sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

sobre a mesa posta


vejo-te nua entre cacos
enquanto as mesas sobem
e debaixo delas levantam cabeça
os lobos azuis, os dentes da inveja
e da perfídia

vejo-te nua entre um inverno e outro
enquanto os líquenes sobem
e sob a toalha do mar cresce o musgo
a espuma dos bivalves
que se querem fechar como facas afiadas
sobre os nossos lábios

e não encontro a estação
intermédia.

vejo-te desamparada
com as carnes cortadas
entre prenúncios e pressentimentos,
e rodeada de gente de hálito de vinho
os foliões que nada sabem de nós,
ou que fingem ignorar-me

vejo-te na mesa
rodeada de convivas
a rir a vinho tinto, azul,

mas eu estou longe:
que estes vampiros só aparecem
pela calada da minha ausência!

vejo-te nua, vejo-me a mim nu
sobre uma mesa de cacos
enquanto os palhaços se aproximam
nada percebendo do que é a dignidade,
a absoluta inacessibilidade,
do que se passa aqui

e vomitam sobre os degraus,
aos meus pés

uns imploram, outros ameaçam,
outros segredam, outros conspiram,
outros querem colaborar
com caras de quadro de bosch

vejo-nos nus sobre a mesa dos cacos
com os filhos da mãe a tocar à porta

e não encontro um momento
intermédio
para florestas, para ramos, para armações
florais.

bato com força as baterias da minha infância
toco os tambores da minha juventude
e seguro uma lámina, um martelo,
qualquer coisa que me permita
defender-me do primeiro,
antes de ser arrastado pela horda

estraçalhado pelos dentes azuis
dos que desde pequeno me perseguem,
lobos da inveja e da mediocridade
que entendem perfeitamente esta revolta
e a não podem suportar

e contorcem-se em espasmos
num arfar de espuma entre os dentes
na expectativa de fecharem as fauces
sobre a nossa nudez
no frenesim de chegarem
ao tampo da nossa mesa.

sei que já não vou ter força
para me defender a mim e a ti
e ficaremos nus sobre uma mesa de cacos
enquanto os foliões nos invadem a casa
e profanam o meu silêncio
como salamandras que se propagam

figuras amarelas de olhos muito dilatados
que vão trepando a pouco e pouco
com as patas coladas às pernas
e erguem a mesa, os lençóis brancos
para amortalharem o que de nós restar.

assim quando eu estiver aqui
ou em terras distantes, tanto faz,
hão-de encontrar o momento mais oportuno
para destruirem o pouco que resta
de uma construção de décadas
para virem com as lâminas sangrar-te,
sangrar-me com o gume hábil

e partirem em mais cacos os cacos
que já nos rodeiam
e atentarem contra a nossa carne nua,
na sua precisão de talhantes
na sua exactidão cirúrgica

e tu darás uma gargalhada,
azul de vinho tanto que já bebeste,

antes de seres cortada ao meio

e só espero já então
estar reduzido a umas postas de carne

sobre a mesa nua coberta de cacos

um conjunto de vitualhas sobre os lençóis
as toalhas dos vampiros que sempre
quiseram vir aqui consumar a sua intensa,
extrema maldade.

aqui, no próprio centro de onde escrevo
rodeado de tesouras abertas levitando
num permanente alerta de brilhos,
de espelhos
cortantes,

espelhos onde se reflectem
as florestas distantes, verdes,
rodeadas de armações florísticas,


da nossa juventude, quando a nudez saía intacta
de dentro das folhas carnívoras;


e os lobos já existiam, claro,
mas nós éramos incólumes,
e nenhum de nós sujava os dentes
de vinho tinto

e as pingas de sangue
nos rodeavam

em auréola,
como as línguas de fogo
do pentecostes,


e os cacos em torno de nós
voavam

como pétalas gloriosas,
circulantes,

cintilando
em redor
marcando o contorno
dos corpos


num entusiasmo de carosséis
imparáveis




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Imagem: Bogdan Zwir (rep. aut.)
Portal: http://www.zwir.ru/zwir.htm
texto: voj 2008 porto

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