Fonte: Porosidade Etérea http://porosidade-eterea.blogspot.com/
SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA FÁBRICA DE BRAÇO DE PRATA
Há momentos em que o desorganização urbanística da cidade joga a favor dos cidadãos. Eles têm a oportunidade de ressuscitar edifícios e cenários temporariamente abandonados nesses longos intervalos entre a passagem para novos proprietários e a aprovação de projectos para outros usos ou outras formas. E, quando o próprio município vem legtimar essas ocupações provisórias, então podemos dizer que vivemos numa cidade onde o caos está abençoado pelos deuses. Foi o que aconteceu com a Fábrica de Braço de Prata. O edifício da administração da antiga fábrica de material de guerra estava abandonado desde o final da década de 90. A empresa Obriverca que tinha comprado toda a área da fábrica, tinha poupado aquele edifício no processo de demolição. Por acordo com a Câmara ele seria doado ao município, assim como algum terreno envolvente, no momento em que a construção do condomínio de luxo Jardins de Braço de Prata estivesse concluído. Mas o processo foi embargado em 2002 e tudo ficou entregue à poeira e aos ratos.
Entretanto a Livraria Eterno Retorno andava sem abrigo desde 2005. Desde Julho desse ano que tinha aceite encerrar as suas instalações na Rua S.Boaventura (Bairro Alto) para se juntar ao exílio de outra livraria sua vizinha, a Ler Devagar, obrigada a abandonar o edifício onde se encontrava desde 1999 por este ir ser demolido. Só que a fusão provisória entre as duas livrarias se revelou muito triste. Os únicos lugares de sobrevivência encontrados eram minúsculos. Por outro lado, a Eterno Retorno fora reduzida a parceira invisível das duas novas livrarias Ler Devagar criadas no Bairro Alto (na Galeria Zé dos Bois e na Rua da Rosa 145). A solução surgiu pela mão de um irmão meu. Enquanto um dos responsáveis pelo projecto Jardins de Braço de Prata, ele pôde propor à Administração da Obriverca estabelecer um contrato de comodato com a Eterno Retorno de modo a permitir que a livraria aqui se instalasse enquanto se esperava pelo licenciamento do projecto imobiliário. Alguns dias antes de começar as obras de recuperação, a direcção da Ler Devagar pediu para se juntar à Eterno Retono na aventura da Fábrica de Braço de Prata. Ficou acordado então que a Ler Devagar teria a responsabilidade dos livros (gerindo o próprio acervo da Eterno Retorno) enquanto todas as outras dimensões da Fábrica – bar, concertos, exposições – seriam geridas pela Eterno Retorno. Depois de sete dias de trabalhos intensos, com muitos voluntários e algum investimento, inaugurou-se a 14 de Junho de 2007 um novo templo de alegria e de pensamento.
O que aconteceu entretanto deixa-se exprimir em alguns números. Ao fim de dois anos, apresentaram-se na Fábrica de Braço de Prata perto de 400 grupos musicais (entre Jazz, Pop/Rock, Fado, Reggae, Música de Câmara). Foram feitas 128 exposições de artistas plásticos (pintura, fotografia, desenho, escultura, graffiti). Recebemos quatro companhias de teatro e uma de circo e acolhemos mais de 30 ciclos de cinema e documentário. Organizámos 76 conferências e perto de 50 lançamentos de livros. Fizémos mais de 30 festas de lançamento de discos. Na tenda de circo que comprámos em Fevereiro de 2008 realizámos 22 concertos para públicos muitas vezes superiores a mil pessoas. No total de concertos conseguimos fazer transitar das carteiras das pessoas que a eles assistiram para os bolsos dos músicos que os realizaram cerca de 160 mil euros. A Fábrica não ficou com qualquer percentagem dos dinheiro dos bilhetes. O mesmo aconteceu com as obras de arte que aqui foram vendidas. Aos cerca de 30 mil euros de peças vendidas durante as exposições, a Fábrica cobrou 0%. Alguns artistas agradeceram-nos oferecendo-nos obras. Vamos assim criando uma colecção de artes plásticas da própria Fábrica. Criámos uma “Oficina Impossível”, com venda de antiguidades, artes plásticas, ourivesaria e objectos em segunda-mão. Uma comunidade de aproximadamente 60 beneméritos tem feito ali circular coisas lindíssimas de que já não precisava. Outra benemérita que quer manter o anonimato tem cuidado do espaço exterior, insistindo em transformá-lo num jardim. O alecrim já cresce em alguns lados. A pintora Joana Villaverde continua a trabalhar no seu atelier e a abri-lo ao público no último fim-de-semana de cada mês. Um atelier de restauro de móveis e de obras de arte vai inaugurar ainda este mês. No início de Junho, com a ajuda de um grupo de estudantes Erasmus da Faculdade de Belas Artes, desbravámos algumas salas do último andar para aí montar uma exposição. Dá para perceber que esse será o novo continente a colonizar para mais espaço de concertos e de exposições.
