Guerra
Em princípio, a guerra é uma situação de conflito mais ou menos declarado, generalizado, armado, colectivo, imprevisível no seu desenvolvimento, na sua temporalidade, e nas suas consequências. É a “ferocidade” (palavra que evidentemente se conota com uma naturalização da fera, do feroz, do selvagem) potencialmente “à solta”, mas em geral canalizada pelo poder militar, institucionalizado como atributo do Estado, para certos fins. Há um ethos guerreiro, ou militar (desde logo nas disposições corporais, na maquinização do corpo, na “despersonalização” do indivíduo), que pode eventualmente despoletar algo de imprevisível, mesmo para o próprio Estado, ou poder militarista, que em teoria geral (dita democrática, pelo menos) seria o único a poder legalmente accionar e gerir a guerra. Mas sabemos como essa legalização da violência é constantemente rompida pelos mais diversos meios, no próprio quotidiano pelos chamados “abusos de autoridade”, e das revoluções ao terrorismo, das rebeliões “espontâneas” dos “oprimidos” aos movimentos rivais financiados por interesses internacionais (entre os quais o próprio negócio da produção e venda de armas, ou o dos empreendimentos imobiliários para restauro físico dos paises antes bombardeados).
A guerra não é um universal. É uma designação arbitrária que damos a estados de violência colectiva muito diferentes, implicando contextos sociais, e logísticas, diversificadíssimos. O que se passa é que no nosso pensamento abstraímos certos conceitos, supostamente independentizáveis dos contextos, universalizamo-los, e depois fazemos o movimento oposto de descida, “de volta ao real”, para vermos como se concretizaram, se “actualizaram” aqui ou ali, neste ou naquele tempo.
Quer dizer, criamos artificialmente “temas” para depois os podermos historicizar, traçar a sua “evolução”, sem aparentemente percebermos o logro de partida: é que nos deixámos iludir por uma abstracção nossa. Não se trata de etapas ou fases, ou momentos do devir de um fenómeno único, senão na nossa imaginação: o fenómeno unitário, o conceito, foi assumido, incorporado por nós à partida como uma realidade em si, como uma entidade delimitável e portanto historicizável. A narrativa “histórica” está cheia destas ilusões, de conceitos manipulados como “allant de soi”, quer seja organizada por períodos históricos (“tranches horizontais”), quer por “temas” (“tranches” verticais, supostas facetas do poliedro que é o “humano”, facetas essas que aliás todos os dias se multiplicam – faz-se a história do rosto, dos sabores, das práticas de limpeza, enfim, das coisas mais diversas, como se a delimitação desses “campos” tivesse legitimidade “natural”).
Um exército da Idade Média, em certos períodos, podia conter cem pessoas, ou menos. Na guerra aristocrática europeia havia um “sentido da honra” que reporta a algo que tem a ver com a “nobreza” do “duelo” frente a frente, e em que muitas vezes cada um dos campos solicitava ao oposto que fosse o primeiro a disparar ou a iniciar as hostilidades. Não surpreende que, aquando da revolução francesa (ou aquando de qualquer revolução, quando era tempo disso) as classes instaladas se sentissem injustiçadas, porque nesses momentos não há só uma mudança (temporária ou parcial que seja) de poder, há uma mudança nos protocolos de confronto entre poderes, uma subversão das regras que presidiam antes à manifestação legalizada, à ostentação do conflito.
O jogo é diferente, e em cada época as elites se queixam de que já não há estabilidade, respeito, ou segurança, ou valores de referência, quer dizer, sentem ameaçados os sistemas tradicionais instituídos, muitas vezes não verbalizados, de invisibilização do outro, ou de opressão, com a subida à tona da história de erupções dos revoltados.
Claro que de um certo ponto de vista em qualquer situação histórica há sempre um esforço pela estabilidade e pela conservação do “status quo”, legitimado por numerosos poderes, forças, privilégios, combinações invisíveis, “economias paralelas” a todos os níveis, etc, que nas democracias aparecem sob uma face impoluta (tentar convencer os cidadãos de que o Estado é neutro e de que todos são iguais perante a lei, a educação, a justilça, a saúde, ou seja, os chamados direitos do cidadão) e nas ditaduras se dão despudoradamente a ver.
