domingo, 14 de junho de 2009

ressaca


A diferença do relacionamento de um homem (heterossexual, pressuponho) e de uma mulher (sensível à masculinidade, pressuponho) em relação ao relacionamento com um indivíduo do mesmo género (no sentido inglês de "gender") é que, por mais "intelectual" ou "neutra" que aquela primeira relação seja, uma amizade ou um puro encontro profissional, do outro lado está sempre um corpo, essa noite ou abismo de um corpo como máquina potencionalmente activante e activável. O fascínio da aproximação da mulher é no limite o de um abismo: a experiência do sublime, mesmo que em pura potência, quer dizer, sustido sempre no limite anterior de "passagem ao acto". Nesse sentido, toda a relação homem-mulher é sexual, o que não contraria a ideia de Lacan de que tal relação não existe. É sexual na medida em que essa é a maneira moderna do fantasma do outro sexuado nos aparecer, é o produto do regime moderno de invenção do sexo como paradigma último que substituíu a unidade de deus. 
O regime do sexo (hetero ou homo) é sempre o regime da dispersão, do múltiplo (da série em vez do modelo), da experiência, e não o da concentração ou unidade: é o do fluxo, e não o da intensidade; é o da retenção de tudo o que se pode fazer, e esse tudo não tem limite nem conformação (confim); é em suma o sistema da procura indefinida, da dispersão do desejo. O ênfase que as pessoas apaixonadas dão ao seu estado alucinado é a outra face do desencanto e da solidão modernas, quer dizer, do vazio reencontrado aquando da consumação da paixão. A nossa época praticamente só conhece duas faces: a da avidez e a da ressaca, sendo o ápice (o entre) um momento mínimo, porque não se sustenta debaixo de nenhum princípio estável, por maior que seja o investimento. O desejo alimenta-se exactamente da dose seguinte, não da actual: nunca há uma última dose que o complete. Somos todos ressacados de uma desilusão antecipada. Por isso a vida é uma espécie de procura (sobretudo para ser mostrada) de ápices que o não são.
Creio que, tal como nos filmes de Bergman, no meio disto só os artistas se salvam. E os inocentes, é claro, que acreditam ainda. Ou se convencem disso, o que em última análise é o mesmo, porque a crença é auto-alimentada: uma vez implementada, procura as suas justificações a posteriori: tudo é razão para acreditar naquilo de que já se decidiu nunca abdicar. É o autismo levado ao seu extremo caricato: mas obviamente funciona.

 

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