domingo, 4 de março de 2007

transferência


Transferência (f. Transfert; i. Tranference) seg. Jean-Pierre Cléro, “Le Vocabulaire de Lacan”, Paris Ed. Ellipses, 2002, pp. 82 a 85) (pequeno livro muito útil, inserto numa colecção – “Vocabulaire de...” muito útil também).

Com este conceito estamos no domínio dos afectos, da afectividade. Esquematizando muitíssimo os seus conteúdos e conotações (e o próprio breve texto de Clero), em que este blog se inspirou:

Freud: originalmente, deslocação do afecto de uma ideia para outra. Mais tarde, “troca”, por parte do analisando, de uma pessoa anteriormente conhecida, pela pessoa do analista.

A transferência é considerada como um ponto de referência fundamental para o analisando, na medida em que este pode imaginar “repetir” com ele relações que teve com outras pessoas.

Lacan [obra crucial para, na minha perspectiva de ignorante, dar à psicanálise toda a sua pregnância, e a qual, no resto deste texto que me limito a esquematizar, é a referência única]: viu a transferência como uma noção em permanente crise.
Ponto principal, mas paradoxal: a noção permite paradoxalmente que nos desembaracemos da ideia de “afecto”. Lacan passa pelo carácter imaginário dos sentimentos para atingir elementos estruturais da relação intersubjectiva.
A essência da transferência é simbólica, não imaginária. O que importa é o papel que o analisando atribui ao analista num momento importante do processo de cura: o de detentor do saber.
Lacan: “A transferência não é, pela sua própria natureza, a sombra de qualquer coisa que teria sido vivida no passado. Antes pelo contrário, o sujeito, enquanto sujeito ao desejo do analista, deseja enganá-lo [esquivar-se de] relativamente a essa sujeição, fazendo-se amar por ele, propondo ele mesmo essa falsidade essencial que é o amor.” (op. cit., p. 83- trad. minha).
Assim, mesmo na transferência, amar é sempre querer ser amado; o amor é o jogo da sedução. O analisando não se deixa tanto iludir quanto à sua estratégia de sedução quanto na sua crença de que o que quer, é saber.

A transferência está pois não ligada à ilusão do amor, mas à ilusão de que existem sujeitos que sabem. Lacan: “Logo que há em qualquer lado um sujeito suposto saber, há transferência.” (ib.) . O analista é instituído como mestre [muito interessante tudo isto para perceber a bem conhecida complexidade afectiva da relação pedagógica]. Mas a finalidade da análise é precisamente a de recusar isso, a de fazer compreender ao analisando que é ele quem sabe. E, no fim, o analista apaga-se, e o seu desejo é apenas um resíduo [“déchet”].
O analista não “usa” o poder que lhe é conferido pela transferência, antes conduz o analisando para um poder que está para além de si (analista), ou seja, para a morte, mestre absoluto.
O analisando deve “subjectivizar a sua morte.” Quanto ao analista, ele deve “saber ignorar o que sabe.” (ib., p. 84). O psicanalista deve partir do pressuposto que é o analisando quem, de certo modo, sabe o que está a dizer.

A transferência é pois uma ficção, uma ficção útil, que não engana ninguém, e relança o processo psicanalítico, após um impasse.
Lacan: a transferência não é “nada de real (...), mas o aparecimento, num momento de estagnação da dialéctica analítica, dos modos permanentes de acordo com os quais ele [analisando] constitui os seus objectos”.
“O que é interpretar a transferência? Nada mais que preencher com uma ilusão [“leurre”] o vazio desse ponto morto.”
A análise comporta a decepção relativamente a tal ilusão. O que importa é o aparecimento, a “presentificação dessa “esquiza” [schize”] do sujeito” (Lacan, ib., p. 85). A não compreensão desse ponto crucial da análise (nomeadamente por parte do analista) levaria à sua total subversão.
A transferência não é uma espécie “ de aliança com a parte sã do eu [“moi”] do sujeito”, nem a análise “consiste em apelar para o seu bom senso no sentido de lhe fazer notar o carácter ilusório desta ou daquela das suas condutas para com o analista.” (Lacan, ib., p.85)


Pintura : Prothonomie, por Diako
Fonte: http://www.artquotes.net/artists/diako/prothonomie-painting.htm

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