A guerra de trincheiras de 14-18 inicia um mundo em que o rosto do adversário totalmente desaparece. Há uma “desumanização da guerra”, que se afasta totalmente do tradicional face a face, corpo a corpo, da bravura do corpo. Assim como o regime sacrificial público, espectacularizado, dos condenados do antigo regime “passa à hitsória” para dar origem ao moderno sistema do encarceramento (pena psicológica, vivida em reclusão), como Foucault mostrou, assim também a guerra se torna mais sofisticada, técnica, gerida à distância, mediada por uma tecnologia do afastamento e da visão panóptica (aviação, cartografia, mais tarde satélites, telecomunicações, etc.).
Quando se manda exterminar todo um povo, ou toda uma cidade, como na segunda grande guerra, o próprio inimigo é reduzido a números, a abstracções. E com a primeira “guerra do golfo” é de certo modo a própria guerra que “desaparece” (excepto para os que estão no terreno a sofrer e a morrer): mediatizada, é transformada em espectáculo para ser vista na televisão, como se assistíssemos a uma cruzada dos tempos modernos contra os infiéis; mas estes não têm cara, nem forma, nem existência: o que vemos são luzes de mísseis a cair, como se se tratasse de um fogo de artifício. E depois aparece um ou outro rosto, de um ou outro lado, como ícone da tragédia ou da heroicidade (espectacularização da vitima inocente ou da rapariga-soldado americana resgatada às “forças do mal”. Enfim, uma comédia trágica). No Youtube há um vídeo sobre o enforcamento de Sadam. Etc.
O millitar, o guerreiro, despoleta os mais desencontrados (mas fortes) sentimentos: herói e vitima, ele encontra-se sempre um pouco na margem do social, que o usa e o teme, que o monumentaliza ou dele faz motivo de escárnio. Há um excesso nessa realidade da guerra, mesmo que ela se apresente como necessária, imprescindível mesmo, no sentido de dissuasora do pior, do desmembramento total do social. Por algum motivo o êxtase guerreiro está associado ao amoroso e ao religioso: o enquadramento administrativo da guerra é uma função básica do Estado, que se arroga a legitimidade de itulizar a força ( a violência em grau extremo) sempre invocando o “bem comum.” Num certo sentido, a guerra é a ampliação manifesta do que está em gérmen em qualquer exaltação desbragada, na festa, no rito, no sacrifício, na catarse em qualquer das suas modalidades: é um excesso, para que a normalidade possa voltar (até à próxima guerra), a acontecer.
Por isso, para aqueles que tradicionalmente se habituaram a uma “educação esmerada” (cultura de elites), a violência, o conflito, a guerra são sempre fantasmas a afastar: as massas, quando entregues à sua energia incontrolável, são como crianças, irrequietas, e com facilidade passam do “jogo a brincar” para o “jogo a valer”. A guerra é como óleo que alastra, torna-se incontrolável, no prazer e no horror que dá a fazer e ver: é uma orgia. Essa deriva assusta, e é temida como força ancestral, oriunda de remotos e míticos “estados de natureza”, tal como a imprevisibilidade da fera, que um dia, inesperadamente, fere mortalmente o seu domador (o face a face domador/domado, no circo, fascina precisamente por ser esta encenação infantil, genérica, da natureza e da cultura).
Por outro lado, sabemos bem toda a hipocrisia dos bons costumes: é em função deles que os maiores estrategas mandam avançar as forças mortíferas da repressão, confortados com todos os sentimentos (como se diz dos sacramentos nos moribundos) da sua bondosa opção: para extirpar o diabo, é preciso por vezes sujar as mãos, ou ter quem as suje por nós, evidentemente. A guerra é a política por outros meios, claro, mas também é o desporto por outros meios, a arte dos bravos e dos que domam o corpo para se superarem a si próprios, em função de objectivos “superiores”.
