Obviamente o tema da representação não pode reduzir-se apenas à questão da imagem, mesmo que tomada no seu sentido mais alargado. Porém, nas reflexões a seguir, na sequência de uma leitura de J - L. Nancy ("La représentation interdite", op. cit. numa das postagens anteriores, pp. 13 a 39), procurarei inspiração para a maior amplitude problemática possível, que conecte várias questões sumamente importantes, em particular para um arqueólogo como eu.
A questão do irrepresentável (que tem a ver com a do testemunho e da testemunha, e com a formação de um discurso que dê conta de acontecimentos que se produziram na história recente e sobre os quais há uma particular dificuldade de dar testemunho, de discernir os seus limites, de lhes atribuir um sentido para além de todo o sem-sentido com que nos aparecem, como o Holocausto) tem-se posto muitas vezes na história.
É claro que não há irrepresentável em si: isso depende do ponto de vista e do que se entenda por representação: se nomeio algo como irrepresentável paradoxalmente já o estou a trazer para dentro da ordem da representação, já o estou a representar pela negativa.
A mim importa-me muito o seguinte: aquilo a que convencionámos designar "pré-história", adentro de uma lógica de história sequencial, de um discurso continuista, cronológico, faseado (condenado por Nietzsche e tantos outros) tem sido apresentado, de certo modo, e no limite, como um irrepresentável. Que quero dizer com isto? Que se trata de uma "realidade" (e aqui é que pode residir um dos nós do nosso problema, pois essa realidade é um produto conceptual nosso, obviamente) sobre a qual não temos grandes "pontos de apoio", apesar de toda a "profusão informativa" recolhida desde o século XIX. Há coisas óbvias: estamos a tratar com restos, restos materiais, não com pessoas em acção nem com discursos que estas emitam.
A "arqueologia pré-histórica", para usar esta expressão convencional, lida com uma dupla ausência: a ausência de pessoas, de comunidades, e a ausência da maior parte das coisas, dos objectos materiais (que os arqueólogos se habituaram a designar "cultura material") com que elas viviam, e que evidentemente não reflectem intenções ou, mesmo, configurações mais sólidas, agrupadas dentro de "comportamentos culturais". Temos restos de restos.
Essa quase impossibilidade de estabelecer uma memória que resulta da "dupla condição de ausência" da realidade arqueológica pré-histórica, quase se poderia, in extremis, pôr em paralelo com a de um fenómeno contemporâneo que à primeira vista nos aparece como irrepresentável: o do campo de extermínio. De facto, os nazis pretenderam eliminar um povo e também os testemunhos, vestígios ou restos dessa operação de eliminação. Como diz Nancy (op. cit, p. 15): "Os campos de extermínio são um "empreendimento" de sobrerepresentação, no qual uma vontade de presença integral concede a si própria o espectáculo da aniquilação da própria possibilidade representativa."
Ou seja, os nazis perpetraram uma acção que deveria existir e extinguir-se perante os seus olhos, sem resto. Por isso nos é impossível avaliar com precisão qual a extensão exacta das vítimas atingidas: é o incomensurável contemporâneo.
De certo modo, no caso da "pré-história", estamos perante um incomensurável também. Desejámos ver o teatro da "passagem" da natureza à cultura, do animal ao humano, do símio ao homem - e montámos uma formidável máquina de inquérito. Ao mesmo tempo, e em relação com esse processo, estudámos as sociedades de outras culturas como "fósseis", totais ou parciais, indicadores do nosso próprio passado. E fomos no engodo de uma antropologia que nos prometia, se associada à arqueologia, contribuir para insuflar vida num registo morto, duplamente morto. Só hoje estamos a perceber os pressupostos filosóficos, por assim dizer, de tal desiderato. Estamos com o infinitamente residual e singular (cada contexto ou micro-contexto) e com o infinitamente geral (as grandes teorias da "evolução da humanidade") e não temos, em bom rigor, o forro dessas duas paredes que se afastaram enormemente uma da outra. Não é motivo para preocupação, é apenas motivo de reflexão para melhor ajustarmos as nossas expectativas às nossas realidades, sobretudo ao carácter embrionário do nosso trabalho, do ponto de vista conceptual, de que muitos arqueólogos não estão suficientemente conscientes (nem a arqueologia empresarial ou de emergência está vocacionada, pelo seu próprio ritmo, quer para o registo rigoroso e intensivo quer para a problematização do mesmo, tanto cá como no estrangeiro).
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