o inverno, fazendo transbordar as margens dos rios, invade e dilui todos os recantos das paisagens tranquilas herdadas do verão. talvez a natureza necessite destas convulsões periódicas para se sentir viva.
mas a principal questão está nas cores, no domínio absoluto do azul e do negro. não espanta que os troncos, que resistem ao arrastar das torrentes, se retesem na sua escuridão. no fundo cabe-lhes guardar os gérmenes do futuro, a vitória do mundo vegetal sobre o mundo primitivo, caótico e inabitável, das águas, que o inverno cada ano volta a soltar.
os troncos seguram o eixo da realidade entre dois universos fluídos e azuis: o correr apressado das nuvens, a precipitação dos rios. cabe-lhes o papel de transmissão do passado para o futuro, da morte para a vida, quando de novo as ervas e as folhas despontarem, e as cores saltarem e voarem como bichos na proliferação da atmosfera: o verde, o amarelo, o vermelho, os tons onde o sangue quente se afasta da imobilidade rochosa, lisa, espelhada, do inverno.
o inverno é uma espécie de geologia que nos antecede, nos invade irresistivelmente, e nos petrifica. ficamos como árvores, muito quietos, à espera dos primeiros sons de pássaros que hão-de vir, mesmo de noite, anunciando a volta da humanidade aos campos, e às suas tarefas ancestrais.
voj 2007
para a Evita e para o Gonçalo
Foto: Evita Alle
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