Na narrativa sobre as “sociedades primitivas” e “pré-históricas”, tem sempre havido este balanceamento, esta ambiguidade. Como crianças, elas são simultaneamente perigosas e doces, bons selvagens e maus selvagens, inocentes e disfarçados, providos e desprovidos de tudo quanto de bom há, ricos e pobres. M. Shalins pode ser visto como um dos modernos paladinos do “bom selvagem”, ao defender uma visão dos caçadores-recolectores como gente basicamente pacífica, ainda sem o ónus do trabalho contínuo que tanto nos aflige, desejando possuir pouco porque também é pouco o que pode transportar. Uma história diferente, mas com alguns pontos de semelhança, entre tantas outras desde Rousseau até às versões “marxistas” que falavam de um comunismo primitivo. A acumulação de bens, em vez da sua distribuição imediata, é que seria responsável pela perdição, pelo começo das desigualdes, que levaria ao capitalismo e à redenção pela via do proletariado. A vontade de possuir e o possuído estariam em harmonia na sociedade de bando; seria a nossa, com a sua insaciável avidez, que seria a sociedade da escassez, uma escassez vivenciada pelo indivíduo consumidor.
As “sociedades primitivas”, dizia Lévi-Strauss, seriam “frias”, quer dizer, evitariam uma circulação de energia que exige um permanente movimento pendular entre a acumulação de calor e o seu esfriamento: seriam máquinas mecânicas, e não termodinâmicas como as nossas (v. “Entretiens avec Lévi-Strauss”, Paris, Plon, 1961, p. 38 - toda a magnífica “mitologia” deste grande autor se expõe nestas páginas, como frequentemente acontece nas entrevistas; embora nas primeiras páginas aluda à dificuldade da ideologia evolucionista, nunca sai da dicotomia natureza-cultura, o que julgo ser fatal).
Pierre Clastres, por seu turno, inventou um curioso dispositivo explicativo sobre a “guerra primitiva”, baseado na sua experiência amazónica, dispositivo esse que fascinou autores tão diferentes como Marcel Gauchet (“A dívida do sentido e as raízes do Estado. Política da Religião Primitiva”, in VV.AA., “Guerra, Religião, Poder”, Lisboa, ed. 70, 1980, pp. 49-89) ou Giles Deleuze e Felix Guattari (“Mille Plateaux”, Paris, Les Ed. de Minuit, 1980, pp. 441 e segs.). Estes últimos autores afirmam mesmo que aquele conseguiu “romper com o postulado evolucionista”, de que as sociedades ditas primitivas segmentárias não teriam chegado à complexidade do aparelho de Estado, ligado à guerra (op. cit., p. 441).
A ideia de Clastres é que a “sociedade primitiva” é basicamente uma sociedade “contra” o Estado (título de um dos seus livros publicado em português), no sentido de ser um mecanismo de constante diluição de diferenças entre estatutos individuais ou de grupo, que pudessem levar a uma cisão entre governantes e governados (*). As sociedades “primitivas” teriam criado esquemas de inibição da hierarquia, para manter, na visão deleuziana, uma situação rizomática.
Voltarei noutra parte deste texto a tratar destas questões, mas é evidente o carácter reificado do conceito de “sociedade primitiva” de Clastres (muito influenciado pelo seu conhecimento da Amazónia, onde as escaramuças constantes têm uma explicação histórico-antropológica própria, discutível, mas que se não pode generalizar).
Também é interessante a ideia de M. Gauchet, de que a instituição do Estado, como uma forma de cisão, tinha já a sua “preparação” na religião, ou seja, numa cisão, interna a todas as sociedades, entre o sobrenatural e o humano; o Estado apenas teria internalizado essa hierarquia, essa cisão (“troca de uma exterioridade por outra”). Ele afirma mesmo “A exterioridade do fundamento social preexiste ao Estado.” (op. cit, p. 53). O problema deste autor, quanto a mim, é que todo o seu pensamento está articulado em torno do eixo natureza/cultura, opção muito generalizada, e na minha visão caminho directo para neutralizar uma solução interessante para estas questões, que são fulcrais para a compreensão das sociedades sem Estado, ou da oralidade, ou seja, 99% das conhecidas, se nos soubermos descentrar.
A antropologia e a arqueologia tem aqui uma importantíssima palavra a dizer. Mas essas disciplinas não são evidentemente monolíticas: cada um que nelas trabalha crê que está no “bom caminho”, quando ultrapassa a fase dos manuais e começa a ver as coisas como investigador, a partir de dentro, da sua própria vivência.
O assunto da guerra e das múltiplas implicações é evidentemente muito complexo, e para ser desenvolvido noutros trabalhos de maior fôlego. Não pode é ser evitado, quando certos arqueólogos assumem estados de conflito ou de guerra na “pré-história sem os problematizar, ou chamando à colação lugares comuns ou dogmas que são, já eles próprios, detritos arqueológicos no pior sentido.
