domingo, 4 de março de 2007

sociedade


“Isso a que chamam sociedade não existe.
O que há são homens e mulheres individuais, e famílias”
Margaret Thatcher
(cit. por M. Strathern, em Key Debates in Anthropology
(ed. T. Ingold, London, Routledge, 1996, p. 64)


Confesso que nunca pensei citar na minha vida a personagem política acima referida, cuja simples aparição televisiva me indispunha até à náusea; mas já vão compreender (espero) por que é que o faço.

É bem conhecido quanto o nosso pensamento ocidental tende a ser dicotómico, e uma dessas grandes divisões consiste na oposição indivíduo-sociedade.
Esta oposição é aliás apenas a manifestação particular de uma outra, mais ampla, entre o todo (a totalidade) e as partes (as unidades) que o constituem, sendo habitual a ideia de que o todo é mais do que a soma das partes, ou seja que, interagindo entre si, em sistemas, estes têm propriedades emergentes, resultantes dessa mesma inter-actividade própria de cada um.
Assim, a hierarquia todo-partes não é apenas uma hierarquia de escalas, uma questão de grandeza, de quantidade, mas uma diferença de natureza, porque, interagindo entre si, as unidades constituem continuamente realidades diferentes a cada escala.
Por exemplo, as sociedades são compostas de indivíduos, e estes são realidades naturais, mas socialmente construídas, quer dizer, trabalhados secundariamente pela sociedade para se integrarem nela. A partir da abstracção que é a sociedade, as “relações sociais” viriam juntar-se aos indivíduos para os “socializar”.
O modo de “socialização” em que pensava a senhora Thatcher era largamente baseado na ideia de indivíduos como realidades autónomas, simultaneamente consumidores e dispensadores de serviços (ver Strathern, op. cit.). Esta estratégia ideológica neo-liberal permitiu-lhe, como é sabido, proceder ao desmantelamento de muitas características do “estado social” britânico (liderando e acompanhando uma tendência mundial, que se consolidou com a queda do muro de Berlim e o fim da “guerra fria”).
Quer dizer, um conceito que tinha permitido a Durkheim autonomizar a sociologia, permitindo-lhe desvinculá-la de “psicologismos”, e levando à ideia de uma “mentalidade colectiva”, viria mais tarde a derivar para consequências ideológicas nefastas e a voltar-se contra os cidadãos, tornados simples máquinas artificialmente individualizadas, de trabalho/consumo no Estado pós-moderno.
A raiz desta situação liga-se intimamente à dicotomia sociedade - indivíduo. Através dela formar-se-ia uma divisão harmónica da realidade social, acompanhada da repartição de “objectos” a que academicamente se consagram diferentes disciplinas: a “sociedade” (mente/acção colectiva) como objecto da sociologia, a “mente” (comportamento individual) como objecto da psicologia, etc. (a cultura seria o objecto da antropologia, pelo menos da dita “social”, o passado o objecto da arqueologia e da história, e por aí adiante).
O mal-estar provocado por estas compartimentações estanques deriva também, paradoxalmente, da própria contradição em que se encontram com a fluidez típica da pós-modernidade, que a senhora Thatcher anunciava, e que de certo modo é a condição/ideologia do capitalismo tardio e global (com tendência para o esbatimento de fronteiras, conceptuais e outras, e o acentuar das decisões “autónomas” de agentes supostos livres). É essa tendência para a dissolução que tem levado um ambiente tendencialmente conservador (em relação à acção política) a progressivas formas híbridas, como “sociopsicologia”, e muitas outras.
Trata-se de um processo de adição, ou de complementaridade, que associa disciplinas diferentes em torno de problemas considerados comuns, interdisciplinares.
Mas em boa verdade esse processo de complementaridade tende, quase sempre, a ocultar hierarquias internas: ou domina o aspecto que privilegia o todo (a realidade é uma construção social e os indivíduos, melhor ou pior, ajustam-se a tal realidade, o que teve o seu cúmulo no fascismo, nazismo e comunismo), ou aquele que começa pelas partes, centrando-se no indivíduo, e considerando que a sociedade é fundamentalmente um “contrato” de pessoas, de individualidades, tácito ou explícito, que as leva a unirem-se para defenderem princípios comuns (desde logo a sua segurança e dos seus bens) em troca de alguma perda de liberdade individual (o que tem o seu culminar no neo-liberalismo reinante).
Certos autores (J. Urry, por exemplo, mas também Ingold o refere) têm de facto mostrado como, perante a fluidez actual e a mobilidade das pessoas, o conceito de sociedade é capaz de se tornar obsoleto, e de ter sido enfatizado pelos fundadores da sociologia em relação com o nascimento e a consolidação ideológica do estado-nação, pelo que também não seria aplicável antropologicamente como mais um “universal”.
Por outro lado, não fazendo sentido uma dicotomia indivíduo/sociedade, então a sociologia e a psicologia tenderiam, não apenas a unir-se complementarmente, mas a dissolver-se numa perspectiva de saber mais geral. Os rearranjos de conhecimentos, as “modernizações”, podem ter aliás consequências positivas e negativas – levando por vezes a efeitos perversos, em que apenas se extinguem linhas de financiamento em favor de pesquisas mais tecnologicamente rentáveis. O “mesmo” discurso pode vir de muitos emissores e interesses diferentes, convindo ver o que lhe está subjacente.
Não é difícil descortinar, por detrás de muitas discussões, a luta pela hegemonia no espaço académico e a vontade de cada grupo, a partir do seu ponto de vista, de ganhar mais uns pontos no tabuleiro de xadrez da divisão dos poderes/saberes/orçamentos/ visibilidades, isto é, na competição por espaços de influência. Sempre, evidentemente, em nome do interesse colectivo e da racionalização.
Tudo tem a ver, em última análise, com uma economia política de um tipo novo, relacionada com uma sociedade onde o “conhecimento” e a “comunicação” (no seu sentido mais amplo, difuso e ambíguo) são um valor estratégico cada vez maior, configurando aquilo que às vezes se chama um tanto abstractamente “o sistema”.
Ou seja, a invenção, desenvolvimento, e colonização de novos campos conceptuais constituem em última análise a ideologia invasora, imperial, holística, do mercado global.
Os cientistas criativos seriam assim equiparados horizontalmente a outros produtores de novas realidades, quaisquer que sejam as suas formas, suportes, ou aplicações: se tiverem mercados, passam a ser importantes, a ter direito à existência. São indivíduos/grupos autónomos dispensadores de serviços e de novos produtos consumíveis, por vezes altamente sofisticados.
Duas dicotomias estão ainda aqui implicadas: a de natural/artificial e a de génese/desenvolvimento (ou origem e história). Tudo gira em volta da infantil pergunta do que é que existia primeiro: a galinha ou o ovo, consubstanciada, a nível do conhecimento, na velha e “angustiante” aporia: há ou não há uma realidade para além de nós (dicotomia material/espiritual)? Claro que os “realistas” defendem que a realidade existe independentemente da nossa consciência e da nossa capacidade para a formular e pensar na linguagem, e os seus opositores (“idealistas”, relativistas, ou como se lhes queira chamar), caricaturalmente, tendem a considerar que a própria realidade só existe porque alguém tem consciência dela, e a objectiva através da mente e da sua rede de conceitos aprendidos pelo indivíduo, academicamente preparado ou até não. Em qualquer opção (e sobretudo na primeira), é o carácter “naturalizador” da linguagem que oferece à consciência espontânea a evidência mais ou menos indiscutível de que a realidade existe, ou seja, corresponde ao real externo, numa ingenuidade frequente.
Às vezes, estas discussões lembram os eternos e improdutivos debates entre crentes ingénuos, seja em que ideologia for, tornada dogma. Não se lembrando de que a crença é da ordem da adesão afectiva, e portanto largamente inconsciente, argumentam com “provas” (por exemplo, da existência de Deus) num terreno onde elas são fúteis.
Ao contrário, as senhoras Thatcher deste mundo (há muitos clones) não estão com meias medidas: por uma enunciação, provocam um efeito de verdade indiscutível, que as suas políticas confirmam, e que são confirmadas por elas. Realidade e discurso sobrepõem-se. O poder tem a sua banda de Mobius perfeita.

