Se olharmos para a História o medo parece ser algo comum a imensos períodos, com elementos díspares. Logo à memória podemos lembrar-nos no medo medieval, ou no medo no período do Terror da Revolução Francesa. Talvez fosse até interessante realizar uma História do Medo (à semelhança da História da Loucura de Foucault). Ora qual é o problema do medo hoje? Concentremo-nos em Portugal; durante as últimas eleições o medo foi um tema sempre presente. Na comunicação social passou sobretudo a mensagem da asfixia democrática, tema lançado pelo PSD. Essa asfixia democrática segundo o PSD passava sobretudo pelo modo como o Partido Socialista estaria a utilizar a máquina do estado como mecanismo de controlo e repressão. O que esta tese reflecte é a tentativa de introduzir num país europeu o tema do medo do Estado, que encontra terreno fértil sobretudo nos E.U.A. O que ele esconde (ou tenta esconder) é um outro medo que atravessa a sociedade portuguesa (e não só): o medo do desemprego. Esse outro medo foi sobretudo abordado pelo BE e pela CDU.
O PS pelo contrário tentou utilizar o discurso do optimista e temerário, ou seja, aquele que ultrapassa o medo. Não será por acaso que os argumentos que exploram o medo estejam na oposição e que o discurso de poder seja o da ultrapassagem do medo. Afinal perante o medo o poder possui uma espécie de posição dupla: publicamente apela com o discurso da coragem e optimismo, enquanto no dia-à-dia explora as condições que o medo lhe proporciona.
Mas o que é o medo? Retornemos por um momento a esse belo momento de intuição filosófica rumsfeldiano, quando, sobre o problema da Guerra do Iraque, Rumsfeld falou sobre o conhecido-conhecido, o desconhecido-conhecido, e o desconhecido-desconhecido. Tal como Zizek repetidamente apontou nos seus trabalhos, o que Rumsfeld se esqueceu foi do conhecido-desconhecido, aquilo que em psicanálise é o lugar do Inconsciente. O medo é algo que se relaciona com esse Inconsciente. Ele surge sobretudo como sintoma (as fobias). Ora se assim é, talvez fosse interessante perceber qual o sintoma de que nos falam estes medos contemporâneos.
Para além desse sintoma temos a questão da cura. A cura é algo que divide o campo da psicanálise. Para uns (sobretudo a psicanálise praticada na América) a cura é uma possibilidade efectiva, que se revela na capacidade da pessoa ser feliz. Para outros (nomeadamente a escola lacaniana) a cura passa sobretudo pelo momento de travessia da fantasia.
Quando Fukuyama escreveu sobre o fim da História, ele pretendia antever esse fim como o alcance da felicidade. De algum modo grande parte das soluções que vemos no panorama actual são fukuyamistas: quase todas elas dirigem-se aos problemas antevendo soluções definitivas. Veja-se por exemplo o uso e abuso da linguagem "vamos acabar com". O provisório parece ser hoje um espaço exíguo, quando, contudo, ele tão comum aos nossos precários dias. Há como que um jogo entre o estável e o precário, a felicidade e o medo, a solução e o problema, que neste momento é explorada pelo próprio capitalismo.
Note-se que uma exposição da problematização como solução se encontra num paradoxo em si: é uma solução, não é meramente um problema qua problema. Parece-se com esse paradoxo da teoria dos conjuntos, relativa ao conjunto que possuí os conjuntos que não pertencem a nenhum conjunto. Talvez não seja por acaso que esse seja um paradoxo na ordem do dia.
Se o capitalismo se alimentou primeiro do medo (a felicidade e a estabilidade como último objectivo) pergunto-me se ele não se alimentará um dia da cura (a precariedade e a instabilidade como possibilidade de vida).
Há todo um espaço entre o poder do medo e o medo do poder, entre o medo exercido pelo poder e o poder exercido pelo medo. Ora no primeiro não é só o receio perante o poder, é também o medo de exercer o próprio poder (veja-se a opção de certas forças políticas). Esse medo de exercer o poder e a sua escolha (não ter medo de ter medo de exercer o poder) afirma a possibilidade de anulação de um dos predicados (o poder do medo, logo o poder), para logo assim anular o outro (sem poder deixa de haver medo), mas se assim fosse perder-se ia um terceiro (sem poder e sem medo deixa também de haver medo de ter o poder), o que parece abrir a porta ao primeiro (sem medo de se ter o poder abre-se a porta a possibilidade do poder e logo do poder do medo). É como uma fita de Moebius em que cruzamos facilmente um lado para logo nos encontramos do outro. A suprema ilusão está na possibilidade de cortar essa fita e recolar os lados de modo a que tudo se preencha num círculo perfeito infinito.
4 comentários:
O discurso do medo foi abundantemente utilizado pelo Governo e pelo PS. O medo da instabilidade, o medo do regresso da direita se não houvesse voto "útil" e o medo do desinvestimento se a esquerda reforçasse a sua expressão. Aliás assistimos durante 15 dias a uma verdadeira operação de chantagem psicológica sobre os portugueses através das televisões e jornais com os perigos do centrão perder a hegemonia política.
