Da Newsletter do CES, permito-me transcrever (http://www.ces.uc.pt/misc/papa.php) :
"Conferência
Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes
Boaventura de Sousa Santos (CES/FEUC) 6 de Março de 2007, 15:00h, Sala Keynes - Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
No âmbito do Programa de Doutoramento Pós-Colonialismos e Cidadania Global
Org: Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses Entrada livre - Inscrição
Programa 15h00 - Abertura 15h10 "Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes" Boaventura de Sousa Santos (CES/FEUC) 16h00 – 16h30 Para Além do Pensamento Abissal: comentários a partir das Ciências Sociais e Humanas António Sousa Ribeiro (CES/FLUC) Margarida Calafate Ribeiro (CES) Paula Meneses (CES) 16h30 - 17h – Intervalo 17h – 17h45 Para Além do Pensamento Abissal: comentários a partir do Direito Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide, Sevilha, Espanha) Conceição Gomes (CES) João Pedroso (CES/FEUC) Cecília MacDowell dos Santos (CES/University of San Francisco) 17h45 - 19h - Debate Moderação da Conferência: António Sousa Ribeiro (CES/FLUC) Com o apoio dos Núcleos do CES "Estudos do Estado, do Direito e da Administração", "Estudos de Democracia, Cidadania Multicultural e Participação", e "Estudos Culturais Comparados".
"Resumo:
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Baseia-se em linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo "deste lado da linha" e o universo "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado da linha" desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. Deste modo, a característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de uma co-presença dos dois lados da linha. O "outro" lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade e da falsidade (crenças ininteligíveis, idolatria, magia). Juntas, estas formas de negação radical produzem uma ausência radical, a ausência de humanidade, a sub-humanidade moderna. Assim, a exclusão torna-se simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social [1]. A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna [2]. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal [3]. O meu argumento nesta comunicação é que esta realidade é tão verdadeira hoje como o era no período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano, de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As colónias representam um modelo de exclusão radical que permanece actualmente no pensamento e práticas modernas ocidentais tal como acontecia no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação e ao mesmo tempo a negação do outro lado da linha fazem parte integrante de princípios e práticas hegemónicos. Hoje, como então, a impossibilidade de uma co-presença entre os dois lados da linha continua a ser absoluta. Hoje, como então, a civilidade legal e política deste lado da linha baseia-se na existência da mais absoluta incivilidade do outro lado da linha. Actualmente, Guantánamo representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento legal abissal, da criação de um outro lado da linha enquanto um não-território em termos legais e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia. Porém, seria um erro considerá-lo uma excepção. Há muito Guantánamos, desde o Iraque à Palestina e a Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminaçãoes sexuais e raciais quer na esfera pública, quer na privada, nas zonas selvagens das mega-cidades, nos guetos, nas sweatshops, nas prisões, nas novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil, e na prostituição. O primeiro ponto do meu argumento é que a tensão entre regulação e emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, ao ponto de a universalidade da primeira tensão não ser questionada pela existência da segunda. Em segundo lugar, argumento que as linhas abissais continuam a estruturar o conhecimento e a legalidade modernos. Por fim, o meu terceiro ponto é de que estas duas linhas abissais são partes constitutivas das próprias relações e interacções políticas e culturais de origem ocidental no sistema mundial moderno. Resumindo, a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas de amizade que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça social global está, desta forma, intimamente ligada a uma injustiça cognitiva global. Por isso, a luta pela justiça social global tem de ser também uma luta pela justiça cognitiva global. Para conseguir ter sucesso, esta luta necessita de um novo pensamento: um pensamento pós-abissal."
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[1] Na verdade, a suposta exterioridade do outro lado da linha é consequência da sua dupla pertença ao pensamento abissal: enquanto fundador e ao mesmo tempo enquanto negação desse fundamento.