voj 2007

Fonte da imagem (banda de Mobius):
http://fr.wikipedia.org/wiki/
Ruban_de_M%C3%B6bius

4 comentários:

José Manuel disse...

Na tradição do pensamento ocidental tudo acaba por ser reduzido a um sistema binário, normalmente a dois conceitos que se opõem entre si. Até os sistemas informáticos, de que as sociedades ocidentais tanto dependem entre si, se baseiam num sistema binário.

o post é interessante mas saiu com uma formatação estranha que complica a leitura.

José Manuel disse...

Peço desculpa, mas agora já consegui visualizar bem o texto.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Eu é que peço desculpa, as coisas nem sempre saem bem à primeira! Abraço!

Gonçalo Leite Velho disse...

Em "A vida de Brian" há uma cena muito engraçada, que é o sketch do "sigam a cabaça", "não sigam a sandália".
Também existe outro que retrata as intermináveis moções, as separações em várias frentes "The Liberation Front of Jusea????" mas o melhor e que penso retratar uma certa pós-modernidade é o sketch:
"I wanna have children!"
"But you are a man"
"I wanna have children!"
"But you are a man, you don't have a womb!!"
"I wanna have a womb, an I want to have children... and I wanna be called Loretta"
"But..."
"Wait a minute he has his rights. Don't worry comrade, we will fight in your struggle for equality, and for your right to have a womb, even if you are a man"

Comentário final sarcástico lançado pelo personagem do Jonh Gleese:

"You will help in is fight against reality, that's what it is""