sexta-feira, 22 de maio de 2009

o bicho inquieto


Se não tivermos cuidado, a posição filosófica e científica inerente ao monismo, ou ao continuismo (continuidade do homem e da natureza, com a eliminação de muitas dicotomias típicas da cultura ocidental - ver por exemplo Jean-Marie Schaeffer, "La Fin de l'Exception Humaine", Paris, Gallimard, 2007), atitude que a mim próprio muito me tem seduzido, (admirador que sou de Tim Ingold, por exemplo) pode descambar numa unicidade que destrói qualquer dialéctica, qualquer tensão no interior de um "sistema conceptual", e que portanto pode conduzir a um conservadorismo, se não mesmo a um ideologia ou "nova religião", de feição materialista tendencialmente algo "grosseira". Parece-me...
Por exemplo, e já que estamos no ano Darwin, não me passa pela cabeça contestar que o ser humano vem na sequência das outras espécies, atribuindo-lhe qualquer transcendência, ou excepção nesse aspecto. É óbvio que somos um tipo de primatas, isso para mim está fora de discussão, e é radicalmente importante na ultrapassagem de uma visão religiosa, ou se se quiser, transcendente do mundo, que para um materialista bloqueia tudo, impede de facto a compreensão do que é a actualidade (sei que esta afirmação é discutível). O que me incomoda um pouco é algumas filosofias que se querem produzir, explicita ou tacitamente a partir daí. Os nossos problemas não ficam resolvidos por sabermos que somos um primata entre outros, mas antes começam aí. Desbloqueada a figura inibitória de uma transcendência, de uma paternalidade, da solução (aparentemente) fácil de um Criador, estamos perante o aberto da responsabilidade. E essa responsabilidade, pelo que se tem visto na história, cabe-nos, para bem ou para mal. Somos responsáveis pelo que pensamos, pelo modo como actuamos, pela forma como nos comportamos perante o planeta e as outras espécies, etc, etc. Sem nenhuma doutrina ou tecto que nos venha dizer qual é a verdade. Temos de a inventar, a reinventar a cada momento, no debate político que é o pensamento (apesar de muitos quererem convencer-nos de que estamos já num momento pós-político e outras ridicularias. Ninguém acredita nisso, embora possa actuar apoliticamente, e aí já está a reforçar a ideologia reinante; como nos explica Zizek, a ideologia tem a ver com actos e não com teorias).
Sou um agnóstico (não me dou ao luxo ou ao erro de dizer que sou ateu, porque o ateísmo pode ser considerado como um teísmo de sinal contrário: assumo que não sei, nem fui para aí chamado, a decidir em consciência sobre coisas de que nada posso saber com um mínimo de segurança ou rigor, apenas estando consciente de como se geram e auto-reforçam, em ilusão perfeita, em anel de Moebius, as crenças e as ideologias), serei um "materialista", não pretendo dar ao homem um estatuto qualitativamente superior ou diferenciado, dividir a realidade em matéria e espírito. Não sei o que é o espírito, tenho muita dificuldade em conceptualizá-lo. Todavia também não sei o que é a matéria, fora das definições assumidamente redutoras que a ciência lhe dá. A ciência não nos permite mais (e já é muitíssimo) do que operacionalizar o mundo através de um regime de objectificação (e sua subjectividade inerente), com o qual a filosofia está em diálogo, mas em relação à qual não dobra os joelhos.
Mas isso não me obriga a cair num novo monismo de base cientista ou biologizante, segundo o qual o homem é apenas um primata na continuidade dos outros, mais complexo, e pronto (tendência para a qual um "pré-historiador" - que palavra horrível e conceptualmente desgraçada) é facilmente arrastado. Tudo quanto seja um ponto final nas questões (um "já está") é ridículo, dogmático, absurdo, obsceno - por isso a sociedade do espectáculo, em que todos fazemos ou andamos à procura de fazer afirmações certeiras, é ridícula (como certamente eu próprio aqui - deixa-me adiantar à crítica...).
Sei que o conceito de homem e de ciências humanas veio à tona de forma particular com a modernidade, como nos ensinou Foucault. É uma invenção, como muito, tudo o que julgamos ter por certo. Sei que as grandes estruturas do nosso pensamento ocidental, mesmo o mais "radical", assentam nas raizes greco-latinas, como nos ensinou Agamben, e tantos outros. Mas sei também que é preciso sempre ler ou reler os grandes clássicos (e muitos eu não li ainda, ai de mim), como Kant, Hegel, e outros, a nova luz, caldeando tudo isso, numa abertura imensa, com o pensamento da modernidade tardia em que estamos. E ESSA É A TAREFA DE CADA UM POR SI, NÃO PODEMOS SEGUIR NINGUÉM SENÃO ATÉ ÀQUELE PONTO DO CAMINHO EM QUE DIZEMOS: OBRIGADO, AMIGO, POR ME TERES CONDUZIDO A UMA ENCRUZILHADA DE FÉRTEIS DÚVIDAS.
Por isso, interrogo-me, não tenho certezas, nem mesmo sobre o que não sei (formular uma dúvida é já saber a resposta, uma das respostas possíveis ao menos) e movimento-me sem bússola nem sextante neste mar, como navegante solitário, em ninguém absolutamente confiando, como sugeri, e a todos e cada um estando atento para a dica que (eventualmente) me ajudará a encontrar terra. Mas neste oceano ou se encontram poucos batéis que nos ajudem, ou passam ao lados titanics convencidos e inacessíveis.
Interrogo-me: e creio que essa é a condição humana, desde o analfabeto ao sábio. E nessa interrogação vejo algo que (posso estar iludido...) não vejo no olhar dos outros bichos, por mais belo que seja, ou por mais espelho da minha interrogação que eu dele (olhar dos outros bichos) queira fazer. O bicho é o meu alter-ego ideal: projecto literalmente nele o que quero ver. E o olhar de pena por mim, que às vezes parece devolver-me, ou de sofrimento, ou de qualquer pretensa inquietação, é tão só o olhar de um espelho narcísico em que gosto de rever-me.
Eu já nasci dentro da linguagem, constituído por ela. E se ela me permite formular questões, permite-me também perceber (sobretudo a partir do que nos ensinou Saussure) que vivo dentro de um universo de signos flutuantes, e que mesmo a verdade que tanto procuro não é mais do que uma palavra, um conceito, que está dentro do aquário da linguagem. A linguagem fala por mim, diz-me, antes mesmo de eu a dizer, desde bébé. Mas isso ao mesmo tempo permite-me a ilusão fabulosa de pensar, de equacionar questões, de racionalizar. E essa ilusão funciona, de modo que parece que se auto-certifica, que a verdade se presentifica, embora sempre dentro deste aparelho simbólico em que me encontro incluído. A questão é: terá interesse pensar num "Real" no sentido de Lacan, não como algo que esteja em qualquer ponto, mas ao contrário como uma espécie de embraiador último de toda esta minha capacidade de pensar, isto é, de me simbolizar, de não me tornar louco, de crer por vezes que tenho razão, e de que habito um universo estável, com sentido dentro do seu sem-sentido radical?
Não sei.
Acho que eram estas as últimas palavras que gostaria de pronunciar antes de morrer, nesse momento em que o terror e/ou a dor nos paralisam: não sei, não me chateiem mais, porque volto para o nada de onde vim (o tal Real?), e os meus restos descompostos não vão, felizmente, responder nem questionar-se. Já vi o filme, estou cansado de ser bicho inquieto.


