tenho passado a vida numa incessante tentativa de juntar pedaços, de unir vestígios, de te procurar. encontrei-te apenas em porções, em elementos decorativos de textos; e os textos, esses, vi-os apenas em salas vazias, onde pendiam fragmentos de luz, visando achar objectos, coisas identificáveis, reconstituir corpos, encontrar soluções, numa perfeita sobreposição entre suor e sentido, numa languidez de ímans.
que terrível seria o cansaço, se o volume pesado, vermelho, dos cortinados, nunca cessasse de balouçar, como os compassos das cabeças das santas nas procissões: mas a verdade é que isso acontece por toda a parte, esse derrame de energia, a irrequietude dos signos, que ultrapassam a luxúria dos corpos, apanhados na cintura por diabos risonhos.
que dança louca a dos manequins: e, no entanto, não pára nunca, como a respiração ou a vontade sedutora, bate, bate, bate contra as paredes já picadas pelas contínuas bicadas do tempo.
mas para mim o pior foi quando um dia, encostado a uma sombra do texto, tive junto a um canto uma tontura tremenda, julgando perceber. senti pela primeira vez que eu próprio era uma garagem vazia cheia de grafitti, de buracos nas paredes, e que os teus fragmentos passavam de vez em quando nesses óculos, dançando com os meus, num ballet de marionetas. claro que efabulo, reduzo o que foi em mim germinando, para de súbito, como num palco, estrebuchar, porque sem acção dramática nada acontece.
vesti-me então a rigor, e fiz como todas as pessoas que vivem essencialmente para viver as suas vidas: de um manequim partido e de um pedaço de veludo compus uma peça segundo regras aprendidas e apuradas, com alguma musicalidade, obra que desceu as escadas e beneficiou do aplauso de toda a gente.
qual gente? não vi bem, só reparei que por detrás das luzes o aparelho de gravação continuava a emitir aplausos, aplausos que enchiam todo o universo envolvente, num horror decorativo ao vazio. pelo menos era o que se oferecia ao olhar, do ponto de vista em que os meus sapatos se encontravam.
digo bem, os meus sapatos, a visão mais panorâmica que tenho de mim próprio, e me enobrece. uns sapatos definem uma pessoa, são finalmente um sinal de unidade, pelo menos enquanto a graxa bem puxada lhes mantém o brilho.
com eles caminho tapando pedaços do chão, roçando a cara nos teus fragmentos, abrindo espaço, cortando a direito ou produzindo outras linhas, que é o que importa, porque o pior seria mesmo um desenho saber por que é tal como é. a arte não se explica, existe, flui, faz bocados de coisas, que até dançam.
de facto não há síntese, nem tempo de verbo, para aquilo em que consiste a nossa experiência: mas tal como os pés e as mãos que se buscam, as malditas palavras não são capazes de se auto-eliminar. e há quem se dedique a formar com elas obras catedralícias, parecendo querer encontrar o aro que fecha a cúpula, que provoca a síntese, que tem a luminosidade da afirmação. claro que a maior parte das vezes se dão desastres, quedas, e é preciso limpar o pavimento para continuarem a produzir-se eventos, acontecimentos, devires, como as próprias tentativas que espectacularmente falharam.
assim, por exemplo, eu e tu ficamos por vezes num espaço de praia antiga, de costas, reduzidos a essa imagem a que o quadro nos fixou, no seu desejo de intemporalidade, vendo-nos a nós mesmos a partir num grande veleiro, rumo aos céus encastelados de nuvens, enquanto a moldura ainda segura o estalar seco das tintas, ornada de regras de gramática.
e por momentos, numa espécie de intersecção que deve ser casual, os quatro olhares cruzam-se, quer os que vão pendidos na amurada, quer os que ficam em terra, multiplicando-se uns e outros aos pares, por cada fracção de tempo que passa. diz-se então que estão em sistema, porque dançam uns com os outros, permitem uma teoria. e as penas de pato escrevem as regras em papéis sedentos de tinta.
felizmente os temporais, os ventos, voltam a dispersar e a espalhar tudo de novo, e os respigadores regressam porfiantemente às areias, como corcundas, a apanhar para pequenos baldes, ou voam pelos ares como gaivotas, de bico pronto para não deixar escapar nada. recolectores, predadores, há uma série de palavras a bailar, por aqui e por ali, conjugando eus, tus, e seus reflexos infinitos em novas modulações.
é preciso reconstituir o corpo, recuperar a imagem, juntar os pés que estão no fundo do texto às mãos que já ficaram lá para cima.
voj 2007
que terrível seria o cansaço, se o volume pesado, vermelho, dos cortinados, nunca cessasse de balouçar, como os compassos das cabeças das santas nas procissões: mas a verdade é que isso acontece por toda a parte, esse derrame de energia, a irrequietude dos signos, que ultrapassam a luxúria dos corpos, apanhados na cintura por diabos risonhos.
que dança louca a dos manequins: e, no entanto, não pára nunca, como a respiração ou a vontade sedutora, bate, bate, bate contra as paredes já picadas pelas contínuas bicadas do tempo.
mas para mim o pior foi quando um dia, encostado a uma sombra do texto, tive junto a um canto uma tontura tremenda, julgando perceber. senti pela primeira vez que eu próprio era uma garagem vazia cheia de grafitti, de buracos nas paredes, e que os teus fragmentos passavam de vez em quando nesses óculos, dançando com os meus, num ballet de marionetas. claro que efabulo, reduzo o que foi em mim germinando, para de súbito, como num palco, estrebuchar, porque sem acção dramática nada acontece.
vesti-me então a rigor, e fiz como todas as pessoas que vivem essencialmente para viver as suas vidas: de um manequim partido e de um pedaço de veludo compus uma peça segundo regras aprendidas e apuradas, com alguma musicalidade, obra que desceu as escadas e beneficiou do aplauso de toda a gente.
qual gente? não vi bem, só reparei que por detrás das luzes o aparelho de gravação continuava a emitir aplausos, aplausos que enchiam todo o universo envolvente, num horror decorativo ao vazio. pelo menos era o que se oferecia ao olhar, do ponto de vista em que os meus sapatos se encontravam.
digo bem, os meus sapatos, a visão mais panorâmica que tenho de mim próprio, e me enobrece. uns sapatos definem uma pessoa, são finalmente um sinal de unidade, pelo menos enquanto a graxa bem puxada lhes mantém o brilho.
com eles caminho tapando pedaços do chão, roçando a cara nos teus fragmentos, abrindo espaço, cortando a direito ou produzindo outras linhas, que é o que importa, porque o pior seria mesmo um desenho saber por que é tal como é. a arte não se explica, existe, flui, faz bocados de coisas, que até dançam.
de facto não há síntese, nem tempo de verbo, para aquilo em que consiste a nossa experiência: mas tal como os pés e as mãos que se buscam, as malditas palavras não são capazes de se auto-eliminar. e há quem se dedique a formar com elas obras catedralícias, parecendo querer encontrar o aro que fecha a cúpula, que provoca a síntese, que tem a luminosidade da afirmação. claro que a maior parte das vezes se dão desastres, quedas, e é preciso limpar o pavimento para continuarem a produzir-se eventos, acontecimentos, devires, como as próprias tentativas que espectacularmente falharam.
assim, por exemplo, eu e tu ficamos por vezes num espaço de praia antiga, de costas, reduzidos a essa imagem a que o quadro nos fixou, no seu desejo de intemporalidade, vendo-nos a nós mesmos a partir num grande veleiro, rumo aos céus encastelados de nuvens, enquanto a moldura ainda segura o estalar seco das tintas, ornada de regras de gramática.
e por momentos, numa espécie de intersecção que deve ser casual, os quatro olhares cruzam-se, quer os que vão pendidos na amurada, quer os que ficam em terra, multiplicando-se uns e outros aos pares, por cada fracção de tempo que passa. diz-se então que estão em sistema, porque dançam uns com os outros, permitem uma teoria. e as penas de pato escrevem as regras em papéis sedentos de tinta.
felizmente os temporais, os ventos, voltam a dispersar e a espalhar tudo de novo, e os respigadores regressam porfiantemente às areias, como corcundas, a apanhar para pequenos baldes, ou voam pelos ares como gaivotas, de bico pronto para não deixar escapar nada. recolectores, predadores, há uma série de palavras a bailar, por aqui e por ali, conjugando eus, tus, e seus reflexos infinitos em novas modulações.
é preciso reconstituir o corpo, recuperar a imagem, juntar os pés que estão no fundo do texto às mãos que já ficaram lá para cima.
voj 2007
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