quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

farmácia portátil


É sempre difícil, se não absurdo, encontrar um começo, um marco cronológico para uma mudança de larga amplitude. Até porque qualquer periodização, qualquer fatiação em períodos, do acontecido, é sempre uma enorme torção.
Mas podemos dizer que foi nos anos 60 do séc. XX que algo começou a dar-se na cultura e em geral no modo de vida ocidental que mostrou muitos sinais complexos de transformação, de algo ter chegado a uma "bolha" que rebentou. Rebentou em sintomas como Maio de 68, ou como até como o 25 de Abril de 74 em Portugal (visto até nas repercussões que teve no estrangeiro).
Seguir-se-iam as últimas descolonizações, a passagem de um "mundo moderno" tal como o Iluminismo o tinha vislumbrado (e que já estava muito abalado por todos os "modernismos" e "vanguardas" e guerras da primeira metade do século), a algo que é diferente, que assenta num certo relativismo e numa certa descrença em relação a muitos dos princípios iluministas, que atingiram o seu auge no séc. XIX com a industrialização, o triunfo da burguesia, o domínio do proletariado, a crença absoluta na ciência, a objectificação do mundo, etc.
Alguns aceitam convencionalmente chamar a esse mundo um mundo pós-moderno, mas há que distinguir várias intenções e posicionamentos de onde tal caracterização se faz, ou denominação se aplica.
As mudanças nos dispositivos da consciência, no saber, na vida universitária, não são evidentemente independentes das verificadas na economia, na tecnologia, na política. Com ritmos diferentes, com lógicas diversificadas, numa miríade de contradições e paradoxos, vistas retrospectivamente, certas mudanças fazem sentido, fazem sistema, percebe-se que teriam de ocorrer como eco, até certo ponto, uma das outras (não falo de causas, mas sim de ecos que vão, propagando-se, definindo espaços de actuação, de possibilidade e de utopia, de concretização e de sonho).
Queria acentuar aqui só uma mudança que se deu, e que em parte explica também a minha trajectória individual.
Até à primeira metade do séc. XX, havia uma crença generalizada no conhecimento científico, no desenvolvimento progressivo dos povos (por via da livre empresa ou por via do planeamento estatal), na estabilidade das disciplinas, na emancipação em vários sentidos, porque era sempre em nome dessa "emancipação" (capitalistas no mundo ocidental, trabalhadores do outro lado... isto é, de quem falava por eles) que as mudanças se faziam ou se desejavam. Na verdade, a crença ocidental era a de um capitalismo auto-confiante, com estados nacionais, com tudo bem arrumado de tal forma que, ao modo liberal, até aquilo que o contestava (nos países "democráticos") era bem-vindo, porque reforçava o sistema, mostrava a sua face tolerante e portanto mais docilizante.
Desde que as instituições funcionassem, e desde que os produtos vendessem, por que não integrar os exotismos e as novas fatias de mercado, como podia ser por exemplo uma mulher fora de casa, ganhando o seu salário, e portanto também consumidora? Ou uma juventude que podia ser canalizada para refrescar o sistema com novos produtos? Foi isso que fez a moda, a indústria discográfica, e de uma maneira geral todo o show business, toda a indústria do entertainment, toda a "youth culture".
Para a Universidade, a grande partilha das letras e artes, de um lado - os professores, os entertainers, etc. - e das ciências verdadeiras do outro - os engenheiros, os médicos, os biólogos, os físicos, etc, todos os que produziam e tinham real ligação à indústria e ao mercado.
A filosofia para uns, a literatura para outros, e por aí adiante - tudo estável, tudo arrumado, tudo a querer o seu canudo para se enquadrar num emprego e seguir uma profissão, um cursus honorum.
As faculdades de letras em particular não incluiam, no tempo de Salazar, as ciências sociais e humanas, porque para aquela sinistra figura e seus acólitos devotos (ou passivos) a vida não precisava delas, faculdades de letras, senão para preparar professores de liceu, e as ciências sociais traziam o socialismo, o comunismo, etc., quer dizer, punham em discussão os princípios mesmos da doutrina oficial do Grande Pai Tirano, sob a face de pai bondoso para os docilizados. As ideias alternativas que se discutiam "lá fora" eram clandestinas.
Claro que com as grandes mudanças que se simbolizam no Maio de 68 muita coisa começou a mudar. A comunicação contemporânea rebentou com todos os muros.
Não era só a crise económica que começava a despontar e que viria a dar-se nos anos 70, mas também e sobretudo uma crise de consciência da burguesia e da pequeno-burguesia letrada, nos países "democráticos": compreensão de que a gestão corrente, cinzenta, da "democracia" ocidental é algo de muito pouco mobilizador, consciência do carácter criminoso dos "regimes de leste", que de socialistas ou comunistas só tinham o nome, certa divinização do maoismo mas apenas por algumas minorias, e generalizada vontade de todos e cada um de quererem "emancipar-se", cada um à sua maneira, mas onde os media têm um papel determinante. Evocação de teorias naturalistas ingénuas, mas que naturalizavam novos costumes e tornavam outros anacrónicos.
Ou seja, a ideologia do indivíduo isolado, a ocidente, da família, etc, levava a um enorme descontentamento. Essa mitologia, com toda a imagética associada, entrou em crise. A humanidade não se podia arrumar assim, como não se podia arrumar em sistemas de planificação altamente autoritários, mesmo que sectorialmente virtuosos (o conjunto era podre).
A ideologia da realização individual chegava a todo o lado, com maior ou menor rapidez. E o mercado exlorou isso bem, com a moda, a "quebra de tabus", a chamada libertação de costumes, amor livre, etc. A generalização da pílula, do preservativo, da mini-saia, da extensão do sistema educativo às mlheres, e sobretudo de uma nova sede de prazer, de satisfação individual, de realização, alimentadas pelo mercado, que bem explorou a imagética cada vez mais atrevida, viriam a produzir, cedo ou tarde, algo de muito diferente do que o cinismo de Salazar queria, a casa à portuguesa com certeza, a mulher no lar, a pobreza de muitos e o cinzentismo obediente de alguns seus acólitos.
E também as disciplinas se indisciplinaram.
Começou-se cada vez mais a falar de interdisciplinaridade, de multidisciplinaridade. A mobilidade aumentou. A economia deixou cada vez mais de estar ligada às indústrias pesadas e foi-se tornando uma economia de serviços. O capital mudou de lógica, estimulou a vida a crédito, o fluxo foi substituindo o estável, o consumismo instalou-se, etc. A primeira coisa que um indivíduo hoje deseja é a sua auto-consumação como fruidor de um mercado, já, e não a realização a prazo de valores e de projectos que são tudo menos seguros. Também o futuro se descolonizou, se tornou mais difícil de programar, de cingir. Novos comportamentos e novos "sexos" e "géneros" apareceram à luz do dia, foram em parte fabricados por toda esta liberalização inevitável. O dinheiro impõs-se como único valor, associado à queda do muro de Berlim em 1989 e à entrada em força do capitalismo nos países de leste.
Instabilidade no coração do sistema.
Interesse em flexibilizar, mas o quê? Portugal encavalitou esta "revolução" de desenvolvimento capitalista com o próprio derrube do regime fascista e com a descolonização, passando a integrar-se numa Europa onde o país chegou tarde e de que é uma periferia pobre, dependente. Importou-se cada vez mais um modo de vida, mas a modernidade nunca passou por cá senão de forma espectral.
A arqueologia, a que pretendi dedicar-me, nunca foi a da maioria dos meus colegas (de então, e da maior parte dos do depois, como constato com alguma tristeza), ou seja, um trabalho que visava contar a história do ser humano, por capítulos e sequências, modernizando-se para ser mais do mesmo, conceptualmente.
Digamos que por intuições, leituras, influências de café, contacto com muita gente que se agitava na Lisboa dos anos 60, percebi mais ou menos cedo, "institivamente", que essa arqueologia era já ela mesma arqueológica. Questão de sorte, de nunca me ter colado bem à ideologia reinante, nem a certas ideologias que se lhe opunham... mantive-me sempre à escuta, percebendo a minha condição de provinciano...de habitante de um país que era silenciado no exterior, que não tinha dignidade, alcançada no 25 de Abril.
Mas tive que aguentar uma vida inteira uma arqueologia em larga medida obsoleta, positivista, várias décadas, quer como estudante, quer como professor (somos sempre as duas coisas toda a vida, não é?). Surpreende-me às vezes que bastantes ainda continuem nessa lógica, mas... a surpresa é o pão-nosso-de-cada-dia, neste mundo em mudança numas coisas, e de enorme conservadorismo noutras.
Por isso para mim nunca houve divisões entre saberes, nem compartimentos. O mundo era aberto ao que eu pudesse explorar (uma manifestação pois da mesma ideologia individualista, de capitalização pessoal, o valor mais seguro num tempo de relações efémeras e de "associações" e entusiasmos egoístas, por assim dizer), e sobretudo era preciso chegar primeiro... fosse onde fosse de economicamente estável, de profissionalmente seguro. Mas isso foi sempre para mim um instrumento para "um dia" poder a vir a ser outra coisa. O quê? Ter tempo para me dedicar finalmente a recuperar o tempo perdido, a informar-me, a ganhar uma posição crítica consolidada no estudo, no conhecimento.
É assim que aparece o meu interesse por aprender, por ouvir os outros, por não me confinar à arqueologia. Só quem não me conheceu desde os meus tempos de estudante se surpreende, só quem está muito equivocado sobre si próprio como arqueólogo é que pensa que eu não sou propriamente um arqueólogo (como já soube que pessoas dizem, até minhas "amigas"...).
As pessoas que estão fechadas na arqueologia, ou que depois se abrem para outras actividades culturais e recreativas como complemento para espairecer, não percebem nada (permita-se-me a afirmação tão peremptória) do que se está a passar desde os anos 60 do século passado. E isto podia aplicar-se a outras, a todas as disciplinas. A coisa transbordou, meninos e meninas!
É muito importante, cada vez mais mesmo, saber bem de um ofício, ser mesmo muito bom nalguma coisa, nem que seja saber fazer bem pastéis (ou bolos, como se diz cá no Norte) de bacalhau, senão não se sobrevive. Mas ninguém passa a vida só a fazer e a comer os mesmos pastéis. Times are changing, a long ago, did you noticed that? You surely did.
Daí o imperioso interesse que sempre tive por muitos campos e por aquilo que transbordou da filosofia, o chamado pensamento crítico contemporâneo, ou teoria crítica, designação cómoda, convencional, para um pensamento que não pretende apenas conhecer e compreender o passado, mas o presente, e para lhe dar outro rumo, para fazer algo de novo na própria realidade. Essa paixão do real que tantos dizem caracterizar nosso tempo desde o séc. XX...Mas já Marx prenunciou: até agora os filósofos têm tentado compreender a vida, mas nós queremos é transformá-la: ora, aqui está todo um programa (que o capitalismo sempre teve...). Os operários de todo o mundo nao se uniram, mas o capital, em larga medida, sim. Ou seja, o capital controla o real, define as fronteiras do imaginário, do imaginável: aí está a sua força. Não foi nunca uma pura economia, ou economia política, mas uma eficaz máquina imaginativa de produção de desejos. Desejos disciplinados primeiro, desejos indisciplinados e individualistas depois. Quem não aguenta, muda de campo, vai para a outra economia, a do crime e da exclusão, da violência. E as duas con-vivem.
Há uma amoralidade total nisto, pois claro: veja-se as indústrias da guerra, e de tudo quanto é comércio "amoral". Mas o capitalismo tem moral que não seja a do único valor, o do dinheiro?... de abstracção em abstracção, chegou aí.
A mobilidade e a sua estética imperam. E o pensamento crítico, o pensamento da desconstrução, pode ter uma recuperação extremamente conservadora, no sentido de ser o pensamento desta instabilidade, desta fluidez. Mas isso não se combate com o agarrarmo-nos a valores passadistas. Por exemplo, Derrida pode ser recuperado pela mais conservadora teologia...mas não é essa a leitura que convém fazer, do meu ponto de vista. E isto podia aplicar-se a todos os grandes nomes do pensamento crítico contemporâneo. Desestabilizaram m sistema que precisava de ser desestabilizado: mas, se bem lidos, têm um potencial subversivo enorme.
Porquê esta ideologia do subversivo que tomou conta de tantos universitários mais atentos? Ora bem, é muito ambíguo. Pode ser para criar uma mais-valia que aumente o seu capital cultural e portanto seu prestígio, liderança, etc. Mas pode ser também - e acredito que esse é o sentido para o qual se pode encaminhar qualquer pensamento profundo e bem estruturado, um pensamento inteligente e aberto, solidário e generoso - um modo de se ser mais feliz. Uma pessoa sentir-se com uma capacidade de pensar, com tempo para isso, é sem dúvida um luxo. Mas então tem o dever (e não só o direito) de o aproveitar bem, tentando ser útil aos outros, tentando abrir o que sabe e sente. Pode ser que essa palavra não seja como a do profeta no meio do deserto, pode ser que as tecnologias de comunicaçao permitam abrir pequenos rasgões na(s) ideologia(s), que é como uma burka interior, incorporada e de que as pessoas se não apercebem.
Ridículo? Não há nada para além do sistema? Mas qual sistema? "Ele" conhece os seus limites?
Não pensar faz mal à saúde, por isso não temos outro remédio... o velho fármaco dos gregos, sempre na ambiguidade de poder ser veneno, conforme as doses.




3 comentários:

José Manuel disse...

Pois é, mas esse mundo que se gerou depois da II Guerra Mundial acabou. Estourou, com as consequências que estão à vista. Estamos a participar no nascimento de algo novo. Um mundo onde os jovens já não têm lugar e são considerados excedentários ou supra-numerários da sociedade. Quando muito precários no limiar da sobrevivência. A sociedade do descartável, nomeadamente dos individuos descartáveis, é o seu futuro.

O capitalismo do séc. XXI necessita dos individuos apenas como consumidores mas descarta-os como produtores e criadores em nome da "redução de custos" e da "flexibilidade" e da "competitividade" e outros chavões. Esta é a contradição insanável da sociedade capitalista do séc. XXI que estará no centro das lutas sociais do futuro.
Todas as ilusões do "capitalismo popular" e do "crescimento continuo" estão a desaparecer, até nas capitais do Império.

O capital não se uniu. Concentrou-se, ou seja os capitalistas maiores foram devorando os capitalistas mais pequenos.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Correcto!
Por que não vem ao curso do pensamento crítico? Está agora em horário pós-laboral, das 19,30 às 22,30 na FLUP, segundas feiras a partir de 0 de Abril (8 sessões!)
Abraço
V.

Vitor Oliveira Jorge disse...

queria dizer a partir de 20 de Abril!