto é, desconstrutiva, crítica, iluminante, reveladora de uma "hipocrisia" fundamental, mesmo que não intencionada - na medida em que mostra como o poder, a governância, se realiza exactamente por aquilo que diz não desejar, os actos colaterais. Por exemplo, quando no meio de uma confusão de rua alguém inocente é morto por forças que actuam em nome da ordem, é óbvio que em princípio o agente A ou B não pretendia pessoalmente matar ninguém, mas está a contribuir, sem o (poder) consciencializar (a sua ideologia não lho permite) com esse "acidente", para a realização do poder. O poder é um aviso permanente e GERAL que como que diz: cuidado, estamos aqui para reprimir e extirpar o mal, em nome do bem comum, do bem geral, mas ao fazê-lo podemos atingir colateramente quem não tem culpa nenhuma, pelo que o melhor é TODOS desde já acautelarem-se. Há esta mais-valia de poder em todo o poder, por mais democrático que se afirme. A lucidez de Agamben é ver como esse desejo, essa pulsão do excesso está no coração político de todo e qualquer poder efectivo, sem o qual não havia governo possível. Não há "poder puro", digamos assim, o poder vive sempre em "overdose" potencial - claro que esta interpretação ou leitura é meramente pessoal. Digamos que uma ditadura se distingue de uma democracia porque a ditadura, para além de outras coisas, desnuda este objectivo, por vezes de forma espectacular, transborda naquilo que se mantém recalcado ou secreto na primeira; e esse desnudar é obsceno, e intolerável para a boa consciência de qualquer governância "democrática"]
Um governo só é possível se os dois aspectos considerados antes estiverem coordenados numa máquina bipolar. Há governo quando há coordenação desses dois elementos: lei geral e uma excepção, providência geral e providência particular.
Na tradição da filosofia política, poder-se-ia dizer que esta estrutura dupla se expressa na velha fórmula: "o rei reina mas não governa".
Na tradição da democracia moderna temos de pensar na divisão entre poder legislativo ou soberano, que actua sempre segundo as leis e princípios universais, e poder executivo, que leva à prática, no seu detalhe, o princípio geral. É curioso que a primeira vez que encontramos este vocabulário, ordinatio e executio, ordem e execução, é na teologia e não na teoria política. Estamos muitos séculos antes do político articular tudo isto. Uma das descobertas de G. A. é a de que o vocabulário das leis da administração pública está fortemente ligado a raizes teológicas.
A história da teoria política ocidental é a história das várias formas de articulação e de conflito destes dois pólos de poder. Reino e Governo. Soberania e Economia. O Pai e o Filho. Lei e Ordem. Lei e Polícia, podíamos dizer. Mas esta componente bipolar tem de estar presente desde o início até ao fim. Hoje podíamos dizer que o pólo do governo, ou da execução, tem a primazia, tanto na Europa como nos EU temos uma absoluta primazia do governo. Mas, mesmo neste caso, o aspecto bipolar está lá, se não, não há governo (mas sim outra forma de poder).
O terceiro ponto que desejo abordar é o problema dos danos colaterais. Na história da doutrina divina da providência a mais persistente aporia é provavelmente o problema da origem do mal, problema que envolveu teólogos e filósofos durante séculos. Se Deus governa o mundo e se a economia de Deus é necessariamente a mais perfeita que existe, como é que podemos encarar o mal (catástrofes naturais, doenças, crimes morais, etc) em todos os seus aspectos? A tentativa de encontrar uma solução para esta aporia resultou na invenção de um paradigma que é talvez o mais significativo legado teológico recebido pela teoria contemporânea da governância. Deus, na sua providência, estabeleceu leis gerais que são sempre boas. O mal resulta como efeito colateral destas leis. O mal é um efeito colateral (side effect) do governo divino do mundo, do bem, do bom governo. Por exemplo, a chuva benfazeja pode provocar trovoadas, inundações, catástrofes.
Alexandre de Afrodísia, um comentador aristotélico tardio (séc. II) expõe esta teoria.
Deus não se preocupa com detalhes. Assim, cada acto de governo divino do mundo é dirigido por um objectivo primordialmente geral. Mas assim como o chefe da casa, ao alimentar a família, alimenta também inadvertidamente os pequenos animais que parasitariamente habitam a casa (ratos, por ex.), do mesmo modo do acto geral da providência divina resultam efeitos colaterais que até podem ser positivos, ou negativos. Mas o que Alexandre diz é que os efeitos colaterais não são acidentais, mas definem a própria estrutura do acto de governância. O efeito colateral é o modo pelo qual o governo divino se torna efectivo. É quando a providência se realiza. Não é nem geral, nem particular, nem intencional, nem casual, nem previsto, nem imprevisto, nem reino, nem governo. Antes, só deste modo a máquina de governar - que se move sempre em dois níveis separados, geral e particular - apenas enquanto efeito colateral, se pode tornar operacional.
Quando hoje os governos chamam efeitos colaterais a factos que decorrem de intervenções militares, por exemplo, eles, sem o saberem, desenvolvem este paradigma teológico muito antigo.Mesmo neste caso, o efeito colateral não é algo secundário, ou casual, mas define a própria essência de um acto de governo. Não há acidentes no acto de governância. Porque o acto visa ter (aims at) efeitos colaterais. É através do efeito colateral que um acto de governo se realiza.
O meu quarto ponto já foi tratado por Michel Foucault. O que define o governo divino do mundo é que a providência não pode ser apenas um acto de força, de violência, que elide e subjuga o livre arbítrio dos governados. A principal característica do governo divino é que ele opera através da própria natureza das criaturas, de tal modo que Bossuet, o conhecido teólogo francês do séc. XVII, afirmou: "Deus fez o mundo como se Deus estivesse ausente dele. Deus governa as criaturas como se elas se governassem a si próprias". Deus, comenta G. A., permite-nos ser como poderíamos ser nós próprios, acentuando o mesmo G. A. a ficção incrivelmente sofisticada que se elabora assim nesta subtil economia.
Deus permite a um hmem ser o que um homem é, a um corpo o que um corpo é, a um pensamento o que um pensamento é, permite ser necessário o que é necessário, e livre o que é livre.
Incrível e percuntante analista é Agamben - que grande desocultação opera, a nossos olhos, de algumas das teias que os tapavam... difo eu, VOJ, seu aluno graças à net! E ainda dizem que estamos numa época de decadência do espirito crítico... estamos numa época muito importante nesse aspecto, apenas ainda não chegou à maior arte das pessoas. É preciso saber escolher muito bem o que se lê e, uma vez achado, aprofundar isso: temos as chaves para a desmontagem do que nos parece evidente, e ofusca o que é de facto importante. Questão de aplicação.
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