Na foto: "torre cimeira" de Castanheiro do Vento, e suas imediações para norte, nas escavações de 2006.
Na "resposta" à "pergunta" em título, vou ser muito esquemático e portanto reducionista ao máximo, intencional e deliberadamente. Para atingir uma ideia clara há por vezes que chegar a fórmulas, mesmo que sejam muito precárias e extremamente gerais.
1º não há uma forma canónica de abordagem, mas múltiplas;
2º quanto mais inovadoras, mais bem consolidadas têm de estar, para serem sujeitas ao escrutínio dos demais investigadores, e se não confundirem com meras invenções ou delírios individuais;
3º deve-se distinguir o que são as conclusões - que se encontram a uma escala que já lhes permite a autonomização em livro, publicável, interessante mesmo para os não arqueólogos - do que serão apêndices documentais (o tal "arquivo" de que se falava em postagem anterior) - que só importam a um número pequeno de pessoas, hoje, mas podem interessar a muitas daqui para o futuro, na medida em que se tornam públicas. O acto decisivo é publicar em suporte durável;
4º as várias partes de um trabalho devem estar bem cerzidas, constituir um "texto" coerente, porque afinal ainda é sob a forma de texto, embora acompanhado de imagens, que a maior parte da nossa inteligibilidade se constitui. Ainda não sabemos totalmente bem como lidar com uma inteligibilidade das imagens por si mesmas, pois elas têm dificuldade de se "comentar" umas às outras, por exemplo;
5º esta tessitura pode ser, no limite, sob a forma entrecurtada de elementos aparentemente "soltos", como se fossem longos aforismos, ou presentificações (imagens) de ideias ("insights"), mas nesse caso o jogo é mais difícil, porque essas "partes soltas", libertando-nos da linearidade do discurso das "Letras", têm de se equilibrar a um meta-nível. Isto é, é possível ultrapassar o texto tradicional, mas isso dá muito trabalho e é difícil;
6º cada um vai construindo o seu trabalho num processo tensional, de avanços e de recuos, de exaltações e de perplexidades, e não como uma máquina linear, que fosse tecendo um pano, ou fazendo uma peça de tricot. Um trabalho é um processo de crescimento. Mas bem seguro e argumentado, baseado em sólida pesquisa e incorporação do que os outros fizeram. Claro que haverá sempre capítulos que ficam mais em esboço do que outros... e ainda bem;
7º É (se possível) de evitar a "santíssima trindade" dos discursos habituais: introdução e enquadramento (prólogo); demonstração de resultados de observação/raciocínio (corpo do trabalho): conclusões (produto final, que devia ser a parte mais importante, pelo menos em termos de leitura imediata, e que em muitas teses antigas, de milhares de páginas, se reduzia a um "décor" final, como se o autor chegasse aqui já exangue, quer dizer, sem ideias devido a tanta erudição explicitada, no preciso momento em que era preciso expor tais ideias).
Isso é a encenação de uma linearidade que nunca ocorre na prática da construção do saber. Encenar não tem mal, acontece sempre, mas pode-se tentar inovar a este nível, para bem do que dantes se chamava "o progresso do conhecimento", porque todo o conhecimento é desprovido de um referente último, embora todo ele se reporte a um horizonte mítico de "verdade";
8º um sítio arqueológico, em toda a sua convencionalidade, aparece-me antes de mais como um volume, inserido numa série de escalas (ascendentes e descendentes) de volumes. Há que caracterizar o melhor possível tal volumetria (geomorfologia, mas a arqueologia devia ir criando uma nomenclatura própria até onde possível), porque é ela que ao observador actual que eu sou (posição de onde nunca saio, porque não sou Deus omnisciente) se impõe fenomenologicamente. Não devo é confundir o processo da minha aprendizagem (incorporar por exemplo muita geologia e geografia) com a economia do texto em si: reporta-se o leitor para outras obras, e pronto. Cada trabalho não parte da estaca 0; ao contrário;
9º o mesmo se podia dizer em relação a tudo o resto. Só se repete o que é indispensável à argumentação própria, interna, que o texto veicula, quer sejam princípios teórico-metodológicos, quer sejam conhecimentos sobre o enquadramento do sítio, e por aí adiante, incluindo discursos já antes produzidos sobre o mesmo tema, sobre o mesmo sítio. O núcleo do trabalho, a sua razão de ser, começa - idealmente, claro - quando todo esse pressuposto, já exposto antes por alguém algures, foi absorvido. É para ele que se remete o leitor;