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(*) De: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Clastres
extraio a seguinte caracterização do autor:
“Pierre Clastres (Paris, 1934 — 1977)) foi um importante antropólogo francês-
Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crônica dos índios Guayaki 1972, A sociedade contra o Estado 1974, e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani 1974.
Sua morte prematura, em um acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política 1980.
Uma de suas principais contribuições para a antropologia foi sua crítica à visão, até então dominante, de que sociedades como as dos índios da América do Sul são mais "primitivas" ou "menos desenvolvidas culturalmente" do que sociedades mais hierárquicas, onde a presença do Estado é mais evidente – como no caso das sociedades Maia, Inca e Asteca. Ele procurou demonstrar a falsidade do pressuposto de que todas as sociedades necessariamente evoluem de um sistema "tribal", "comunista" e "igualitário" para sistemas mais hierárquicos. As sociedades não-hierárquicas, segundo seus estudos, possuem mecanismos culturais que impedem ativamente o aparecimento de figuras de comando – seja isolando os possíveis candidatos a chefe (como no caso dos Pajés), seja destituindo-os do poder do mando (como no caso dos chefes que só têm poder para aconselhar). Sendo assim, elas não estariam evoluindo em direção à estatização: elas seriam estáveis em sua forma igualitária.”
A guerra não é um universal. É uma designação arbitrária que damos a estados de violência colectiva muito diferentes, implicando contextos sociais, e logísticas, diversificadíssimos. O que se passa é que no nosso pensamento abstraímos certos conceitos, supostamente independentizáveis dos contextos, universalizamo-los, e depois fazemos o movimento oposto de descida, “de volta ao real”, para vermos como se concretizaram, se “actualizaram” aqui ou ali, neste ou naquele tempo.
Quer dizer, criamos artificialmente “temas” para depois os podermos historicizar, traçar a sua “evolução”, sem aparentemente percebermos o logro de partida: é que nos deixámos iludir por uma abstracção nossa. Não se trata de etapas ou fases, ou momentos do devir de um fenómeno único, senão na nossa imaginação: o fenómeno unitário, o conceito, foi assumido, incorporado por nós à partida como uma realidade em si, como uma entidade delimitável e portanto historicizável. A narrativa “histórica” está cheia destas ilusões, de conceitos manipulados como “allant de soi”, quer seja organizada por períodos históricos (“tranches horizontais”), quer por “temas” (“tranches” verticais, supostas facetas do poliedro que é o “humano”, facetas essas que aliás todos os dias se multiplicam – faz-se a história do rosto, dos sabores, das práticas de limpeza, enfim, das coisas mais diversas, como se a delimitação desses “campos” tivesse legitimidade “natural”).
Um exército da Idade Média, em certos períodos, podia conter cem pessoas, ou menos. Na guerra aristocrática europeia havia um “sentido da honra” que reporta a algo que tem a ver com a “nobreza” do “duelo” frente a frente, e em que muitas vezes cada um dos campos solicitava ao oposto que fosse o primeiro a disparar ou a iniciar as hostilidades. Não surpreende que, aquando da revolução francesa (ou aquando de qualquer revolução, quando era tempo disso) as classes instaladas se sentissem injustiçadas, porque nesses momentos não há só uma mudança (temporária ou parcial que seja) de poder, há uma mudança nos protocolos de confronto entre poderes, uma subversão das regras que presidiam antes à manifestação legalizada, à ostentação do conflito.
O jogo é diferente, e em cada época as elites se queixam de que já não há estabilidade, respeito, ou segurança, ou valores de referência, quer dizer, sentem ameaçados os sistemas tradicionais instituídos, muitas vezes não verbalizados, de invisibilização do outro, ou de opressão, com a subida à tona da história de erupções dos revoltados.
Claro que de um certo ponto de vista em qualquer situação histórica há sempre um esforço pela estabilidade e pela conservação do “status quo”, legitimado por numerosos poderes, forças, privilégios, combinações invisíveis, “economias paralelas” a todos os níveis, etc, que nas democracias aparecem sob uma face impoluta (tentar convencer os cidadãos de que o Estado é neutro e de que todos são iguais perante a lei, a educação, a justilça, a saúde, ou seja, os chamados direitos do cidadão) e nas ditaduras se dão despudoradamente a ver.