A partir de Outubro de 2008 os artistas Teresa Carneiro e Luis Gomes propuseram ocupar duas salas da cave, onde, em Novembro de 2007, tinha sido criada a Galeria Graffiti pelo colectivo VSP. Depois de muitas obras de restauro, eles conseguiram inventar o Drawing Space. Ali se têm organizado mensalmente grandes exposições de desenho, com artistas portugueses e ingleses.
Para nos aconselhar na programação das exposições, concertos, performances e conferências convidámos alguns amigos a formar uma Comissão Científica. São eles, por ordem alfabética, Abel Neves, André Gomes, Bruno Dias, Daniel Schvetz, Diogo Dória, Fabrice Ziegler, João Inácio, Luis Bragança Gil, Teresa Cascudo.
Em Junho de 2008, no primeiro aniversário da Fábrica, oferecemos à comunidade dos nossos amigos uma ópera encomendada ao compositor Daniel Schvetz. A comunicação social foi generosa e a notícia apareceu em quase todos os jornais e televisões. No início de Julho o próprio New York Times dedicava um artigo de fundo sobre Lisboa enquanto destino cultural e dava um enorme destaque à Fábrica de Braço de Prata.
Um mês depois do primeiro aniversário a Câmara Municipal de Lisboa aprovava em Assembleia Municipal duas medidas fundamentais para o destino da Fábrica de Braço de Prata. Licenciou finalmente o projecto Jardins de Braço de Prata e decidiu, por proposta do Movimento Cidadãos por Lisboa, conceder a gestão da Fábrica à Livraria Eterno Retorno logo que o edifício passasse para propriedade do Município.
Infelizmente, o proprietário da Obriverca não foi sensível ao fenómeno cultural e cívico que se tinha criado em apenas um ano no edifício que ele tinha cedido à Eterno Retorno. Informou-nos, por isso, que teríamos que abandonar a Fábrica até ao final de Agosto. Só a intervenção pessoal da Arquitecta Helena Roseta, eleita como vereadora pelo movimento Cidadãos por Lisboa, impediu que enquanto o edifício não fosse propriedade da Câmara – o que só acontecerá quando, do outro lado da avenida, estiver concluída a urbanização – ele fosse transformado em stand de venda dos futuros apartamentos de luxo. Foi a Arquitecta Helena Roseta que conseguiu um acordo com o proprietário da Obriverca, em nome da Câmara, que permitiu que a Fábrica continuasse a ter um uso cultural até ao momento em que passasse para propriedade do Município, uma vez que a Câmara já tinha decidido que esse seria o destino daquele edifício quando essa posse se concretizasse. Assim, no dia 30 de Julho de 2008, a Eterno Retorno recebeu uma carta, assinada pelo Dr. António Costa, enquanto Presidente da CML, informando-nos de que a Câmara tinha decidido ceder-nos desde já a gestão da Fábrica, e por um período e segundo um regime a determinar posteriormente. Isso dá-nos o direito de sonhar com a nossa permanência naquele porta-aviões encalhado à beira do Tejo por mais muitos anos. Há quem lhe chame “o milagre de Braço de Prata”.
O sucesso da Fábrica de Braço de Prata teve ressonâncias em outros lugares da cidade, igualmente vítimas da desorganização urbanística. Os proprietários dos edifícios da antiga Fábrica do Açucar e de várias oficinas abandonadas em Alcântara, decidiram criar um novo espaço cultural e de comércio que designaram como LX Factory. Enquanto não vêem aprovado o licenciamento para ali construirem um novo bairro habitacional e de comércio, transformaram os vários espaços devolutos em algo semelhante à Fábrica, se bem que a uma escala muito maior. Nesse sentido convidaram a Ler Devagar a instalar uma grande livraria em um dos edifícios, constituindo assim o núcleo dinamizador de muitas outras empresas que ali se iriam abrigando. E no dia 23 de Abril deste ano a nova Ler Devagar inaugurou um enorme cenário de livros, bar, galeria e sala de concertos na Lx Factory, ou seja, uma réplica do que tinha sido inventado em Braço de Prata Em consequência, a Ler Devagar, que na Fábrica cuidava apenas da venda de livros sem qualquer intervenção na programação ou na gestão do bar e dos concertos, reduziu a sua presença a uma única sala de livraria. As outras salas de livros passarão a ser geridas pela Eterno Retorno.
