sábado, 17 de janeiro de 2009

cruzamentos



estes olhos já passaram
por muitas cidades
,
estes ouvidos por muitos sons;

estes pés já subiram
e desceram
muitas escadarias
,

e estas mãos já agarraram
o papo trémulo
de muitos pássaros
.

estes olhos
já foram atravessados
por muitos pássaros
,
estes ouvidos já desceram
sobre muitas escadarias
;

estes pés já passaram
entre
muitas estátuas
,
estas mãos já sobreviveram
a muitos livros
;

estes olhos já cegaram
muitas vezes
,
e voltaram
espantosamente
à luz
a partir dos ouvidos
;

destes pés já começaram
muitas escadarias
;

estas mãos já alcançaram
muitos mamilos,

e deles voltaram
trémulas
;

e sob estes sapatos
já muitas calçadas

se dobraram,
e gemeram.


mas as coisas às vezes
levantam-se
com uma força doida:

as escadarias
em forma de árvore.

as mãos em forma
de tronco.

as tapeçarias para deixarem
passar os livros,

os pássaros
para darem entrada
aos olhos.


as palavras para encherem de tinta
os painéis de fundo
do universo
,

para pintarem
o sardónico riso
das divindades.

o pénis
para ficar no centro.

entre os olhos cegos.
sobre a tapeçaria.

escarlate:
para orientar os pássaros.


os pés para permanecerem
bem esticados
entre as cordas

do presente.

o corpo todo tenso
entre trapézios.

dando passagem ao vento.
permitindo que as cidades, e os sapatos,
e os pássaros

entrem pelos olhos dentro.

pela vagina
das geometrias,
pelas aberturas
doridas,
pelo interior das varizes,

através das electricidades
invisíveis,

com a velocidade das ausências
que patinam pelos corredores,

entre as corcovas dos candelabros.

permitindo
que os dentes agarrem as cordas.

que as línguas desçam as tapeçarias,

e tragam na ponta
os papos trémulos,

os olhos cegos,

ardendo em dor

pela passagem dos pássaros,
pela profundidade das infecções,
pelo atrito dos riscos
sobre as retinas,
as suas lesões:


muitas,
atiradas para o lado
pelo vento,

pela sua própria
direcção lateral.


com a força,
a fúria,

das notas musicais,
quando se voltam para trás

e entram de novo na boca aberta
dos instrumentos que as sopraram:

quando o muito,
quando o plural

reflui sobre si mesmo.

e no jardim recolhido
entre os gansos heráldicos,
se acende uma vela
sobre a carpete.

e o pénis sobe sublime
sobre o escarlate.


estas mãos
já pintaram demais

as telas do universo.

delas saem as estradas,
as escadas, as veias,
as velas
que os pássaros cruzam
furando os panos

de qualquer conclusão.

de modo que o texto
acaba sentando-se
no fundo de si mesmo;

a paleta descai
uns centímetros
sobre o dorso do Pintor:

passou-se de facto
aqui
já muita coisa!



voj jan. 2008

2 comentários:

Liliana Gonçalves disse...

gostei muito da construção, fio condutor deste poema.

tem algo que alumia a leitura até ao ponto final


(este verso ficou-me bem a morder o pensamento)

"o corpo todo tenso
entre trapézios."

bom fim de semana

Vitor Oliveira Jorge disse...

Sinceramente, estou de acordo! Pode parecer narcisismo,e é mesmo, mas tenho a sensação de que às vezes escrevo poesia.
Obrigado. Um beijo pelo estímulo. Frua o tempo livre, que é a melhor coizinha que um cristão tem.A solidão também (refiro-me mesmo à mais absluta solidão, nclusive a que resulta de sermos seres), mas muita gente ainda não percebeu. Não tem mal.Andam prá í.