quarta-feira, 10 de junho de 2009

suspensão


O sistema capitalista (caracterizado pela sua "lógica de acumulação do lucro e de captura do valor", no dizer de Yann Moulier Boutang, "Le Capitalisme Cognitif", Paris, Éd. Amsterdam, 2007, p. 69) que há séculos, na Europa, destruiu o feudalismo e depois as monarquias clássicas, criando um novo tipo de vida e de filosofia no Ocidente (hoje em vias de se implantar em todo o mundo, embora de forma muito complexa e polifacetada, como é evidente) é um sistema que, com o seu grande poder de adaptablidade, mudou a história, parecendo, pelo menos no curto e médio prazo, ter de certo modo posto fim à dita história, no sentido, obviamente, de que tudo o que possa vir de novo não se situará nunca fora dos quadros (extremamente elásticos) do próprio capitalismo... Parece ser esta a ideia dos que não vêem outro futuro que não seja uma reforma das deficiências actuais do sistema mundializado, sejam eles de direita ou de esquerda reformista (incluindo o chamado socialismo em liberdade, ou social-democracia). 
A igualdade tendencial dos seres humanos como utopia, que parece estar dentro dos princípios cristãos mais modernos e arejados, e da democracia (o facto de todos terem nascido teoricamente iguais e livres em direitos, perante Deus e/ou perante a lei) é a médio e longo prazo compatível com o empreendedorismo, ou seja, com o capitalismo, no sentido de futuramente cada um vir a ser o proprietário (ou co-proprietário) de si próprio, ou seja, da sua empresa, num mundo quase perfeito de empreendedores sem resto, sem desperdício, de produção para a felicidade e realização humana, isto é, sem exploração do trabalho (dantes, muscular, agora intelectual e afectivo dentro do chamado capitalismo cognitivo ou da economia do imaterial), sem exploração, como se dizia, do homem pelo homem? Não era esse o horizonte utópico do progresso, o de uma escatologia de felicidade na terra, em substituição de uma felicidade "noutro mundo" que não se sabe qual será, que não dá nem pode dar a mínima garantia palpável, sólida, para falar em linguagem económica?...
Se sim, estaríamos no caminho certo, o de uma história de melhoramento do mesmo, e o que há são disfunções do sistema, imperfeições que o tempo corrigirá. Porém, um olhar rápido de soslaio para o estado do mundo e para a finitude dos bens não renováveis (para a iminente catástrofe ecológica global) deveria levantar suspeitas a qualquer pessoa que não fosse de uma ingenuidade total. 
Talvez não seja este o sistema melhor, talvez esta opção não leve a nada a médio prazo senão à destruição da humanidade por si mesma. Catástrofes já houve muitas, mas desta vez a espécie humana tem nas mãos armas (nuclear e por aí fora) que são capazes de causar a destruição irreversível do mundo habitado, mesmo que antes um conjunto de privilegiados consiga escapar-se para outro ponto do sistema solar (ele próprio com os dias contados, parecendo que a chegada a outro ponto do universo para lá do sistema solar é qualquer coisa ainda de impensável). 
A predação do mundo, transformado num conjunto de "recursos", é diária: nunca houve sistema tão predador como aquele que vivemos, e as irreversibilidades também. As tentativas (genuínas ou propagandísticas) para corrigir erros, originam novas perdas e gastos, deslocando apenas o problema de um lado para o outro (por exemplo, lixo tóxico provocado pelos países mais ricos e "exportado" para outros países). 
Então, é este um sistema reformável? Pode este tipo de organização da economia, com todas as suas "externalidades" (que conceito fabuloso) sustentar-se?... só um idiota ou um hipócrita iria responder afirmativamente. O que acontece é que o capital e seus directos aliados tem evidentemente dinheiro para pagar a pessoas preparadas para, constantemente, em tempo real, fazerem cenários e estudarem estratégias de contorno das crises (ou de fabuloso controlo do espaço social através dos media e de outros meios sofisticados, que abrangem o sistema de produção de conhecimentos por inteiro) incluindo as que apanham de surpresa a maior parte das pessoas, como a bancarrota de instituições do sistema financeiro e de grandes empresas prestigiadas.
Não seria mais racional, sem recuperar mais uma vez modelos passados, pensar um outro tipo de sistema? Mas o racional o que é? Quem o determina, em função de que interesses? Essa a herança incontornável de Marx: o mundo é um imenso complexo de interesses em disputa, qualquer afirmação, discurso ou lance parte sempre de um interesse em detrimento de outros. O problema é que a maior parte dos que estariam interessados em imaginar um novo sistema o não podem fazer, porque é um problema de cultura, quer dizer, são normalmente as classes no poder que têm também o poder de pensar novas formas de organização, e em geral o suicídio não é a atitude expectável: ninguém cede o poder que tem a não ser que seja obrigado pela "vaga dos acontecimentos".
Estamos portanto numa "pescadinha de rabo na boca" da qual só se poderia sair se, mais uma vez, camadas das classes com acesso ao conhecimento chegassem a um grau de mal-estar suficiente para daí se gerar uma revolta não circunstancial, mas sistémica, quer dizer, uma transformação real do modo de conceber o humano, o valor, a vida, uma transformação geral da "oikonomia" do mundo.
É isso possível? Quem somos nós, seres históricos, para poder dar uma resposta? Mas a suspensão da resposta é já uma resposta. 
A suspensão da resposta, e a reflexão sobre o que poderá (poderia) ser esse sistema alternativo, que ainda fosse eventualmente a tempo de nos salvar do cancro que sistemicamente tomou conta do mundo, é uma postura de esquerda. Não se trata de procurar um fármaco para eliminar as maleitas conjunturais, no quadro dos menus que se nos apresentam (da "esquerda" à "direita" que estão no terreno, que se nos propõem hoje como "alternativas"). Mas de um recuo intencional e voluntário em relação à acção directa, imediata, uma negação da interpelação do poder (então, se está descontente, diga lá como faria!), uma suspensão para poder pensar.


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