A guerra de trincheiras de 14-18 inicia um mundo em que o rosto do adversário totalmente desaparece. Há uma “desumanização da guerra”, que se afasta totalmente do tradicional face a face, corpo a corpo, da bravura do corpo. Assim como o regime sacrificial público, espectacularizado, dos condenados do antigo regime “passa à hitsória” para dar origem ao moderno sistema do encarceramento (pena psicológica, vivida em reclusão), como Foucault mostrou, assim também a guerra se torna mais sofisticada, técnica, gerida à distância, mediada por uma tecnologia do afastamento e da visão panóptica (aviação, cartografia, mais tarde satélites, telecomunicações, etc.).
Quando se manda exterminar todo um povo, ou toda uma cidade, como na segunda grande guerra, o próprio inimigo é reduzido a números, a abstracções. E com a primeira “guerra do golfo” é de certo modo a própria guerra que “desaparece” (excepto para os que estão no terreno a sofrer e a morrer): mediatizada, é transformada em espectáculo para ser vista na televisão, como se assistíssemos a uma cruzada dos tempos modernos contra os infiéis; mas estes não têm cara, nem forma, nem existência: o que vemos são luzes de mísseis a cair, como se se tratasse de um fogo de artifício. E depois aparece um ou outro rosto, de um ou outro lado, como ícone da tragédia ou da heroicidade (espectacularização da vitima inocente ou da rapariga-soldado americana resgatada às “forças do mal”. Enfim, uma comédia trágica). No Youtube há um vídeo sobre o enforcamento de Sadam. Etc.
O millitar, o guerreiro, despoleta os mais desencontrados (mas fortes) sentimentos: herói e vitima, ele encontra-se sempre um pouco na margem do social, que o usa e o teme, que o monumentaliza ou dele faz motivo de escárnio. Há um excesso nessa realidade da guerra, mesmo que ela se apresente como necessária, imprescindível mesmo, no sentido de dissuasora do pior, do desmembramento total do social. Por algum motivo o êxtase guerreiro está associado ao amoroso e ao religioso: o enquadramento administrativo da guerra é uma função básica do Estado, que se arroga a legitimidade de itulizar a força ( a violência em grau extremo) sempre invocando o “bem comum.” Num certo sentido, a guerra é a ampliação manifesta do que está em gérmen em qualquer exaltação desbragada, na festa, no rito, no sacrifício, na catarse em qualquer das suas modalidades: é um excesso, para que a normalidade possa voltar (até à próxima guerra), a acontecer.
Por isso, para aqueles que tradicionalmente se habituaram a uma “educação esmerada” (cultura de elites), a violência, o conflito, a guerra são sempre fantasmas a afastar: as massas, quando entregues à sua energia incontrolável, são como crianças, irrequietas, e com facilidade passam do “jogo a brincar” para o “jogo a valer”. A guerra é como óleo que alastra, torna-se incontrolável, no prazer e no horror que dá a fazer e ver: é uma orgia. Essa deriva assusta, e é temida como força ancestral, oriunda de remotos e míticos “estados de natureza”, tal como a imprevisibilidade da fera, que um dia, inesperadamente, fere mortalmente o seu domador (o face a face domador/domado, no circo, fascina precisamente por ser esta encenação infantil, genérica, da natureza e da cultura).
Por outro lado, sabemos bem toda a hipocrisia dos bons costumes: é em função deles que os maiores estrategas mandam avançar as forças mortíferas da repressão, confortados com todos os sentimentos (como se diz dos sacramentos nos moribundos) da sua bondosa opção: para extirpar o diabo, é preciso por vezes sujar as mãos, ou ter quem as suje por nós, evidentemente. A guerra é a política por outros meios, claro, mas também é o desporto por outros meios, a arte dos bravos e dos que domam o corpo para se superarem a si próprios, em função de objectivos “superiores”.
