quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Comparar: algumas notas soltas espontâneas



Comparar é confrontar realidades diferentes. Confrontar, quer dizer, pôr frente a frente, ou lado a lado em frente ao observador, por forma a estabelecer analogias e diferenças. Essas semelhanças ou dissemelhanças não estão à partida definidas, sendo pelo contrário resultado do processo de comparação. Por isso, quando se diz "realidades diferentes" há que ter em conta que essa diferença pode ser mínima, ou mesmo não aparente à escala da experiência corrente (e portanto confundível com identidade entre essas realidades consideradas), ou ainda, no outro extremo do espectro de possíveis, essas realidades podem (poderiam) "parecer" tão diferentes que não seriam comparáveis, ou seja, o que haveria de análogo entre elas seria tão escasso ou rarefeito que a sua comparação de pouco ou nada serviria.

Dito isto, tudo fica em aberto, ou seja, é possível "comparar o incomparável", para usar o título que Marcel Detienne deu a um dos seus livros. Aliás, que é a metáfora senão a comparação entre realidades aparentemente tão distintas que nada parece terem a ver uma com a outra? E no entanto poderíamos dizer que todo o nosso pensamento é metafórico, ou seja, que o processo criativo inerente ao pensar (e a agir) consiste em ligar, por comparação, por associação mais ou menos inesperada ou não, realidades diferentes, quando por exemplo usamos (em poesia então isso é tão frequente) o "como", ou "como se", para as "aproximar", para as confrontar.
Comparação, comparar, significa trazer a um mesmo quadro problemático, ao interior de uma moldura, de uma sintaxe, de um possível campo de sentido, de um discurso, coisas respigadas daqui e dali, que, pelo simples facto de assim ficarem enquadradas, estão já a comungar de um certo grau de semelhança, como "objectos" sujeitos à hipótese comparativa, à análise do confronto.
Ser ou não comparável não é uma propriedade das coisas, porque as coisas não têm uma essência em si. As coisas são presas de uma formação discursiva que lhes estabelece características, as quais depois se podem comparar segundo critérios muito diversificados.
Um desses critérios pode por exemplo ser o da escala. Eu posso comparar uma bola de árvore de Natal com a lua, são ambas objectos mais ou menos esféricos. De um ponto de vista "poético" pode ter maior ou menor pregnância estética tal comparação, ou ser simplesmente um tremendo pastiche. Mas também posso comparar coisas totalmente dissemelhantes, como seja uma linha de lã inserta num tear ou um fio a ser tricotado para uma camisola, com uma linha de texto, com uma sequência de raciocínio, com um percurso, etc. Tudo é e não é comparável de acordo com o critério de comparação, que implica uma certa expectativa sobre a sua utilidade, capacidade explicativa, potencialidade estética. A comparação agrupa, mas o que importa não é o agrupamento, é o critério que lhe subjaz, que dá sentido à "tipologia", à classificação, à analogia, ao movimento de abstracção que está por detrás da aproximação de coisas diferentes, que podem ser homólogas, ou análogas, ou índices (indícios) uma da outra segundo o critério adoptado.
Comparar é um processo constantemente em curso na vida corrente, empírica, qualitativa. O que a caracteriza, tal vida? A fusão do pensamento e da acção. Pensar, estudar, em termos intelectuais, se quisermos, em termos científicos, filosóficos, artisticos, é pelo contrário, antes de mais, rasgar, rasgar o senso comum, separar, pôr em causa o evidente, o identitário, o que parece idêntico, para poder comparar o incomparado.
Os arqueólogos, também ao nível do seu trabalho, passam a vida a comparar, quer dizer, a estabelecer analogias ou diferenças entre o que vêm e o que esperavam ver, ou já viram algures e trazem à meméria, ou vêem porque põem sobre a sua mesa de trabalho. A comparação é muito importante em todas as ciências sociais, quer dizer, em todas as ciências em que o que muitas vezes é mais importante são as variações, e não os protótipos ou arquétipos, em que o mais interessante podem ser as particularidades e não as generalidades, as classificações e taxonomias simples e evidentes. Porque quando reduzimos à unidade estamos imediatamente a falsear a particularidade da realidade. Porém, todo o pensamento, mesmo o científico, é generalizador por vocação, compara para encontrar a unidade subjacente à diferença. É nesse JOGO que se deve perceber o processo comparativo, a sua complexidade, e discutir a sua maior ou menor pertinência em cada caso. Se não comparássemos, se não usássemos a metáfora, a analogia, ficávamos colados ao particular de cada coisa, de cada percepção, de cada experiência. Não sintetizávamos, não abstraíamos. Ora, toda a análise parte de uma síntese e desemboca noutra síntese.
Comparar é testar viabilidades de comparação. Eu posso, passado um processo comparativo, encontrar tais diferenças de escala, de contexto, de manifestação entre realidades distintas, que digo assim para mim próprio: esta comparação não me leva a nada. Mas só no fim é que sei, ou julgo saber: à partida, não posso descartar qualquer hipótese de comparação, de analogia, mesmo que essa analogia seja por assim dizer negativa, quer dizer, mesmo que duas coisas se oponham termo a termo. Se se opõem termo a termo já foi ÚTIL compará-las.
Em todo este processo, e por muito grande que seja a técnica do investigador, pensador, criador cultural, científico, etc, o que importa é a INTUIÇÃO. A intuição guiada pela metodologia (senão pode derivar em delírio) é o génio do criador, é aquilo que distingue um criador de um mero reprodutor, que ou repete o mesmo sobre as mesmas coias, ou repete o mesmo sobre coisas diferentes, isto é, replica sempre o mesmo modelo, apenas variando de campo, ou fica mesmo aquém disso, não desenvolvendo o tema, embora possa publicar mil "trabalhos".
Pensar é DESENVOLVER, desmear um tema. E o processo de desmear um tema é feito pela linguagem. E a linguagem é um sistema de conotações (não apenas de denotações), é um aparelho simbólico, uma máquina de produção de sentidos que não está desgarrada da nossa experiência prática e corporal, antes se identifica com ela totalmente. Pensar é sentir ou então não é pensar nada. E para pensar temos de estar sempre a comparar.
Pode comparar-se TUDO desde que se estabeleça qual o critério sujacente. Tal critério às vezes só aparece no fim, quer dizer, a resposta explica a pergunta: mas, se virmos bem, a pergunta já pressupunha a resposta. Num certo sentido, perguntar é iniciar o processo de justificação de uma resposta.
En tudo isto as taxonomias, as tipologias, as comparações são fundamentais. Mas não levam a esquemas hirtos, em árvore ou tronco; são antes rizomas, realidades fluidas, líquidas, sempre a escorrer de umas para as outras, sempre em devir, sempre em processo de congelar e de derreter.
É esse movimento da vida, é esse o movimento da comparação, tanto ao nível qualitativo, mais ligado muitas vezes ao emocional, como ao nível do raciocínio (eis mais uma dicotomia absurda, claro). Quando optamos, estamos sempre a pressupor uma intuição que resulta de uma comparação espontânea, digamos: isto é bom, ou isto é a única saída, vou por aqui e não por ali, etc, etc. O próprio processo de sedução é um processo de verificação, de re-conhecimento, em que estamos sempre a comparar: gosto, não gosto. Só que esse processo é em grande medida inconsciente, e esse é o contributo que a psicanálise teve. Quem não o considera é um "bruto", não compreende - não sente - a complexidade sensível do ser humano.
Comparar em arte é uma coisa, comparar em ciência é outra, comparar em filosofia é outra ainda. Mas no fundo nada disso são compartimentos estanques. A comparação na realidade visa a fusão das coisas, a síntese, a categorização. Comparar é arrumar, em muitos aspectos. Mas temos de nos precaver contra o nosso pensamento demasiado categorial, funcionando por categorias binárias (de que a digitalização do mundo, a sua divisão em zeros e uns é a apoteose final, até agora - é uma engenharia profundamente redutora e aliás uma utopia). E temos de pensar que o fundamental é o CRITÉRIO da comparação, a sua pregnância, a sua utilidade hermenêutica, e não qualquer essência das coisas ou dos métodos que ditasse que determinada coisa é comparável, ou não, com outra. Alhos e bugalhos podem confundir-se ou não, conforme o objectivo em vista, ou seja, a pertinência da questão. E a pertinência da questão só aparece com a resposta e com o temporário consenso, ou admiração, ou aplicabilidadade, de tal resposta.
Enfim, isto dava para toda a noite...
O que já não tenho pachorra por vezes é ver as pessoas a discutiram coisas num novelo de confusões, apegando-se às palavras e a todo um pensamento espontâneo... compara-se, não compara, é comparável, não é comparável, etc. Nenhum Deus no princípio do mundo nos obrigou a ser assim limitados. Nós é que nos limitamos, pela nossa preguiça de aliar ao pensamento a mesma aisance com que comemos, dormimos, caminhamos, encontramos pessoas, amamos, fazemos amigos, escrevemos blogues, incluindo estas banalidades que eu escrevi... tomando alguns medicamentos para a constipação, a gripe ou a maldita conjuntivite, que nos dificulta ver bem o écrã, tal como o senso comum, que, se nos ajuda no quotidiano ordinário (vulgar), se torna ordinário (boçal) quando transposto para o raciocínio. É uma monstrusidade, uma torção.
Quando dizemos de alguma coisa que ela é incomparável estamos apenas a usar uma figura da retórica elogiativa ou pejorativa: é realmente tão diferente que não tem parelelo fácil à vista, confrontação possível (para melhor ou para pior). Estamos tão só e apenas a afirmar uma relativa unicidade da coisa (monstruosa, bela, sublime, etc), levados pela nossa convicção.




