quarta-feira, 3 de junho de 2009

jogo


A nudez atrai? A nudez nunca é nua (ou seja, como tal não existe): o corpo sem roupas continua a ser um universo de signos. O próprio facto de um corpo se apresentar sem roupa é um trazer para a frente violento de um conjunto de signos, não os que estavam tapados (e que por só podermos entrevê-los ou adivinhá-los "funcionavam" de outra maneira), mas evidentemente os que são criados por esse destapamento. É o próprio destapamento, o seu movimento, ou intenção imaginada de tal acto acontecer, que desponta eventualmente o interesse. Um corpo desnudado não é uma verdade desvelada, é um outro tipo de encenação. Claro. Por isso o corpo do naturista, o corpo erótico e o corpo pornográfico (entre múltiplos) são coisas totalmente diferentes. Uma mulher que amamenta em público tira aos seus seios qualquer pregnância erótica, por exemplo - eis uma banalíssima ideia. E no entanto, tudo depende de quem e como olha para ela, nessa sobre-exposição de si.
Não existe uma realidade feminina, existem mulheres, cada qual diferente da outra.
Por isso não tem sentido por exemplo perguntar: por que atrai a nudez feminina?
O que seduz é o jogo das permutações e metamorfoses, sobretudo se forem sustentadas, isto é, se uma pessoa tiver algo para além dela que valha mais que ela: é esse o foco da sedução. A sedução é uma força, num certo sentido produz-se, mas a maior parte das vezes esfarela-se no ar: não há ninguém que se deixe seduzir por aquilo que alguém pensou, sentiu, intuíu ser irresistível.
A parafernália dos arranjos femininos, no seu sentido corrente (moda, roupas, sapatos, maquillage, cabeleireira, etc) sempre me fez um bocado de impressão: para quê tanto adereço em cima de algo que podia ser sedutor num sentido mais económico?... pois se uma simples reflexão genuína ou um evanescente gesto são o que nos prende e seduz... de uma forma tão subtil e fina! O mesmo à medida que observo o masculino e os seus tiques e arranjos. E quando passamos para as trans-sexualidades, bi-sexualidades, homosexualidades, fenómenos tão comuns, a estranheza (não repulsa nem menor consideração) acentua-se: é uma catadupa de máscaras, de enigmas. Não estou com isto a naturalizar a heterossexualidade e a considerar os outros fenómenos marginais; longe disso. Faz tudo parte da panóplia estranha do humano.
Qual, apesar de tudo, o meu modelo de uma nudez feminina? Não tenho, é impossível definir, precisamente, tal generalidade: há uma textura e uma movimentação físicas que são algo de enigmaticamente atraente quando se apresentam desprovidas de artifícios demasiado evidentes. É no disfarce dos artifícios que está a performance perfeita, quando o artificial se cola à imagem espontânea, quando o longamente fabricado se apresenta como nu de fabricações e artificialidades: na pura presença do seu oferecimento. Mas, tal como na banal performance, ela tem sempre de ter um grão ou ruído, uma falha, um "pequeno objecto a" por onde se insinua a nossa atenção desejante. A performance perfeita é a da máquina, ou do monumento: esfria, assusta, torna impotente. Ora o acto de alguém se entregar a outra pessoa/ corpo, a essa mistura do abismo, é sempre muito complicado, é, como toda a decisão, uma loucura. Também da parte do masculino (pelo menos do masculino heterossexual em relação ao feminino do mesmo "tipo") todo o cuidado é pouco, porque qualquer objectificação do (a) outro(a) pode conduzir ao falhanço, à sobreposição da vigilância relativamente à imersão: eu não posso deitar-me ao abismo e ao mesmo tempo ficar na margem a ver-me cair. Mas isso acontece. E no homem não há modo de disfarce: não se pode encenar credivelmente um orgasmo, para ir à crueza das coisas! De modo que neste campo as mulheres têm um poder enorme.
Tudo isto é complicado, e longe, bem longe, da maquínica congeminação médica ou sexológica. Um corpo nu é em princípio um evento, porque não há em geral nudez ou semi-nudez pública, excepto em certos locais designados. Mas um evento que pode ser uma catástrofe. E é dessa catástrofe, mais até do que da contaminação (esquecida lamentavelmente na nossa loucura) que temos medo, ao aproximar-nos de outrem sob a forma de corpo: que nos irá esperar? Quem (o quê) se nos entrega assim sob a forma do mais disfarçado desamparo? Quem come quem? Quem deglute quem? Este é o jogo social todo, nos seus extremos. Um jogo de poder, como sabemos há tanto tempo, dentro de uma sala forrada de espelhos, incluindo tecto e chão.


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