quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A ideia (talvez) importante para federar jovens investigadores e consolidar uma escola de Pré-história

O “Portugal interior” depois dos “Paleolíticos” e antes dos “Romanos”: a Pré-história Recente (o Holoceno dos VI ao I milénios a. C.) do “país profundo”

 

“Portugal interior” – este conceito deve ser entendido de forma ampla, ou seja, correspondente não só a toda aquela faixa raiana em contacto mais directo com a Espanha mas, também, a toda uma zona muito mais ampla do “Portugal médio” que se encontra a uma certa distância do litoral onde ainda hoje a maior parte da população (c. 75%) se concentra, e onde as características de “ruralidade”, apesar da recente extensão urbana e das acessibilidades, são ainda notórias. É outra densidade de população e de serviços, é outro ritmo, é outra paisagem: é outro “mundo”. 

Ora, temos sempre de começar pelo presente para o passado, porque o que nos interessa compreender é como é que se deu historicamente esta “litoralização” do nosso território, não em época histórica, assunto relativamente bem estudado, mas para vermos se antes da presença romana havia sinais dessa “diferença” entre um “litoral” estreito e povoado, em ligação com o mar, e um “país interior”. 

Que “geografias” (físicas, sociais, culturais, mentais) se desenhavam em cada momento, quando as pessoas iniciaram e incrementaram uma abordagem do território que, não sendo “administrativa” e totalizante como a do Estado, não obedecia já à lógica da apropriação do meio “paleolítica”, ou seja, a um modo lasso dos humanos se relacionarem com esse meio? 

Esse é um problema importante, porque se intercala entre o “absolutamente Outro” (o Paleolítico, obviamente uma construção simplificadora actual para podermos pensar, uma convenção) e a nossa própria cultura, que começa com o Estado, a escrita, a cobertura administrativa do território segundo um “projecto global”, etc.

Trata-se de estudar comunidades que estavam em relação entre si, e que partilhavam muitas coisas e ideias, circulando no território, mas onde este território tinha barreiras simbólicas e formas de representação menos lassas do que as “paleolíticas”. 

É no fundo um processo muito variado, local, de comunidades sem escrita, e cuja principal “inscrição” intencional no território consistia na sua “monumentalização” perdurável, quer dizer, na fabricação de espaços e de paisagens com visibilidade e dureza, persistência, numa concertação de esforços nunca até então vista. Mesmo os seus grafismos (aquilo que toscamente se chama arte rupestre) não tinham a mesma lógica dos paleolíticos: há aqui um jogo de "citações", de transplantes, de transformações do meio que é de uma lógica global diferente, na sua imensa diversidade.

Uma teia dessas emerge em rede, autopoieticamente, sem que se possa encontrar uma razão ou motor primário. É essa não centralidade de fundamento que torna estas sociedades fascinantes: são ainda muito lassas, não têm provavelmente a ideia de se apropriarem do território senão à escala muito local, mas manipulam uma variedade de materiais e usam uma diversidade de técnicas antes não utilizadas; cristalizam aqui e ali diferenças entre seres humanos que antes não seriam concebíveis.

Claro que se trata de um problema mental, de cosmovisão, que está ligado talvez à criação de novas formas de intimidade e de centralidade (família, recinto, cosmos como um todo significante, nomeadamente em torno dos movimentos astrais, etc) que no longo prazo se desenvolve ou amplia, visto como um todo, mas certamente de forma muito complexa, e que se intercala entre o mundo paleolítico, de grande lentidão, e o mundo do Estado, de grande aceleração. 

Estão aqul presentes todos os problemas das ciências sociais: relações seres humanos/meio, problemass de género, questão do laço social e da identidade grupal, relação com a "natureza" e domesticação de alguns elementos desta, importância do parentesco e das genealogias, problemas relacionados com a liderança, a fronteira, o antepassado, a memória, a legitimação de diferenças, a gestação de “aristocracias” (gente que se legitima na sua "superioridade" por circunstâncias de nascimento e genealogia), o poder, a fixação de percursos, contactos, territórios, enfim, uma infinidade de marcas deixadas no mundo, que é anterior à burocratização estatal. É esse mundo que nos interessa estudar nas suas mais variadas manifestações.

A história, que é sempre uma visão interpretativa retrospectiva, mostra-nos basicamente três fases, de modo muito esquemático: uma fase "paleolítica" pela qual passaram quase todos os sítios do mundo (e de que os caçaçdores-recolectores actuais não são um resíduo, não, eles são tão "modernos" como nós), muito uniforme (claro que comparativamente muito menos monótona e mais acelerada nas suas fases terminais); a fase em que estamos há cinco mil anos, a mais curta, de emergência do Estado e dos processos de controlo globais e planetários,ligado a uma categorização das diferenças, aos conhecimentos "científicos", à estandardização da arte, às filosofias e grandes sistemas religiosos, etc. O facto desse mundo abrir brechas permite-nos entrever tudo o resto, que é muito mais vasto, que o rodeou e/ou que foi antes dele ser.

Pois é esse "resto", um resto estratégico, que importa compreender. Se a arqueologia, como profissão, tem interesse mais que evidente em se unir, enquanto pesquisa a Pré-história é um campo autónomo, que tem urgência em se redefinir, libertando-se dos evolucionismos e dos processos teleológicos.

Julgo que deve ser esse o nosso projecto, arqueólogos da Pré-história, que nos sentimos cientistas sociais, e não naturalistas ou geólogos, com todo o respeito. São problemas mentais, relacionados com a psique humana (não com uma natureza humana imutável) que nos movem ao estudo, de um ponto de vista materialista, isto é, eliminando as teleologias e os finalismos inerentes ao discurso histórico mais habitual. É aqui e agora que começa o nosso esforço, para obter um espaço de manobra entre as ciências sociais, e libertos de tutelas, seja da antropologia física, seja da genética, seja mesmo da antropologia cultural/social corrente, seja das chamadas ciências da mente ou da cognição, seja da primatologia, seja do que for.

Há um espaço que, antes de qualquer inter ou transdisciplinaridade, é só nosso. 

Não nos diluímos no resto da arqueologia, nem da história, nem da paleontologia, nem da linguística histórica, etc, com todo o respeito que esses saberes nos merecem.

Há uma prática, ma experiência, uma metodologia e uma visão do mundo que é nossa, e, por ser nossa, é que deve e tem de ser partilhada e entendida pelos outros como um (grande) valor. Um património e um projecto.

Federador das mentes livres e jovens, que as há neste país, entre os que se interessam por estes temas, que achamos cruciais e fascinantes.


1 comentário:

José Manuel disse...

Até que ponto a amostra arqueológica que temos é fiável para estabelecer essa comparação? As zonas litorais estiveram (estão) sujeitas a uma pressão urbanística e demográfica maior e a uma maior destruição de sítios arqueológicos do que o interior.