4 comentários:

Anónimo disse...

Ao queres comparar Castanheiro do Vento com Los Millares... já estás a construir uma resposta. Pode-se saber qual é?

Vitor Oliveira Jorge disse...

É ASSUNTO PARA OUTRA POSTAGEM.
É preciso, para valorizar a diversidade do empírico,tirar de vez em quando os pés da terra e, de cima, ver como deus a extensão do espaço e do tempo - intuir as conexões. É uma poética. Todos os grandes cientistas viram primeiro de longe e depois foram comprovar ao local. Ambos os movimentos são necessários, não se pode andar sempre de balão senão fica-se deus louco, ou filósofo. É importante não ser filósofo. E deus já foi louco o bastante para criar este mundo. Mas pode-se ser ainda assim inteligente.

Anónimo disse...

Deixa-te de derivas. E responde ao que interessa:qual é a tua resposta em construção?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Isto não é a televisão, tipo pergunta-resposta. A resposta em concreto tenho-a dado em muitos trabalhos, mas nunca se está satisfeito com o que se fez, há uma maturação constante. Há uma compulsão à resposta rápida, mas ha que suspender esse jogo, que é o do senso-comum, o da resposta na ponta da língua em meia dúzia de frases. Não! Mas darei resposta, porque o pior de tudo, claro, é deixar os outros no escuro sobre aquilo que se intui. O que se intui ao responder torna-se mais claro.