Agora fazemos dois anos de vida. Foram experimentados dia a dia. Temos encargos mensais que ultrapassam os 6 mil euros, entre pagamentos faseados de pianos e de aparelhagem de som e imagem, prestações aos bancos, água e luz, limpeza diária, sem contar com os salários dos muitos colaboradores (que oscilam entre os 6 e os 8 mil euros por mês). Tem sido difícil, uma vez que não recebemos qualquer subsídio ou ajuda financeira.
Isso não nos impede de ter milhares de novos projectos. Vamos construir casas de banho junto à tenda de circo de modo a conseguirmos ver reconhecido pelo IGAC aquele espaço imenso como recinto de espectáculos. Vamos recuperar as salas do último andar para as transformar em novas galerias e em auditórios para 300 a 400 pessoas. Queremos montar um estúdio de gravação para os nossos músicos, com edição independente. Queremos também criar uma editora especializada em livros de Filosofia. Vamos fazer regularmente seminários de estética e filosofia da arte. Esses seminários realizam-se a partir da próxima quarta-feira, dia 17 de Junho. Uma quarta-feira por mês discutiremos com os artistas plásticos expostos nesse mês nas nossas galerias. Outra das quartas-feiras será com alguns dos músicos que fizerem parte da nossa programação também nesse mês. As outras duas quartas-feiras serão para as artes vídeo e para as artes da escrita. Acreditamos potenciar os cruzamentos de linguagens e de experiências entre as várias comunidades artísticas que vão habitando a Fábrica, precisamente nos períodos em que os seus trabalhos estiverem visíveis/audíveis/legíveis.
Também acreditamos que esses seminários podem servir de núcleo gerador de uma Universidade de Pós-Graduação, em regime de instituição privada, unicamente dedicada à Filosofia e às Artes. Temos instalações óptimas para receber aulas teóricas, assim como aulas práticas nos domínios das artes plásticas, cinema, fotografia e música. As 24 salas nos três pisos, incluem já um restaurante, uma sala de projecção, três salas de concertos.
Sabemos que muitas das pós-graduações oferecidas pelas instituições que fazem parte da nossa paisagem académica são apenas formas de reciclar docentes que há muito deixaram de investigar e que se perpetuam cinicamente em cursos que eles mesmos desprezam. Ora, existe hoje uma imensa população de jovens dotados, com doutoramentos de alto nível nas áreas da filosofia, das ciências humanas e das artes, muitas vezes feitos em universidades estrangeiras, que nunca terá condições para entrar para as universidades públicas. A possível Universidade de Braço de Prata poderia integrar os melhores desses jovens. Por outro lado, através de protocolos de colaboração com alguns Departamentos universitários, teria condições para contar com a colaboração regular de grandes especialistas, nacionais e estrangeiros. Assim se ofereceria a novas gerações de alunos a experiência de cursos de pós-graduação em filosofia e artes, de grande rigor e marcados pelos programas teóricos mais relevantes da agenda contemporânea.
Por tudo isto, vamos fazer uma festa de aniversário amanhã, domingo, dia 14 de Junho. Esperamos que todos aqueles que, durante estes dois anos, ao visitarem-nos, ajudaram a fazer da Fábrica de Braço de Prata uma ilha de alegria e de beleza, queiram vir festejar connosco.
Haverá jantar e um concerto com alguns dos músicos mais fundamentais da Fábrica, como Maria João, Carlos Barreto, Júlio Resende, Marta Plantier, Helder Moutinho, Ricardo Parreira, Marco Oliveira, Yami, Caroline Dawson. Terão ainda a oportunidade de assistir à última representação da performance Experiência Variações, da Companhia Cassefaz, com encenação de André Murraças, instalada em 8 contentores junto à nossa tenda de circo.
Até amanhã
Nuno Nabais
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