segunda-feira, 19 de março de 2007

rosto




toda a narrativa que se preza ocorre sempre numa terra distante, num tempo indefinido. é aí que neste texto nos aparece um tipo a pedir um rosto.
como? perguntam os circunstantes, com o ar de terem ensaiado tudo, como se estivéssemos num filme e de repente reparássemos que não passa de um filme. vai um copo, dois?
não, procuro um rosto, desde que tomei consciência de mim que ando nesta busca, mas não sei o seu nome nem tenho fotografia.

então como quer que o ajudemos? o meu amigo está tomado pela pior das demências, preso de uma imagem, de um ícone que nem sequer consegue materializar. vai terminar comido pelos lobos na neve, agarrado à sua armadilha, escrevendo nomes no gelo a ver se acerta, enquanto as mãos lho permitirem.
cambada de ignorantes, não sabem que o que é preciso para que se inicie um movimento, uma acção, um efeito de energia, é apenas um pressentimento, um pressentimento de se estar a prestes a fazer alguma coisa, por exemplo a beijar os lábios em que se concentra todo o sangue do universo, toda a carga desmedida das imagens reunidas numa só. sem isso não valia a pena arrastarmo-nos por este mundo desolado, onde as pessoas se entretêm como animais estéreis, obscenamente esticados ao sol. será esse o apocalipse, o pathos que atrairá multidões, e só se pode escrever para anunciar esse momento: tudo o resto são fáceis jogos de linguagem, entretenimentos ridículos, literatura de aeroporto.
meu filho, toma cuidado contigo, tens de dormir um número mínimo de horas por dia, diz-lhe o fantasma da mãe, cá fora, tolhido pelo frio, pela idade, pela distância, pela extrema finura que guarda nas arestas das próprias palavras; quase irreconhecível na maneira como mirrou com o tempo.
sei muito bem a ilusão em que me meti, diz o tipo para as árvores perfiladas na vertical, de troncos despidos. o teu olhar fixo não se vira para mim, especificamente. não há qualquer intenção de comunicares comigo. e se te aproximas em demasia é porque te amplio no écrã, trazendo-te até ao calor dos seus pixels, projectando-te constantemente em novas configurações. por vezes passo para dentro do aparelho, cada vez com mais frequência, e fico aí toda a noite a cheirar o teu cabelo, a fragância da tua miragem. sou um homem que foi até aos confins da procura, sem dúvida, e que se arrasta para o absoluto, deixando pegadas na areia. é por isso que entro nesta história.
aquele tipo que andava por aí perdido à aventura nunca mais apareceu, diz um dos do bar, engolindo mais um copo; assim não se sabe se terá já morrido, se se lhe pode ir ao cadáver caído na neve para ver se trazia certos valores, se seria ainda de algum proveito. queria deus, o desgraçado, mesmo que fosse sob a forma do amor romântico, de um rosto de mulher, não tendo percebido que isso já foi, é passado. pelo menos essa era a história que me contaram.
são tudo textos, disse outro. uns produzem-se aos outros, em figuras sem fim, em narrativas intermináveis com que todos os dias as pessoas fazem do mundo um novelo de acontecimentos, sensações, notícias. um casulo de onde jamais poderia emergir algo como o rosto glorioso, o olhar que paralisa, a imagem que aponta para a sua ausência eterna, quer dizer, o impensável, o irrepresentável.
mas eu estou aqui, diz a actriz irrompendo estas banais divagações, e vim trazer a minha própria fotografia a um tipo que a procurava: quando começa o filme?
bebe um copo, perguntou de novo ainda uma figura, antes de levar um chuto no rabo, porque se enganou na deixa. era um simples figurante, e só entrava na cena seguinte. começa a ser cada vez mais frequente este tipo de confusão entre a arte e a vida, o cá e o lá; e um pontapé bem enérgico é o que há de melhor para furar um cenário, e ficar com metade do corpo de um lado, e a outra do outro. vamos mas é filmar, que não estamos aqui para perder mais tempo com ficções sonâmbulas.

voj 2007

5 comentários:

Anónimo disse...

Que historia bonita!
Fiquei curiosa: é verdade que voce procura um rosto?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Eu? Eu não apareço na história... estou atrás do cenário, procurando outra história...

Anónimo disse...

transfigurado como todos os poetas...

Anónimo disse...

Transfigurado a procura de uma figura
Uma figura que nao procura ninguem...
Encontra...

Anónimo disse...

Poetas que figuram e transfiguram
A si e a suas figuras