Foto (rep. aut.): Katarzyna Widmanska
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texto: voj jan. 2009 porto
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Peço desculpa, sei que volto sempre aos mesmos temas. Mas será culpa minha? A tua imagem é que retorna sempre, olhando-me. Como uma música que não pudéssemos deixar de ouvir até à surdez, como uma fulguração que caminhasse até ao interior da retina, em cada olho - um por cada vez, ou os dois simultaneamente, tanto faz - e aí deslumbrasse os centros da visão, deixando-nos no escuro total para o resto do tempo. Entregues às túlipas negras da noite, aos seus campos a perder de vista, ao tacto dos xailes de seda ondulando sobre a pele, que é tudo o que nos resta quando deixamos de ver; voltamos então ao estado primário em que nascemos, às sensações primitivas, aos ruídos negros do interior do útero, cheios de bolhas de óleo, reflectindo o princípio.
Apareces sempre diferente, como a figura da segunda pessoa do singular. És tu. E basta eu ouvir essa palavra, basta eu escrever essas duas letras que te fazem caminhar até mim desde sempre, desde que abri os olhos para este mundo, desde que me ensinaram a escrever nesta linguagem, basta essa aproximação insidiosa para tudo se transformar. Há um terrível arrepio, uma febre, uma desinquietação das extremidades, uma comichão de pelos de arame soltos, explodidos a partir de um centro, negros.
Abrem-se corredores fabulosos, cheios de bustos de um lado e de outro, simétricos. Têm os braços amputados para serem mais vivos, para se contorcerem com dores - ou com prazeres, tanto faz, tais estados são uma e a mesma coisa. Esses corredores vivem da luz, mas dirigem-se para a noite, para as túlipas negras dos jardins às escuras; de forma que cada lampião brilha menos à medida que se afasta, e as cores das pinturas laterais vão desmaiando por esse caminho vertiginoso.
Chegaste, estás em casa, estás aqui, tão perto, entras por uma parte de mim e sais por outra como uma espada que me trinchasse em todas as direcções, tal como julgamos que vai acontecer àquelas mulheres que os ilusionistas põem dentro de umas caixas e cruzam com lâminas.
És uma figura da mais pura ilusão, ou seja, és a minha realidade. Os teus lábios estão perto, oferecendo-se à frente do rosto, e não dispersos pelas salas, pelas atmosferas, como na maior parte das imagens que sem cessar ondulam por todo o lado, viajando soltas no espaço.
As luzes acendem-se na consciência percorrida pela noite, e atiram contra a retina a tua imagem reproduzida nos tectos luxuosos. Sim, gosto deste veludo, deste luxo absoluto, o que se diz com duas letras: tu. E estas letras são os meus dois lábios entrando na tua boca. Visitando cada uma das tuas papilas, entrando no negrume da tua língua, percorrendo cada milímetro do teu palato, e pelo caminho bebendo a saliva, recolhendo os sons da aprovação.
Vem, diz a tua faringe. Vem, diz a tua laringe. Sou um rio de sangue negro. Vem pescoço do meu ganso negro, o que vou sangrar. Enche-me de túlipas fortes, no apogeu das suas corolas. Dilata-me. Corre pelo mar espelhado das suavidades, como se fosses um escaler quase parado, arrasta as penas pelas paredes das minhas concavidades interiores. Cruza duas penas de ganso negro sobre a minha garganta. Pousa como uma lua negra no fundo da minha sensibilidade, e mantém aí as pétalas da túlipa, em extensão total, abrindo as válvulas todas da eternidade, deixando brotar os repuxos emocionais mais mortíferos, viola as campas que as túlipas cobrem há séculos, e verás que os cemitérios se abrirão à noite, para deixar entrar o silêncio da cidade, o espasmo terrível de todos os seus habitantes, cada um na sua câmara, todos unidos sem o saberem num coro simultâneo.
Assim chegas, estas frases enuncias, riscadas a preto sobre a minha cegueira. E depois ainda dizes que volto aos meus temas, que insisto em amar-te, que, tal como o que sofre da embriaguês de nunca ser capaz de parar, quero sempre um copo mais de licor.
Uma substância de cor do óleo, da textura do útero, um absinto cheio de bolhas onde, em cada uma, se espelha o princípio; o que faz erguer os lábios túmidos de cada uma das papilas. Em uníssono. Numa mecânica celeste tão intensa que as paredes param, a realidade bate nas paredes do fundo e inicia aí a sua ejaculação.
Enquanto o Grande Ganso Negro entra pelo tecto da sala, com o olhar intencional, pronto para a Eucaristia. Com a lentidão do batel negro, sobre o mar de óleo. À noite. Quando finalmente chegas, infalivelmente. A tua mortífera doçura, essa respiração que eu engulo, ciente de não ir mais parar.
1 comentário:
gosto mto da widmanska. há uma foto dela de que gosto particularmente, "ophelia".
Bjs, Vítor.
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