2 comentários:

Gonçalo Leite Velho disse...

Hmmm, esta das últimas palavras lembra-me (o óbvio) "Rosebud"...

Vitor Oliveira Jorge disse...

Fui-me relembrar disso... e no blogue http://www.lainsignia.org/2005/febrero/cul_014.htm
encontrei isto, que me permito transcrever:
"O enigma Rosebud


Nei Duclós
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2005.



Ninguém decifra o enigma Rosebud em Cidadão Kane. A solução da charada morre junto com o personagem , fechando o círculo onde se encerra uma vida privada, a única com existência real, já que o perfil público do homem que construiu um palácio de Mil e Uma Noites é pura representação, tragédia e deboche. Chamá-lo de cidadão é apenas uma ironia, pois se tratava de um déspota, que usou a riqueza para ludibriar a democracia. Disseram horrores sobre o que significa Rosebud, algumas impublicáveis, como a que se referia ao que a amante de Kane trazia encerrada nas vestes de luxo. Mas a complexidade do enigma é a sua simplicidade: Rosebud é uma palavra, gravada num brinquedo da infância e foi proferida na hora da morte, quando tornou-se uma bolha de vidro que rola pelo chão para ocupar aparentemente a periferia de um drama, quando na verdade é o seu centro oculto e indevassável. Por ser uma palavra que ninguém decifra e não um objeto, Rosebud é a essência de uma impossibilidade: a de o espectador jamais fazer parte do filme que o exclui, mesmo que saia do cinema com a impressão que entendeu do que se tratava. Essa armadilha, a mais genial da história da sétima arte, transformou Orson Welles no mais cultuado cineasta do mundo e fez sua obra-prima ocupar o topo de todas as listas dos melhores filmes de todos os tempos."

Tenho de rever o filme...