10º a história de um sítio arqueológico (a sua temporalidade mais imediata) é sobretudo a das intervenções feitas no local na actualidade. É dessa actualidade que há que partir, reconstruindo retrospectivamente cada um a seu modo a história das intervenções no sítio até ao momento em que ele, como sítio arqueológico, estava "virgem"; esse processo não precisa de ser exposto no trabalho final como tal - está pressuposto;
11º a troca de ideias e a experiência directa dos trabalhos de campo são fundamentais. Mas depois há toda a espessura do tempo que nos permite amadurecer, distanciarmo-nos em relação à experiência sensível que envolve ali o nosso corpo em desconforto, e as nossas ideias precisam de ser esclarecidas dentro do texto, construindo textos. Quem não tenha muito jeito pode ir fazendo por sucessivas tentativas. É fundamental perceber a diferença que vai do que intuimos no campo, às vezes num saudável despique de quem viu (interpretou, compreendeu) primeiro (para nos estimularmos uns aos outros como companheiros de jogo) da situação em casa, em que o sistema "produtivo" nos isola num ensino e numa vivência paradoxais, porque arcaicas (divididas em "disciplinas", em campos de saber), mas ao mesmo muito "pós-modernas" (porque entregando cada um à sua sorte). Ou seja, o sentido de comunidade (real ou ilusória... infelizmente é cada vez mais ilusória...) que se vive no campo, quando lá trabalhamos, desfaz-se no resto do ano, e é preciso saber lidar com essas temporalidades e posturas, ritmos e responsabilidades diversas;
12º dependemos de muita gente para fazermos qualquer coisa de útil; e esta qualquer coisa implica contactos, esperas, lutas, aquisições difíceis, as respostas às nossas dúvidas que nunca chegam. Vai-se "lá" por pequenas aquisições, através de tentativas, erros, falhanços (a mania actual do sucesso rápido, própria da sociedade do espectáculo, é perversa, até porque vitimiza aquele que erra, como se qualquer erro não fosse reversível e até indispensável, desde que não fatal ou muito grave) em que a persistência é a palavra-chave.
Quando a maior parte das pessoas andam a aproveitar o bom tempo ao domingo para passear, aconselharia ao que tem meios para isso (desde logo um sítio onde haja condições de concentração): ficar em casa e ler, ler, ler. Ler, mas não à toa: aconselhar-se primeiro sobre o que ler. O tempo é precioso. Mas depois também permitir-se a si próprio uma certa deriva de busca, que nunca é linear. E incorporar lentamente: as boas ideias são como as pessoas interessantes: raríssimas, e surgem quando menos se espera.
Quem não tenha este perfil, é melhor ir para um trabalho de rotina, tipo funcionário - não é (muitas vezes porque não quis ser) um(a) criador(a), um(a) investigador(a). Sacrifício, sim, mas porque se tira prazer disso, um prazer ontológico, anterior a todos os outros e a todas as outras pessoas. O prazer de, por momentos que seja, nos sentirmos centrados, nos sentirmos realizados por termos trazido alguma coisa de novo (nem que seja muito pequena) ao mundo (nem que seja o nosso círculo de relações).
E há um momento em que, tal como nesta postagem, se tem de dizer (e fazer, tirando as consequências práticas da frase): "Il faut finir". Era o que me dizia sempre que se despedia o meu orientador. É preciso acabar, mas com a consciência de que se deu o máximo, não em função de espartanismos absurdos, mas em função da nossa própria exigência, da nossa auto-estima, da nossa identidade, da nossa imagem pública, que cada vez mais não é a deste país apenas, mas da comunidade internacional na qual procuramos parceiros. Não há nada mais triste do que aquelas pessoas que têm imensas aptidões, e as desbaratam, dando lugar a que ocupem a cena, à vezes, os menos bons, mas que concretizam.
Não é para aumentar os eventuais complexos de culpa aos que "arrumaram as botas" no seu desígnio fundamental: mas todos temos um compromisso importante, que é tentar pôr ao serviço dos outros o que aprendemos, indo assim a contra-corrente da sociedade que nos acomoda - e em que alguns, que na minha juventude prometiam mudar o mundo, para minha surpresa vivem (aparentemente) todos contentes, e às vezes ainda julgando que são muito importantes!
