quarta-feira, 14 de março de 2007

La conversation (Matisse)


aproximávamo-nos
do fim da tarde,

e as aves
não tinham aparecido ainda.

apenas sinais:
encontrávamos uma pena
sobre a mesa;

um esvoaçar de sílabas
passava dos teus lábios

para os teus olhos;

a mão algures
colocava uma frase
na jarra,

um pequeno ponto
de exclamação;

e um vôo descia

sobre o seu pouso.

quando tu dizias:
são flores de matisse,
deve estar para chegar
a primavera

quando as estátuas finalmente
se descomprimem,

e libertam os pássaros
que em regra seguram.

é verdade, dizia eu
para prolongar a tarde,

são as cores, as cores vivas

que enchem tudo.
aceito pois um chá,
uma vez que não devem
já tardar.


e nesse momento, o que parecia
ter sido um vôo de gaivota
atravessava a janela;

mas era como que um risco,
um simples traço,
ou a dúvida, mesmo,
de ter acontecido.

daqui vê-se o oceano,
a foz dos rios,
continuavas tu;
e quando estou sozinha,
ao fim da tarde,
como acontece sempre,

lá em baixo tudo pára,

e há só mar,
o seu espelho enorme!

(era nesse momento
que um movimento de maré
se espraiava no teu olhar,
como se fosses areia feliz
embebida pela onda,
cheia de pequenos orifícios
absorvendo a água,
e os reflexos tremelicantes).

é então que fico aguardando
o chegar das aves,
anúncios de penugem
que passam na atmosfera,
talvez pólens,
ou leves flocos vindos de árvores;

indícios aéreos,
levitações soltas,

matérias subtis, que,
quando chegam ao poema,
são já restos de versos
lidos algures;

mas,
como pressentimentos,
compõem-se e recompõem-se
em intermináveis circuitos,

e alguns descem até pousar
na mais profunda,
íntima e aveludada,
declinação da luz
sobre o sofá.

está a acontecer, agora.
aguardo, pois;

e as próprias ruas,

as casas baixas lá em baixo,
acabam por desenhar um mapa,
espalhar um oceano
que nos descansa:

uma planura
como só se vê no alto mar
quando este se azula
intensamente;


somos impregnados
por este lento

aquecimento,
por este pulsar interior,

pelo chá em preparação,
pelo seu calor
transbordando das chávenas
para os dedos.

o tempo visto daqui
desdobra-se

em todos os quadrantes;
bebe-se por golos subtis,
por chávenas muito suaves
ao tacto;

deixa-se possuir todo,
pela arte da degustação.

ergue as suas asas de águia
sobre o universo

com olhos de rubi,
com lâminas mortíferas
nas penas,

unindo o oriente e o ocidente,
o norte e o sul,
numa extensão total.

e eu acordo já dentro
da própria vigília,

fascinado; o teu peito,
a sua consciência,
emerge no plano do verso,
como se o seu tecido
se dilatasse ligeiramente;

há um pressentimento de ninhos
um alvoroço recôndito,
guardado entre sombras,
na contenção das roupas,
na sua arquitectura clássica.

assiste-se assim
a toda uma estação
a crescer,

quando a frase se volta
ao visível que a rodeia,

e o envolve todo nas suas asas,
com uma maestria soberana!

acontece ao longo da conversação,
quando a boca acerta,
à beira de janelas predispostas

às flores garridas,
às suas pétalas;

quando os átrios se abrem
para a recepção.

entre estátuas e candelabros,

entre todos os enfeites
do mármore.

e os próprios móveis
se deixam impregnar de magia
sentindo a sua superfície tacteada
por inesperado sentimento.

é quando o texto
está finalmente

em curso, imparável;
as palavras montam guarda
às escadarias;

e o desfile interminável
vem aí,
irrompendo pelo meio,
pisando o grená,

entre o esvoaçar louco

das abstracções, o fluxo
indescritível.

copyright voj 2007

Sem comentários: