sábado, 3 de janeiro de 2009

superfície







Às vezes o mar enruga-se como uma cortina horizontal.

Até ao infinito.
Como um cântico dos defuntos
Que sob ele jazem, e que voltam com as suas rugas
À superfície, clamando redenção.

Mas como os defuntos estão reduzidos a fragmentos,
Só se vêem à superfície pequenos pedaços do que foi
O passado de cada pessoa, a história de cada biografia.
São ecos longínquos, que vêm de outro universo,
E entre os quais vamos avançando numa praia baixa,
Afastando cortinas, descortinando sussurros,
Vendo por vezes rostos mortos mais belos
Do que quando eram em vida.

Passeamos por este mar em pregas.
Como se atravessássemos a saia do mundo
Em busca do que sempre a saia esconde, e mostra,
O seu umbigo cheio de algas, o seu odor.

E nestas experiências empíricas nos perdemos,
Caminhando, caminhando, enquanto os defuntos cantam,
E o mar ondula como uma cortina, como uma toalha
Nunca lisa, enrugada sobre o passado, num sentimento
De que nada está jamais pronto, reencontrado, completo,
E apenas nos ficam imagens e sons, o coração trespassado
Por cruzes, as mãos incapazes de alisar tudo.


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texto: voj jan. 2009 porto
foto: Geoffroy Demarquet (rep. aut).
site: http://source.lab.free.fr/galerie/thumbnails.php?album=lastup&cat=0&page=1
para ouvir em fundo: http://www.sendspace.com/file/skkg5h
para s.

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