1º não há uma forma canónica de abordagem, mas múltiplas;
2º quanto mais inovadoras, mais bem consolidadas têm de estar, para serem sujeitas ao escrutínio dos demais investigadores, e se não confundirem com meras invenções ou delírios individuais;
3º deve-se distinguir o que são as conclusões - que se encontram a uma escala que já lhes permite a autonomização em livro, publicável, interessante mesmo para os não arqueólogos - do que serão apêndices documentais (o tal "arquivo" de que se falava em postagem anterior) - que só importam a um número pequeno de pessoas, hoje, mas podem interessar a muitas daqui para o futuro, na medida em que se tornam públicas. O acto decisivo é publicar em suporte durável;
4º as várias partes de um trabalho devem estar bem cerzidas, constituir um "texto" coerente, porque afinal ainda é sob a forma de texto, embora acompanhado de imagens, que a maior parte da nossa inteligibilidade se constitui. Ainda não sabemos totalmente bem como lidar com uma inteligibilidade das imagens por si mesmas, pois elas têm dificuldade de se "comentar" umas às outras, por exemplo;
5º esta tessitura pode ser, no limite, sob a forma entrecurtada de elementos aparentemente "soltos", como se fossem longos aforismos, ou presentificações (imagens) de ideias ("insights"), mas nesse caso o jogo é mais difícil, porque essas "partes soltas", libertando-nos da linearidade do discurso das "Letras", têm de se equilibrar a um meta-nível. Isto é, é possível ultrapassar o texto tradicional, mas isso dá muito trabalho e é difícil;
6º cada um vai construindo o seu trabalho num processo tensional, de avanços e de recuos, de exaltações e de perplexidades, e não como uma máquina linear, que fosse tecendo um pano, ou fazendo uma peça de tricot. Um trabalho é um processo de crescimento. Mas bem seguro e argumentado, baseado em sólida pesquisa e incorporação do que os outros fizeram. Claro que haverá sempre capítulos que ficam mais em esboço do que outros... e ainda bem;
7º É (se possível) de evitar a "santíssima trindade" dos discursos habituais: introdução e enquadramento (prólogo); demonstração de resultados de observação/raciocínio (corpo do trabalho): conclusões (produto final, que devia ser a parte mais importante, pelo menos em termos de leitura imediata, e que em muitas teses antigas, de milhares de páginas, se reduzia a um "décor" final, como se o autor chegasse aqui já exangue, quer dizer, sem ideias devido a tanta erudição explicitada, no preciso momento em que era preciso expor tais ideias).
Isso é a encenação de uma linearidade que nunca ocorre na prática da construção do saber. Encenar não tem mal, acontece sempre, mas pode-se tentar inovar a este nível, para bem do que dantes se chamava "o progresso do conhecimento", porque todo o conhecimento é desprovido de um referente último, embora todo ele se reporte a um horizonte mítico de "verdade";
8º um sítio arqueológico, em toda a sua convencionalidade, aparece-me antes de mais como um volume, inserido numa série de escalas (ascendentes e descendentes) de volumes. Há que caracterizar o melhor possível tal volumetria (geomorfologia, mas a arqueologia devia ir criando uma nomenclatura própria até onde possível), porque é ela que ao observador actual que eu sou (posição de onde nunca saio, porque não sou Deus omnisciente) se impõe fenomenologicamente. Não devo é confundir o processo da minha aprendizagem (incorporar por exemplo muita geologia e geografia) com a economia do texto em si: reporta-se o leitor para outras obras, e pronto. Cada trabalho não parte da estaca 0; ao contrário;
9º o mesmo se podia dizer em relação a tudo o resto. Só se repete o que é indispensável à argumentação própria, interna, que o texto veicula, quer sejam princípios teórico-metodológicos, quer sejam conhecimentos sobre o enquadramento do sítio, e por aí adiante, incluindo discursos já antes produzidos sobre o mesmo tema, sobre o mesmo sítio. O núcleo do trabalho, a sua razão de ser, começa - idealmente, claro - quando todo esse pressuposto, já exposto antes por alguém algures, foi absorvido. É para ele que se remete o leitor;
