Transferência "(...) A PSICANÁLISE INVENTOU DE FACTO UMA NOVA FORMA DE AMOR CHAMADA TRANSFERÊNCIA." JACQUES-ALAIN MILLER (Lacan Dot Com)
quarta-feira, 14 de março de 2007
La conversation (Matisse)
aproximávamo-nos
do fim da tarde,
e as aves
não tinham aparecido ainda.
apenas sinais:
encontrávamos uma pena
sobre a mesa;
um esvoaçar de sílabas
passava dos teus lábios
para os teus olhos;
a mão algures
colocava uma frase
na jarra,
um pequeno ponto
de exclamação;
e um vôo descia
sobre o seu pouso.
quando tu dizias:
são flores de matisse,
deve estar para chegar
a primavera
quando as estátuas finalmente
se descomprimem,
e libertam os pássaros
que em regra seguram.
é verdade, dizia eu
para prolongar a tarde,
são as cores, as cores vivas
que enchem tudo.
aceito pois um chá,
uma vez que não devem
já tardar.
e nesse momento, o que parecia
ter sido um vôo de gaivota
atravessava a janela;
mas era como que um risco,
um simples traço,
ou a dúvida, mesmo,
de ter acontecido.
daqui vê-se o oceano,
a foz dos rios,
continuavas tu;
e quando estou sozinha,
ao fim da tarde,
como acontece sempre,
lá em baixo tudo pára,
e há só mar,
o seu espelho enorme!
(era nesse momento
que um movimento de maré
se espraiava no teu olhar,
como se fosses areia feliz
embebida pela onda,
cheia de pequenos orifícios
absorvendo a água,
e os reflexos tremelicantes).
é então que fico aguardando
o chegar das aves,
anúncios de penugem
que passam na atmosfera,
talvez pólens,
ou leves flocos vindos de árvores;
indícios aéreos,
levitações soltas,
matérias subtis, que,
quando chegam ao poema,
são já restos de versos
lidos algures;
mas,
como pressentimentos,
compõem-se e recompõem-se
em intermináveis circuitos,
e alguns descem até pousar
na mais profunda,
íntima e aveludada,
declinação da luz
sobre o sofá.
está a acontecer, agora.
aguardo, pois;
e as próprias ruas,
as casas baixas lá em baixo,
acabam por desenhar um mapa,
espalhar um oceano
que nos descansa:
uma planura
como só se vê no alto mar
quando este se azula
intensamente;
somos impregnados
por este lento
aquecimento,
por este pulsar interior,
pelo chá em preparação,
pelo seu calor
transbordando das chávenas
para os dedos.
o tempo visto daqui
desdobra-se
em todos os quadrantes;
bebe-se por golos subtis,
por chávenas muito suaves
ao tacto;
deixa-se possuir todo,
pela arte da degustação.
ergue as suas asas de águia
sobre o universo
com olhos de rubi,
com lâminas mortíferas
nas penas,
unindo o oriente e o ocidente,
o norte e o sul,
numa extensão total.
e eu acordo já dentro
da própria vigília,
fascinado; o teu peito,
a sua consciência,
emerge no plano do verso,
como se o seu tecido
se dilatasse ligeiramente;
há um pressentimento de ninhos
um alvoroço recôndito,
guardado entre sombras,
na contenção das roupas,
na sua arquitectura clássica.
assiste-se assim
a toda uma estação
a crescer,
quando a frase se volta
ao visível que a rodeia,
e o envolve todo nas suas asas,
com uma maestria soberana!
acontece ao longo da conversação,
quando a boca acerta,
à beira de janelas predispostas
às flores garridas,
às suas pétalas;
quando os átrios se abrem
para a recepção.
entre estátuas e candelabros,
entre todos os enfeites
do mármore.
e os próprios móveis
se deixam impregnar de magia
sentindo a sua superfície tacteada
por inesperado sentimento.
é quando o texto
está finalmente
em curso, imparável;
as palavras montam guarda
às escadarias;
e o desfile interminável
vem aí,
irrompendo pelo meio,
pisando o grená,
entre o esvoaçar louco
das abstracções, o fluxo
indescritível.
copyright voj 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário