domingo, 8 de fevereiro de 2009

prestidigitação


Acaba de passar no canal 2 da RTP um documentário sobre o Neolítico e (como epílogo) as origens da civilização. Algo onde depunham investigadores franceses (J. Guilaine, por ex.), americanos, alemães, canadianos, de origem inglesa (I. Hodder, por exemplo), etc.

Focavam-se vários pontos importantes: a caça e a recolecção foram importantes durante muito mais tempo do que se julgou.
Como já bem se sabia, a sedentarização no Próximo Oriente (PO) é muito anterior à agricultura.
Também a conservação de alimentos (com a possibilidade de armazenagem e portanto de deslocações muito mais episódicas) é em geral muito anterior ao chamado Neolítico: ponto relativamente assente, ficando apenas a pairar o que é isso da sedentarização... coisa muito variada...
A agricultura (domesticação de plantas) é pelo menos em certos locais mais antiga em talvez 1.500 anos em relação à domesticação de animais que compõem o conjunto habitualmente associado ao PO: cabra, ovelha, vaca e porco.
O cão, como bem se sabe, é de domesticação muito antiga, é um "companheiro" do caçador-recolector. A domesticação "neolítica" (atestada por exemplo em Chipre) do gato pode estar ligada à proliferação de roedores, de ratos que se alimentavam de cereais armazenados, e portanto o gato seria um animal, por assim dizer, dos agricultores, segundo autores que intervêm no filme.
A caça permaneceu durante tanto tempo dominante (como em Çatal Hoyuk, na Turquia, por exemplo) que se aventa a hipótese de certos animais terem sido primariamente domesticados não para a utilização de carne, mas de leite. A comprovar-se tal, lá vai pelos ares a famosa RPS (Revolução dos Produtos Secundários, uma invenção de Sherratt em que muitos colegas acreditaram, de forma firme, querendo ver sinais dela em toda a parte, até em Portugal).
Também a propósito da famosa figurinha de mulher de Çatal Hoyuk, que constitui o logotipo daquele sítio e quase que do neolítico turco, bem como de outras figuras similares, Ian Hodder vem dizer que não temos qualquer motivo para as considerarmos "deusas-mães", como desde o século XIX muitos autores convencionaram chamar-lhes (era interessante fazer a psicanálise de tal obsessão). Aventa antes aquele autor uma ligação (pelo menos em Çatal Hoyuk) da mulher ao mundo dos mortos, mortos esses enterrados dentro das casas, e parece afinal que (pelo menos em alguns casos) em enterramento primário (quando antes se julgava que eram sobretudo, para não dizer na totalidade, enterramentos secundários). Ou seja, diz Hodder, as pessoas ao entrarem em casa entravam num mundo protegido pelos antepassados, dormindo literalmente sobre os restos dos mesmos em decomposição.
Guilaine por seu turno ainda vem com a ideia da casa rectangular, expansível, e divisível interiormente, enquanto evolução da casa mais "primitiva", circular, mais limitada... como certos arquétipos são persistentes mesmo nos melhores investigadores!
A própria arquitectura megalítica, com grandes menires em forma de T, aparece no Sul da Turquia associada a caçadores-recolectores (estudo alemão). Para já não falar de aldeias e grandes aglomerados onde a caça e a recolecção foram, durante muito tempo, a base da alimentação. Enfim... um mundo a mostrar a nossa ignorância e o extremo cuidado que devemos ter nos dogmatismos explicativos, sobretudo aqueles que somos obrigados a ensinar as novas gerações num quadro de aprendizagem cada vez mais moldado à feição do "fast food".
Algo que todos os autores evocam é a nova "mentalidade" que está por detrás de um mundo em que a caça e a recolecção deixaram de ser as formas dominantes de aprovisionamento de bens alimentares. Também acentuam a extrema variabilidade destes fenómenos de uma área do globo para outra, etc.
Mas o difusionismo continua a estar por detrás da explicação da chamada "neolitização" da Europa... se tudo fosse assim tão simples... para alguns era uma maravilha, mas para mim seria triste. Tudo já basicamente explicado... ná, aqui há gato!
Sobretudo, porém:
O que é mais interessante observar nesta ideologia é o evolucionismo, verdadeira ideologia europeia desde as Luzes, e que autores franceses como Guilaine ou Jean Paul Demoule (ver livros recentes dele e actividades do INRAP) continuam a utilizar, com recurso a paralelos etnológicos e a inspirações que foram desenvolvidas nos EU e no RU com a nova arqueologia/processualismo.
O evolucionismo cultural é uma teleologia da história em que se vê que, por uma sucessão encadeada de "acasos" e de "necessidades" (e "pouco a pouco", uma frase que JG utilizava muito no filme), sociedades essencialmente horizontais passaram progressivamente a piramidais.
A história teria assim dois "volants", que seriam o da caça-recolecção e das sociedades igualitárias (Paleolítico, a versão moderna do bíblico Éden) e depois o das sociedades de agricultores/pastores, com um grau de violência, de conflito, de vontade de domínio sobre a natureza, os animais, as plantas, os outros seres, que seria o "Neolítico" (o mundo até hoje, pois apesar da industrialização ainda continuamos a alimentar-nos na base de uma "economia de produção" de bens agrícolo-pastoris, digamos), incluindo novas formas de mentalidade e de gestão da natureza, de que o Estado e os seus aparelhos de controlo seriam uma emanência recente (a chamada civilização).
Portanto, em filigrana, e por detrás desta IDEOLOGIA continuam duas linhas de força:
- a ideia de natureza ameaçadora contraposta à ideia de cultura protectora;
- a ideia de que há uma linha de continuidade através da história que se pode ver de acordo com um domínio dessa natureza e uma proliferação do artificial.
Uma teleologia à luz da qual a sociedade em que vivemos nos aparece legitimada em raizes milenárias.
Salta pelos olhos dentro (mesmo de uma pessoa com conjuntivite, como é o meu caso actual) o carácter convencional desta narrativa, desta cosmogonia ocidental de origem judaico-cristã, ao mesmo tempo que começam a surgir contradições nas suas formas mais toscas e simples (funcionalismos, pacotes neolíticos, vagas de avanço, colonizações, noções sobre origem da religião e outras histórias, digamos, algo infantis). Estas matérias, que já se discutem desde os gregos (certamente desde antes deles...) ainda vão fazer correr muita tinta, como costuma dizer-se. Mas certas ideias feitas começam a desfazer-se, enquanto, em background, o fundamental suspeitamente se mantém igual, como uma moldura de que não conseguíssemos libertar-nos. Como se sabe bem, é essa mesma a definição de ideologia; aquilo que nos aparece imediatamente à consciência como insofismável, quer dizer, como um soco a-histórico e indiscutível, como uma crença, como uma convicção, como uma evidência. Só um tolo, um ignorante ou um presunçoso (um relativista pós-moderno, por exemplo, para alguns, que se julgam detentores da verdade) põe em causa esse "common ground".
E no entanto, a presunção é julgar que há um "common ground", um adquirido, algo que atravessará os séculos, e que a ciência é um conhecimento cumulativo que apenas se limita a aperfeiçoar no detalhe esse "common ground". Trata-se da suprema ilusão. A ciência não precisa de ser nada disso, nem desconstruir mitos é relativismo negativo: são o próprio motor do conhecimento a inquietude e a vontade de, sabendo-nos sempre dentro de uma determinada ideologia ou paradigma (conjunto de axiomas) querermos pelo menos ter a imaginação (poderá considerar-se ilusão... problema muito complexo) de sair dela, de ganhar distanciamento crítico.
Claro que temos de dar o desconto a estes filmes de divulgação, e aos colegas que neles depõem, porque quando qualquer um de nós é interrogado pelos media também se vê na necessidade de dizer umas coisas rápidas, acessíveis, que desmontem certos mitos (senão não é notícia) mas nunca ponham em causa as expectativas principais (senão isso nunca chega a ser editado, ou essa passagem é cortada do filme, digamos). Ou seja, o quadro em que somos entrevistados não nos pertence, engole-nos, é perverso.
Em suma, temos de contar uma história mais ou menos plausível, sentindo-nos às vezes muito mal por nos estarem a ver como cientistas (a dizer a verdade, portanto; as pessoas querem a verdade, querem acreditar, precisam de fé como de pão para a boca) e nós a sentir-nos uma espécie de prestidigitadores (a tirar da cartola os coelhos esperados pelo público para receber palmas e nos deixarem sossegados).


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