quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

anúbis




Todos os anos,
Por altura do solstício de inverno,
Te apresentas.
Sempre com as mãos para a frente:
“Pai, estou aqui.”

Todos os solstícios,
Mostrando o corpo
Todo queimado,
Me lembras: “não vês
O que me fizeste?
Não reparas como estou?”

O inverno é no sótão,
Outras vezes na cave:

E pedes:
“Lambe-me os estigmas,
Como fazem os lobos
Uns aos outros, trata a tua cria."

"Não vês que ardo,

Sobretudo à noite,
E tu não me acodes?”

“Aguardo a ordem,
O que devo ser.
Agora tens de marcar
O meu destino.”

E assim um candeeiro cheio de velas
Começa a descer do tecto,

Numa queda lenta
De muitos séculos.


"Mas não vês como é impossível
Misturar a minha baba com a tua,
Pois há sempre os lobos lá fora
Que jamais me perdoariam.”

“Eu tornei-me Anúbis, o mumificador,
o que se apresenta com cabeça de cão
e te conduz à porta, onde te larga.”

“E na verdade é isso
O que de facto esperas:
A baba dos lobos,
O afago dos seus caninos,
Entre os troncos,
Sobre a neve, entre os seus flocos,
Onde a mistura deixa marcas,
Cores, sinais de acontecimentos."

"Tu queres a baba dos chacais
Ainda jovens, a sua força arquejante.”

“Vê a mesa, vê as compressas,
As tiras de linho
Com que esterilizei o Saber,
Em que prestes te envolveria:"

"E como transmuto o meu desejo
Nesta sublimação,
Como te afago toda nua de palavras,
Sob o olhar atento
Da minha pele verde,"

"Enquanto as lamparinas desinfectam
Os bisturis, neste silêncio oco
De laboratório.”

“Assim te recrio aqui,
Sótão ou cave,
Tuda nua de mãos entregues,"

"E depois te vou largar lá fora,
No cume do solstício,
Nas cristas aguçadas do frio,"

"Enquanto dentro da câmara
Uma lágrima de cera
Começa a cair do tecto
Ao meu encontro,
Como uma estalactite.”

"É para esse Reino
Que tenho de voltar,
Virando-te para sempre as costas
Ensanguentadas,
As espáduas outrora brilhantes;"

"A pele dolorosa
Onde agora já só se inscrevem
Com bisturis fundos, finos,"

"Os hieróglifos da Nostalgia."



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foto /rep. aut.): Bogdan Zwir
site: http://www.zwir.ru/zwir.htm
texto: voj porto dez. 2008

4 comentários:

Daniela Martins disse...

Perfeito :)

Gostei imenso.

Liliana Gonçalves disse...

Este poema é uma "delícia" de sentidos.

Um Bom Natal.

Vitor Oliveira Jorge disse...

obrigado, também para si!
Sim, enquanto muitos se deliciavam a comer muito, eu, que também gosto de saborear coisas boas, diversifico...

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado mais uma vez pelos comentários. A poesia regenera-me dos ritos colectivos e das banalidades repetidas a que todos nos vemos obrigados. Quando a que tento fazer atinge outros positivamente, isso é bom. Por isso este blogue se tornou para mim fundamental.