sábado, 24 de janeiro de 2009

aqui me apresento


Imagem: Alexander Bergström





Puxas a saia para cima.
Estás sem cuecas, tens o pêlo púbico
Rapado.
E dizes: eis o que me fizeram.
Racharam-me ao meio.
Alargaram-me as ancas.
Estou centrada na minha abertura
Feminina.

Podem os planetas dar todas as voltas.
Podem as cores da parede esmaecer
E voltarem a acender-se, conforme
Os dias e as noites, as tardes e
As manhãs, a sequência estranha
Das estações.

Aqui estou eu, sem cuecas,
Como se fosse uma vitrina
Selada dentro deste envelope,
Nua por sobre a minha nudez
Para além da vergonha e do frio.

Todos esses passados superei,
Raparam-me o cabelo, raparam-me
Toda. Aqui me apresento, de frente, despojo
Que atravessou as lâminas da Ordem,
Prisioneira da teia masculina,
Saída das mãos dos cirurgiões.

Estou rachada. Rachada ao meio, como a ponta
De um pénis. E de ambos os lados não há
Sangue, nem corre o tempo.
Tenho uma marca nas costas.
Tenho um número de utente.
Estou digitalizada, apresento a minha condição
Subindo a saia. Eis o meu destino.

Sou mulher, fui classificada.
Apresento-me ao fotógrafo, olho
De frente, para ser vista de frente
Para toda a eternidade por quem me vir
Nesta fotografia. Não sou inocente.
Não estou aqui por dinheiro.
Não pretendo ficar na história, nem isto
É um foto do dito nu artístico.

Ostento apenas. A racha.
A racha com que me racharam, e disseram:
É mulher. Nasceu mais uma mulher para o mundo.
Vai engordar ao centro, ter as linhas
Do losango. E puseram-me um vestido,
E fiquei no claro-escuro, às vezes frio,
Outras vezes resplandecente.

Estou aqui para encantar. Para ser indecente.
Para me prestar aos serviços, rachada,
Aberta, escancarada. Não me lembro do meu nome,
Mas tenho um sinal nas costas, estou arquivada.
Perfeitamente em ordem. Há um Estado que toma conta
De mim, desde que nasci até à minha morte.

As estações hão-se passar. Eu
Hei-de passar, aspirada para outras margens
Do tempo.
Mas a minha fotografia está aqui
Para atestar quem sou, o que sou, o que faço.

Levanto as saias, mostro uma parte do corpo
Que me denuncia. Exibo a minha própria denúncia.
Mulher. Destinada a ser trespassada,
A ser inseminada, a ser injectada, toda aberta.

Como tantas outras em fila, encontro-me
Entre o passado e o presente da humanidade.
Aqui, abrindo as saias como as cortinas de um teatro.
Com as pernas juntas como as de um cordeiro.

E vou rir no momento seguinte. Ou
Pelo menos sorrir desta casualidade.
Mulher, veja-se bem.
Escanhoada, comprove-se bem.
Rachada a meio, com toda a força,
Mas já passou, já foi há muito tempo, e agora
Posso talvez sair daqui em paz.

Largar as mãos. Descer as cortinas
Sobre a minha identidade, virar o meu código
Para novos rumos e fotografias.
Deixar de vos incomodar
Com esta nudez, ou indecência, a despropósito.

Demasiado crua para a literatura,
Demasiado inútil para o serviço.
Entre o presente do vosso olhar
E o tempo passado da parede, neste instante
Em que tudo se indefine, e se cegam
As retinas de tanto, tanto ver,
De tanto tentar compreender as razões.

Passam a correr, então, entre o texto
E a imagem, os acordes loucos da pergunta,
Os grandes traços da insistência.
Correm para as janelas, para a luz que vem
De algum lado, e deixa entrever um antes
E um depois, qualquer coisa que permita fugir
Daqui, da imagem inquietante na sua aparência
Calma, imagem oferecida do losango branco,
Pronto para ser inchado, para ser trabalhado
Sobre o trabalho já feito, sobre o irremediável.


texto voj porto jan. 2009

1 comentário:

Anónimo disse...

Inspira-te nas fotos da Lunática.....