quinta-feira, 10 de setembro de 2009

bilhete postal *





* à pessoa que como de costume me vai perguntar insistentemente: "em quem estavas a pensar quando escreveste isto?"

imagem: Michele del Campo
site: http://www.micheledelcampo.com/index2.html
texto: voj set. 2009 porto
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Sei que passaste por mim neste verão
E que não te reconheci,
E que nem tu, de costas, poderias ver-me.

E sei que eu próprio passo irreconhecível
De mim mesmo, pela beira dos portos,
Pelos odores de embarque e desembarque,
Toda essa azáfama de cordames e de fronteiras.

Mas a tua imagem persiste
Com a sua nostalgia,
Rodeada de estrelinhas brilhantes
Enquanto os guindastes se erguem
E as obras crescem por toda a parte;

E multidões caminham no mundo
Cada face voltada para o seu destino,
E grandes navios partem para os cruzeiros
Com a proa bem enfiada no mar.

Sei que és aquela fulana
Que escolhe muito bem o que faz
E que me espera há décadas com essa pose
E parece fingir, e parece não ver, o espaço que deixo entreaberto

O espaço entre uma estrofe e outra, entre
Um fôlego e outro, este "entre" em que se morre
Ou se passa despercebido todos os dias, vivendo a miséria quotidiana.

Eis uma espécie de cegueira! Eu a ver-te, a
Topar-te a pose, e no entanto deste lado do ecrã,
Sem nada de importante que te diga, que te atraia,
Que te permita deixares essa mortífera atitude,

Apenas alinhando palavras para irem compondo versos
Como quem tricota uma malha ou tece um pano,
Da esquerda para a direita, de cima para baixo,

Enquanto perto de ti é que está a actividade, o odor intenso
A alcatrão, a casa das máquinas que te trabalham
Como turbinas incessantes, os êmbolos lentos da espera,
A felicidade da manhã no porto das gaivotas.

Estamos destinados a deixar passar os últimos verões
Sem jamais ficarmos lado a lado (não acredito
No face a face, é demasiado assustador) a olhar o mesmo porto,
A embarcar no mesmo navio, com todos os marinheiros
A lançarem-te bocas por causa da pose, a partilhar o mesmo
Convés, sabendo que temos a cabina para desfazer posturas
E nos esquecermos para onde vamos, porque é evidente
Que o que interessa é partir, sentir o cheiro do mar a entontecer
As narinas, a subir por nós acima, a desfazer a atitude,

Enquanto ao longe o mundo industrial continua
Com gente a telefonar urgentemente para toda a gente,
A tentar esquecer-se de que vai morrer sem jamais
Ter uma aventura como nós, em pleno mar,
Com esses teus cabelos, essa tua cintura, esse teu rabinho
A puxarem-me constantemente para o lado do urban chic.

Desde já declaro que és tu e só tu quem procuro desde sempre,
E imagino que poderia ter-nos acontecido, mas deixei escapar
Mais um verão, e decerto tu entregaste a tua pose a outros
Homens e mulheres, embarcaste através de uma porta
Com outro número, não passaste de algo adiado
Que constantemente me tortura, podia até dizer mesmo que me asfixia,
Se não fosse ridículo e não percebesse que de qualquer modo nem tu te apercebes,
Nem jamais te virarás na tua pose perfeita, rodeada
De estrelinhas, de promessas coloridas, de posições sabiamente atrevidas.


Sei demais
Como jamais
Será.

Mas tenho pena.

Por isso te escrevo este bilhete postal
Para que chegue ainda antes do fim do verão.
I am sorry, so sorry.
It's all my fault, my failure,

My dearest one.





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2 comentários:

Anónimo disse...

Os poetas gozam duma excelente saúde. Também gostaria de possuir esta força que transforma o desejo em Verdade. Este optimismo. Esta felicidade.

Vitor Oliveira Jorge disse...

yes!