[2] Fanon denunciou esta negação de humanidade com uma lucidez inexcedível. O extremismo dessa negação constitui o fundamento que leva Fanon a defender a violência como uma dimensão intrínseca à revolta anti-colonial. O contraste entre o pensamento de Fanon e de Gandhi a este respeito, ainda que partilhando a mesma luta, deve ser objecto de uma reflexão cuidadosa, particularmente porque foram dois pensadores-activistas muito importantes do último século.
[3] Esta negação fundadora permite, por um lado, que tudo o que é possível se torne uma possibilidade de tudo, e por outro, que a criatividade celebratória do pensamento abissal trivialize tão facilmente o preço da sua própria destruição."
O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Baseia-se em linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo "deste lado da linha" e o universo "do outro lado da linha". A divisão é tal que "o outro lado da linha" desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. Deste modo, a característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade de uma co-presença dos dois lados da linha. O "outro" lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e ilegalidade, para além da verdade e da falsidade (crenças ininteligíveis, idolatria, magia). Juntas, estas formas de negação radical produzem uma ausência radical, a ausência de humanidade, a sub-humanidade moderna. Assim, a exclusão torna-se simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social [1]. A humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna [2]. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal [3]. O meu argumento nesta comunicação é que esta realidade é tão verdadeira hoje como o era no período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do sub-humano, de tal forma que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas. As colónias representam um modelo de exclusão radical que permanece actualmente no pensamento e práticas modernas ocidentais tal como acontecia no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação e ao mesmo tempo a negação do outro lado da linha fazem parte integrante de princípios e práticas hegemónicos. Hoje, como então, a impossibilidade de uma co-presença entre os dois lados da linha continua a ser absoluta. Hoje, como então, a civilidade legal e política deste lado da linha baseia-se na existência da mais absoluta incivilidade do outro lado da linha. Actualmente, Guantánamo representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento legal abissal, da criação de um outro lado da linha enquanto um não-território em termos legais e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia. Porém, seria um erro considerá-lo uma excepção. Há muito Guantánamos, desde o Iraque à Palestina e a Darfur. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminaçãoes sexuais e raciais quer na esfera pública, quer na privada, nas zonas selvagens das mega-cidades, nos guetos, nas sweatshops, nas prisões, nas novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil, e na prostituição. O primeiro ponto do meu argumento é que a tensão entre regulação e emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, ao ponto de a universalidade da primeira tensão não ser questionada pela existência da segunda. Em segundo lugar, argumento que as linhas abissais continuam a estruturar o conhecimento e a legalidade modernos. Por fim, o meu terceiro ponto é de que estas duas linhas abissais são partes constitutivas das próprias relações e interacções políticas e culturais de origem ocidental no sistema mundial moderno. Resumindo, a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas de amizade que separavam o Velho do Novo Mundo. A injustiça social global está, desta forma, intimamente ligada a uma injustiça cognitiva global. Por isso, a luta pela justiça social global tem de ser também uma luta pela justiça cognitiva global. Para conseguir ter sucesso, esta luta necessita de um novo pensamento: um pensamento pós-abissal."
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[1] Na verdade, a suposta exterioridade do outro lado da linha é consequência da sua dupla pertença ao pensamento abissal: enquanto fundador e ao mesmo tempo enquanto negação desse fundamento.
[2] Fanon denunciou esta negação de humanidade com uma lucidez inexcedível. O extremismo dessa negação constitui o fundamento que leva Fanon a defender a violência como uma dimensão intrínseca à revolta anti-colonial. O contraste entre o pensamento de Fanon e de Gandhi a este respeito, ainda que partilhando a mesma luta, deve ser objecto de uma reflexão cuidadosa, particularmente porque foram dois pensadores-activistas muito importantes do último século.
[3] Esta negação fundadora permite, por um lado, que tudo o que é possível se torne uma possibilidade de tudo, e por outro, que a criatividade celebratória do pensamento abissal trivialize tão facilmente o preço da sua própria destruição."
1 comentário:
Deveriamos também acrescentar que essa negação da humanidade acontece não apenas a nível global, mas também à escala continental, nacional e local através de múltiplas formas de desigualdades.
Só em Portugal se poderiam dar vários exemplos.
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