O Gonçalo faz aqui uma reflexão de feixe em muitas direcções, como é seu hábito. Isto daria pano para mangas, porque a reflexão dele situa-se em muitos planos.
Para ser curto, porque tenho aulas daqui a bocado, o meu medo consciente principal, no plano colectivo, foi que a direita reconquistasse o governo. Não conseguiu. Aliás, nas conclusões que tiram e nas leituras que fazem ganham sempre todos, o que é uma especificidade lusitana. E os que perdem dizem que o ganhador perdeu (porque perdeu a maioria absoluta, neste caso). É como se a Rosa Mota, por exemplo, ganhasse uma maratona. Mas porque a que ficaria em segundo, ou terceiro, etc., lugar(es) teria eventualmente melhorado o seu score em relação a maratonas anteriores, todas teriam ganho... mesmo aquela que passada uma hora, à beira do estado de coma, atravessasse a meta, teria ganho, porque contra tudo o que seria de esperar, mesmo assim teria chegado lá... enfim, é ridículo!
O PS e a figura do PM foram atacados selvaticamente por todas as forças políticas nesta campanha. Atacado é normal, selvaticamente é que já não, é desespero. E o resultado viu-se. Crispação, despeito, entusiasmos ridículos de quem só acentua que o PS perdeu a maioria absoluta. Mas em democracia a maioria absoluta é obrigatória? E o espírito de contratualização, para que serve? É evidente que a vida do novo governo vai ser mais dificil, mas isso é bom, porque o obriga a dialogar e a concertar mais. O que já me parece preocupante, e sobretudo no contexto actual em que o governo e a oposição vão ter de negociar a governação do país, porque todos são igualmente responsáveis, é a comunicação televisiva de ontem da primeira figura do Estado, a que aliás o PS respondeu com extrema habilidade e contenção política. Essa figura não pode ser minimamente tocada pela crispação e pela ambiguidade. Representa Portugal, representa a cada um de nós também, mesmo que se tenha votado noutro candidato para presidente, como é óbvio. Como símbolo, tem de pairar num certo plano. Isso e o encarniçamento das forças políticas perdedoras (todas ganhadoras na versão de cada ma) é que é preocupante, e muito.
Mete um certo medo!
O que é perder e ganhar?
Ao longo de 30 anos de democracia lembro-me de partidos de governo que perderam a maioria absoluta, embora tenham mantido maioria relativa, sem que, de facto, se tenha enfatizado tanto, ao nível dos media e da opinião pública, a perda óbvia dessa maioria absoluta. Pelo contrário,o que passava tradicionalmente era a ideia que o partido x ou y tinha ganho...embora sem obter maioria absoluta. Mas tinha ganho.
Claro que agora o PS também ganhou... Então... insistir na sua perda de maioria absoluta- insistência óbvia que percorre todo o espectro político- resultará apenas dum movimento global conspirativo... selvaticamente organizado contra Sócrates e o partido que governou Portugal nos últimos 4 anos? Não acredito muito em conspirações... Acredito em factos: Sócrates vai ter de negociar agora com os restantes partidos! Mas isso é estruturalmente novo? Não, não é...já aconteceu n vezes aos dois normais partidos de governo. O que é novo...e não querer ver isso é miopia política....o que é novo é o quase generalizado "ufa! Sócrates deixou de poder governar sozinho!"...sentimento de puro alívio que perpassa a sociedade portuguesa...inclusivamente entre muitos dos tradicionais votantes socialistas. Mesmo dos que votaram agora PS! Não me lembro de ter sentido, nas últimas décadas, tanta gente a ansiar, em eleições legislativas, pela não renovação do poder absoluto dum primeiro-ministro. O PS deveria estar atento a este sentimento generalizado de alívio. Deveria procurar as razões duma tão aberta desconfiança relativamente à possiblidade de Sócrates governar sozinho. O que é que aconteceu nestes 4 anos - sem ter de recorrer a cassettes e slogans- para se gerar tal sintonia? Como votante de esquerda a mim preocupa-me o que se passou! Não gosto. Não que não seja útil um governo minoritário. Mas não gosto das razões que levaram boa parte do eleitorado a ter medo duma nova maioria absoluta do PS. A reflexão desapaixonada... mas lúcida ... é urgente.
O Zé tem razão. Eu tinha poupado o PS do discurso do medo, mas ele esteve lá por via da diabolização da "esquerda radical". Aliás acho que esse discurso aliada a uma cobertura desnivelada da comunicação social (basta ver os painéis de comentadores para perceber que o poder não dorme, e que o domínio de grupos económicos na imprensa tem os seus efeitos), esteve na razão do Bloco não ter tido a votação que poderia ter tido (o que é bom para o Bloco, por permite-lhes crescer com sustentabilidade).
O episódio das supostas escutas (ao Presidente) ajudou a afastar o discurso do desemprego e da crise. Quem foram os protagonistas: o bloco central de interesses.
Este afastamento de certos temas da campanha prejudicou sobretudo a esquerda, aliado a notícias plantadas cirugicamente, como a do PPR de Francisco Louçã, no Expresso. Essa notícia juntamente com o truque dos benefícios fiscais que Socrates fez no debata com o Loução, impediu o BE de se tornar a terceira força política.
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