10º a história de um sítio arqueológico (a sua temporalidade mais imediata) é sobretudo a das intervenções feitas no local na actualidade. É dessa actualidade que há que partir, reconstruindo retrospectivamente cada um a seu modo a história das intervenções no sítio até ao momento em que ele, como sítio arqueológico, estava "virgem"; esse processo não precisa de ser exposto no trabalho final como tal - está pressuposto;
11º a troca de ideias e a experiência directa dos trabalhos de campo são fundamentais. Mas depois há toda a espessura do tempo que nos permite amadurecer, distanciarmo-nos em relação à experiência sensível que envolve ali o nosso corpo em desconforto, e as nossas ideias precisam de ser esclarecidas dentro do texto, construindo textos. Quem não tenha muito jeito pode ir fazendo por sucessivas tentativas. É fundamental perceber a diferença que vai do que intuimos no campo, às vezes num saudável despique de quem viu (interpretou, compreendeu) primeiro (para nos estimularmos uns aos outros como companheiros de jogo) da situação em casa, em que o sistema "produtivo" nos isola num ensino e numa vivência paradoxais, porque arcaicas (divididas em "disciplinas", em campos de saber), mas ao mesmo muito "pós-modernas" (porque entregando cada um à sua sorte). Ou seja, o sentido de comunidade (real ou ilusória... infelizmente é cada vez mais ilusória...) que se vive no campo, quando lá trabalhamos, desfaz-se no resto do ano, e é preciso saber lidar com essas temporalidades e posturas, ritmos e responsabilidades diversas;
12º dependemos de muita gente para fazermos qualquer coisa de útil; e esta qualquer coisa implica contactos, esperas, lutas, aquisições difíceis, as respostas às nossas dúvidas que nunca chegam. Vai-se "lá" por pequenas aquisições, através de tentativas, erros, falhanços (a mania actual do sucesso rápido, própria da sociedade do espectáculo, é perversa, até porque vitimiza aquele que erra, como se qualquer erro não fosse reversível e até indispensável, desde que não fatal ou muito grave) em que a persistência é a palavra-chave.
Quando a maior parte das pessoas andam a aproveitar o bom tempo ao domingo para passear, aconselharia ao que tem meios para isso (desde logo um sítio onde haja condições de concentração): ficar em casa e ler, ler, ler. Ler, mas não à toa: aconselhar-se primeiro sobre o que ler. O tempo é precioso. Mas depois também permitir-se a si próprio uma certa deriva de busca, que nunca é linear. E incorporar lentamente: as boas ideias são como as pessoas interessantes: raríssimas, e surgem quando menos se espera.
Quem não tenha este perfil, é melhor ir para um trabalho de rotina, tipo funcionário - não é (muitas vezes porque não quis ser) um(a) criador(a), um(a) investigador(a). Sacrifício, sim, mas porque se tira prazer disso, um prazer ontológico, anterior a todos os outros e a todas as outras pessoas. O prazer de, por momentos que seja, nos sentirmos centrados, nos sentirmos realizados por termos trazido alguma coisa de novo (nem que seja muito pequena) ao mundo (nem que seja o nosso círculo de relações).
E há um momento em que, tal como nesta postagem, se tem de dizer (e fazer, tirando as consequências práticas da frase): "Il faut finir". Era o que me dizia sempre que se despedia o meu orientador. É preciso acabar, mas com a consciência de que se deu o máximo, não em função de espartanismos absurdos, mas em função da nossa própria exigência, da nossa auto-estima, da nossa identidade, da nossa imagem pública, que cada vez mais não é a deste país apenas, mas da comunidade internacional na qual procuramos parceiros. Não há nada mais triste do que aquelas pessoas que têm imensas aptidões, e as desbaratam, dando lugar a que ocupem a cena, à vezes, os menos bons, mas que concretizam.
Não é para aumentar os eventuais complexos de culpa aos que "arrumaram as botas" no seu desígnio fundamental: mas todos temos um compromisso importante, que é tentar pôr ao serviço dos outros o que aprendemos, indo assim a contra-corrente da sociedade que nos acomoda - e em que alguns, que na minha juventude prometiam mudar o mundo, para minha surpresa vivem (aparentemente) todos contentes, e às vezes ainda julgando que são muito importantes!
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