Na narrativa sobre as “sociedades primitivas” e “pré-históricas”, tem sempre havido este balanceamento, esta ambiguidade. Como crianças, elas são simultaneamente perigosas e doces, bons selvagens e maus selvagens, inocentes e disfarçados, providos e desprovidos de tudo quanto de bom há, ricos e pobres. M. Shalins pode ser visto como um dos modernos paladinos do “bom selvagem”, ao defender uma visão dos caçadores-recolectores como gente basicamente pacífica, ainda sem o ónus do trabalho contínuo que tanto nos aflige, desejando possuir pouco porque também é pouco o que pode transportar. Uma história diferente, mas com alguns pontos de semelhança, entre tantas outras desde Rousseau até às versões “marxistas” que falavam de um comunismo primitivo. A acumulação de bens, em vez da sua distribuição imediata, é que seria responsável pela perdição, pelo começo das desigualdes, que levaria ao capitalismo e à redenção pela via do proletariado. A vontade de possuir e o possuído estariam em harmonia na sociedade de bando; seria a nossa, com a sua insaciável avidez, que seria a sociedade da escassez, uma escassez vivenciada pelo indivíduo consumidor.
As “sociedades primitivas”, dizia Lévi-Strauss, seriam “frias”, quer dizer, evitariam uma circulação de energia que exige um permanente movimento pendular entre a acumulação de calor e o seu esfriamento: seriam máquinas mecânicas, e não termodinâmicas como as nossas (v. “Entretiens avec Lévi-Strauss”, Paris, Plon, 1961, p. 38 - toda a magnífica “mitologia” deste grande autor se expõe nestas páginas, como frequentemente acontece nas entrevistas; embora nas primeiras páginas aluda à dificuldade da ideologia evolucionista, nunca sai da dicotomia natureza-cultura, o que julgo ser fatal).
Pierre Clastres, por seu turno, inventou um curioso dispositivo explicativo sobre a “guerra primitiva”, baseado na sua experiência amazónica, dispositivo esse que fascinou autores tão diferentes como Marcel Gauchet (“A dívida do sentido e as raízes do Estado. Política da Religião Primitiva”, in VV.AA., “Guerra, Religião, Poder”, Lisboa, ed. 70, 1980, pp. 49-89) ou Giles Deleuze e Felix Guattari (“Mille Plateaux”, Paris, Les Ed. de Minuit, 1980, pp. 441 e segs.). Estes últimos autores afirmam mesmo que aquele conseguiu “romper com o postulado evolucionista”, de que as sociedades ditas primitivas segmentárias não teriam chegado à complexidade do aparelho de Estado, ligado à guerra (op. cit., p. 441).
A ideia de Clastres é que a “sociedade primitiva” é basicamente uma sociedade “contra” o Estado (título de um dos seus livros publicado em português), no sentido de ser um mecanismo de constante diluição de diferenças entre estatutos individuais ou de grupo, que pudessem levar a uma cisão entre governantes e governados (*). As sociedades “primitivas” teriam criado esquemas de inibição da hierarquia, para manter, na visão deleuziana, uma situação rizomática.
Voltarei noutra parte deste texto a tratar destas questões, mas é evidente o carácter reificado do conceito de “sociedade primitiva” de Clastres (muito influenciado pelo seu conhecimento da Amazónia, onde as escaramuças constantes têm uma explicação histórico-antropológica própria, discutível, mas que se não pode generalizar).
Também é interessante a ideia de M. Gauchet, de que a instituição do Estado, como uma forma de cisão, tinha já a sua “preparação” na religião, ou seja, numa cisão, interna a todas as sociedades, entre o sobrenatural e o humano; o Estado apenas teria internalizado essa hierarquia, essa cisão (“troca de uma exterioridade por outra”). Ele afirma mesmo “A exterioridade do fundamento social preexiste ao Estado.” (op. cit, p. 53). O problema deste autor, quanto a mim, é que todo o seu pensamento está articulado em torno do eixo natureza/cultura, opção muito generalizada, e na minha visão caminho directo para neutralizar uma solução interessante para estas questões, que são fulcrais para a compreensão das sociedades sem Estado, ou da oralidade, ou seja, 99% das conhecidas, se nos soubermos descentrar.
A antropologia e a arqueologia tem aqui uma importantíssima palavra a dizer. Mas essas disciplinas não são evidentemente monolíticas: cada um que nelas trabalha crê que está no “bom caminho”, quando ultrapassa a fase dos manuais e começa a ver as coisas como investigador, a partir de dentro, da sua própria vivência.
O assunto da guerra e das múltiplas implicações é evidentemente muito complexo, e para ser desenvolvido noutros trabalhos de maior fôlego. Não pode é ser evitado, quando certos arqueólogos assumem estados de conflito ou de guerra na “pré-história sem os problematizar, ou chamando à colação lugares comuns ou dogmas que são, já eles próprios, detritos arqueológicos no pior sentido.
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(*) De: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Clastres
extraio a seguinte caracterização do autor:
“Pierre Clastres (Paris, 1934 — 1977)) foi um importante antropólogo francês-
Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crônica dos índios Guayaki 1972, A sociedade contra o Estado 1974, e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani 1974.
Sua morte prematura, em um acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política 1980.
Uma de suas principais contribuições para a antropologia foi sua crítica à visão, até então dominante, de que sociedades como as dos índios da América do Sul são mais "primitivas" ou "menos desenvolvidas culturalmente" do que sociedades mais hierárquicas, onde a presença do Estado é mais evidente – como no caso das sociedades Maia, Inca e Asteca. Ele procurou demonstrar a falsidade do pressuposto de que todas as sociedades necessariamente evoluem de um sistema "tribal", "comunista" e "igualitário" para sistemas mais hierárquicos. As sociedades não-hierárquicas, segundo seus estudos, possuem mecanismos culturais que impedem ativamente o aparecimento de figuras de comando – seja isolando os possíveis candidatos a chefe (como no caso dos Pajés), seja destituindo-os do poder do mando (como no caso dos chefes que só têm poder para aconselhar). Sendo assim, elas não estariam evoluindo em direção à estatização: elas seriam estáveis em sua forma igualitária.”
Fonte da imagem: http://www.ricardocosta.com/pub/brevehist.htm
4 comentários:
Excelente texto. Na guerra de 14-18, pela primeira vez, a guerra passa pela primeira vez duma fase "artesanal" para uma escala "industrial" e cada vez mais impessoal.
Um blogue com interesse é este:
http://dererummundi.blogspot.com
animado por Carlos Fiolhais e Desidério Murcho entre outros
Tem também uma Petição para Salvar a Filosofiano Ensino Secundário
http://dererummundi.blogspot.com/2007/03/petio-para-salvar-filosofia.html
A 2ª Guerra Mundial com todas as suas atrocidades (campos de concentração, bombas atómicas) levou a que a Europa assumisse um rumo pela paz.
O pós-guerra é marcado por todas essas transformações e pelo apelo ao questionar:
- será que a tecnologia vale mesmo a pena
- será que a ciência serve como desígnio
- será que os papéis do género são os "tradicionais"
Esse questionar levou à emergência da relativização como acção intelectual (necessária). O berço do pós-...
O exercício da crítica esbarra porém com a necessidade de certezas que balizem a realidade.
O estudo da guerra (warfare) nas sociedades humanas pode seguir vários rumos consoante a perspectiva em se queira enquadrar. Ele pode ser relativizado de modo a poder apaziguar-nos com a imagem de que no fundo somos bons (ou projectar essa imagem para que de futuro vivamos em harmonia). Ele pode ser levado para o campo da dialéctica, ou da luta entre opressores e oprimidos. Ele pode até ser estudado como função social de descompressão, ou como elemento de selecção natural e reacção às pressões do meio envolvente.
Nada disto entra na questão profunda que é o conflito. Todos os dias no deparamos com ele. Interagir implica uma eterna conflitualidade. Resta-nos saber onde está o limite.
Quando olhamos para a arqueologia para descobrir a origem do conflito ou para fazer a história deste, não estamos a perceber o fundamental. Se vivemos com conflitos é porque eles existem. Faz parte da vida. É fácil perceber a sua origem: está em Nós!
Nesse sentido a arqueologia tem de se tornar algo de diferente. Se não compreender que este tipo de coisas não tem origem histórica, mas que pertence ao reino da temporalidade, estará condenada a nada perceber.
Como então fazer a arqueologia que não seja esta história da "origem de"?
Talvez compreendendo que arche é um vocábulo mais denso ,que merece um outro tratamento. Mas isso está longe da fábula de lenda, sonho, aventura e maravilha com que alguns embarcaram nesta área.
Obrigado pelas achegas!
Titãs:
Estado Violência
http://vagalume.uol.com.br/titas/estado-violencia.html
Amém
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