terça-feira, 13 de março de 2007

Mulher


Na nossa vida existem pelo menos três figuras da mulher, que permanentemente recorrem e por vezes se sobrepõem: a da mãe, na qual procuramos uma protecção e uma orientação, um modelo, uma identificação primeira: é a figura do amor como amizade e companheirismo, a da confiança, em que permanecemos ligados à experiência infantil. Naturalmente que para que essa dependência não seja patológica é necessário o terceiro elemento, o pai, que nos faz desligar da mãe como posse narcísica, fazendo-nos crescer em autonomia, ou seja, aceitando a inevitabilidade de que fomos gerados pelo amor da mãe por um elemento externo a nós, o pai (triângulo edipiano).
Essa mãe não nos pertence, em termos de amor narcísico – e na sua radicalidade outra, a nossa consciência de abandonados no mundo à nossa sorte é o que nos faz ascender à idade adulta.
Muitos seres humanos nunca passam provavelmente desta fixação primeva na mãe como provedora das primeiras sensações eróticas, e daí talvez terem dificuldade de encontrar uma relação com outro adulto (sei que, aqui, simplifico até à caricatura).

À figura da companheira contrapõe-se a figura da amada, da amante, da atracção para o outro absoluto, da vontade da diluição no outro por via do desejo incontrolável: é a figura da paixão, da mulher ambígua, porque nos ama e portanto ao mesmo tempo nos quer diluir, absorver, comer, engolir. É o bem e o mal reunidos no prazer e na desgraça que se lhe sucede em todas as tragédias (excluo a da morte do amor por indiferença, para simplificar as coisas). Esta figura é a do mistério, da profundidade, da liquidez, da caverna, talvez da nostalgia do útero a que quereríamos regredir; é também a figura da morte, da agonia extática, mística e erótica. É o grito do prazer que anuncia o grito daquele que cai no abismo. Apelo terrível, tentação medonha, desejo insensato – e no entanto sem ele não haveria vida.
Claro que a banalização de tudo isto como ideologia contemporânea e seu aproveitamento publicitário são óbvios: a expressão “fazer amor” (importada do inglês, como também “ter sexo”) é talvez a mais terrífica das expressões, porque transforma em acto maquínico a união das pessoas na sua forma mais íntima, mais tendente à fusão: isto é, transforma em espectáculo repetitível (para a consciência, imaginação de cada um) o que é acontecimento sempre único e abissalmente perturbante. Mantém a cesura onde se quereria a todo o transe unidade. Transmuta o próprio “coração” do desprendimento, da evanescência, em coisa, reificando e ordenando, canalizando a mais radical desorientação, sempre inesperada. Transformando a união das pessoas em imagem, pornografia delas mesmas. Mas é desta realidade que a nossa sociedade está embebida até às vísceras.

Temos depois uma terceira figura, que é a figura da ambiguidade, a da mulher como filha (não tenho a experiência, mas arrisco a minha perspectiva). Muitos adultos só são capazes de se relacionar com uma figura que esteja sob o seu domínio, que seja objecto de submissão, que, tal como a primeira figura referida (a da mãe) exclua o jogo, o perigo e a tensão do desejo entre iguais, entre adultos. Julgo estar aqui a perversão, o abuso criminoso da pedofilia – a utilização do outro como robot ou boneco, mas como um objecto de erotismo, porque apesar de tudo uma criança tem, como sabemos desde Freud, uma vida erótica que uma coisa obviamente não possui (precisamente por uma criança não poder controlar como adulto o seu erotismo é que não se pode usar dele).


É bem sabido quanto os mecanismos do desejo são muitíssimo mais amplos do que aquilo que se designa habitualmente como sexo, como Foucault mostrou: o sexo é uma invenção contemporânea, uma forma de objectificação do corpo (e de certas das suas zonas em particular) para melhor o sujeitar a uma visão totalitária, a um escrutínio que não é sobretudo de fora para dentro, mas também de dentro para fora. O corpo é submetido a toda uma orografia erógena que vai qualificando as várias partes, como uma paisagem exposta. Possuidor de “um sexo”, cada indivíduo adulto passa a ter a obrigação de se realizar a esse nível numa cadeia de outros itens, como sejam o sucesso profissional, social, intelectual, etc. – desembocando na sociedade do consumo desenfreado de si mesmo, do seu gozo próprio. A última “mercadoria” de cada um de nós é ele mesmo, claro. Uma pessoa consuma-se e consome-se no consumo de si mesmo (a) como pessoa desejante, e para tal está sujeita à tirania da imagem desejável - à tirania do espelho.


Tradicionalmente, a família servia como écrã confortável para toda esta complexidade: desde que se mantivesse as aparências institucionais, na sombra podia fazer-se tudo o que se queria. Mas eis que a interiorização (o “cuidado de si”) progride, até por via dos crescentes conhecimentos dos indivíduos, seres de auto-vigilância. E a lei – e a moral pública – acompanha essa extensão dos processos correlacionados de interiorização individual e de visibilização pública que estoiram com os quadros tradicionais do segredo, com as formas viablizadas pela ocultação pré “sociedade da norma e da informação”. Sociedade do rastreio e do arquivo, das bases de dados e da detecção do “desviante”.

O ser humano é um ser da ambiguidade: veja-se por exemplo "A Lição" de Ionesco, de que me recordei de momento, sobre toda a ambivalência da relação pedagógica! Sem essa ambivalência não passaríamos de autómatos.

Provavelmente, em quase todas as relações com outros seres humanos, cada um de nós experimenta alternadamente estas três figuras a que acima aludo, as quais procura centrar, equilibrar, sem nunca o conseguir: a do primeiro amor, a que fomos submissos, e cuja rememoração que nos traz paz, tranquilidade; a do último amor (ou seu produto de que jamais nos vamos libertar, separar), que quereríamos submisso (figura filial), com toda a ambiguidade libidinal inerente; e a do amor intermédio, que nos traz para a paixão da vida e para o fogo do devir. Que nos irrequieta, mas é o único que nos faz sentir vivos, respirar. Por ele ansiamos continuamente, numa procura sem fim, porque ele é o presente aberto ao futuro, o presente livre (mitologicamente livre, mais uma vez, claro).

Que me desculpem os psicólogos tão pobres e frágeis comentários e meras intuições, vistas do ponto de vista masculino, e de um indivíduo de uma certa geração. Mas um blog diferencia-se de um livro nesta maravilhosa oportunidade: a de poder comunicar, partilhar, coisas que estão a um nível de encenação diferente das do texto científico "normativo". Não são mais verdadeiras ou menos verdadeiras por isso - são diferentes, e essa janela foi-nos aberta por esta tecnologia de comunicação, que, como sabemos há muito tempo, é uma tecnologia de produção da própria realidade.

voj 2007

1 comentário:

Vitor Oliveira Jorge disse...

Muito obrigado!
Cordiais saudações e bom êxito!