ao Manuel Amado
Neste corredor iremos passando de sombra em sombra.
O que nos reservará cada uma, só saberemos ao chegar lá.
Importa que cada passada tombe mesmo ao centro
De cada sombra, e que então uma menina ria, uma arara cante.
Em cada tronco está um gato morto. Escondeu-se aí dentro
Porque um felino nunca deixa os outros assistirem.
Um gato com grandes olhos abertos, à espera do fim.
Esse gato podíamos ser tu, ou eu, se pudéssemos entrar
No quadro. Mas não, estamos aqui para contemplar o passado,
Como em toda a pintura, toda a imagem, o que ela mostra
É a nossa infância, quando as portas de segurança se fechavam,
E as sombras faziam companhia aos objectos de que cada uma
Era a projecção no chão. O chão é monopólio das sombras,
Território exclusivo do passado. Sobre ele se debruçam
Os camponeses e os arqueólogos, recuperando o inevitável:
O pão e a memória, que juntam em grandes celeiros atrás
Da casa, bem dentro da sombra, e onde bebem grandes copos
De vinho depois de terminarem cada jornada, e dançam.
É assim a vida, este corredor de sombras redondas, misteriosas,
Por onde temos de avançar a pé coxinho, brincando
Com as meninas, sorrindo com a estridência, tão a despropósito,
Das araras.
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Imagem: pintor Manuel Amado, 1993
texto voj porto 2009
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