sábado, 31 de janeiro de 2009

cinzas


Em mim houve talvez sempre (ou será uma imagem retrospectiva auto-complacente? decerto que o é) um reprimido: o de uma linguagem que fugisse ao seu uso comum nos dias e nas utilidades.

Essa linguagem, creio, só pode ser a da poesia e a da filosofia, uma poesia sempre em transbordamento de si própria (não há poema que nos satisfaça), uma elocução filosófica sempre cansada de si mesma: não há perfeição conceptual que não "soe" a falso. Então, desejo de um sussurro, ou marulhar subterrâneo, mas de uma onda, ou tremor, ou som, que nunca se vê ou ouve.
Cansa-me imenso (para não dizer que me espanta) a vulgaridade quotidiana, as utilidades, os "espíritos práticos", os calculismos rasteiros, as intenções e os pequenos jogos, os entretenimentos, os prazeres e os pequenos bem-estares: o estar bem seria estar mesmo incomensuravelmente muito bem, prestes a rebentar, é um insustentável, uma intensidade medonha, o prazer do raio que nos atinge os dedos e nos reduz a cinzas. Nostalgia das minhas próprias cinzas, cansaço dos existentes, e do ar que circula entre eles. É pestilento o jogo dos interesses.
Tenho um enorme prazer em utilizar a palavra para não dizer nada que faça especificamente sentido, para a reduzir à sua função "iniciática" (para não dizer inicial) de simples elocução, de mera música: como o começo de um som.
Por isso muitas vezes outros se acercaram de mim para fazer uma espécie de transfusão do que lhes era útil. Tudo o que obstaculizasse essa transfusão, ou a atrasasse, provocava e provoca nos meus "interlocutores" uma mal disfarçada expressão de impaciência.
Este desamor é frio, e pouco inteligente, pouco hábil. Os interesses, ao revelarem demasiado o seu oportunismo, têm algo de repelente, são o contrário da amizade, são hostis, mesmo por detrás do sorriso, da veneração ou do elogio.




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