segunda-feira, 14 de setembro de 2009

limpo



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Lembras-te? Não era suposto a porta estar entreaberta.
Não era suposto eu ter passado àquela hora, e ouvir-te
A dormir, ou a fingir que dormias, desde o corredor interminável.

Não era suposto ter havido a corrente de ar.
Não era suposto estares assim, exposta
Como um grande rochedo cheio de fracturas,
Emergindo da areia branca da cama, do lençol esticado.

A tua geologia. A que se esconde no fundo
Dos desertos. Esse vento, essa brancura insuportável
Ao olhar. Não era suposto ter acontecido isto, eu ver-te assim,
E ficar na dúvida para sempre.
Pisando pelo corredor fora grãos de areia, ferindo os pés
De um rasto de cor que mais tarde me denunciaria.

Dormiam todos. Mas não pude entrar,
Não pude desfazer a ambiguidade. Fiquei do lado de cá
Do corredor, condenado a atravessá-lo continuamente
Em busca de uma miragem, como um peregrino
Que já tem os pés a sangrar, e isso só lhe aumenta
A determinação.

Fingias certamente. Era impossível tal abandono,
Tal volúpia. Esse vento, esse deserto esventrado
Nas suas ranhuras, e raízes, e rochedos. Tão lisos.
Mas não sei, não pude interromper, e ainda aí estou
Ante a porta entreaberta, com a mão dirigindo-se
Para a maçaneta que a abrirá toda, toda,

Abrindo finalmente a luz sobre este assunto, tirando a limpo
O teu intento, iniciando o caminho para o deserto.







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Foto Pascal Renoux
site: http://www.pascalrenoux.com/Nudes.html
texto: voj porto set. 2009

1 comentário:

Gonçalo Leite Velho disse...

É... (falta o predicado, porque o sublime leva a que as palavras, tentando articular ordem e discurso, se esbatam, perante a força de um silêncio sentido).
Mas porquê limpo e não Petra (que é até um belo nome de mulher)?