domingo, 28 de dezembro de 2008

astigmatismo


Viver não tem sentido algum. Quer dizer, não tem nenhum sentido transcendente, comum, pré-fixado. E ainda bem, porque é nisto paradoxalmente que reside a nossa liberdade. Uma liberdade trágica, diria.
Somos de facto nós (cada um de nós), ansiosos de sentido, que constantemente lhe procuramos (à vida, à nossa vida primeiro, e à dos outros também, porque não poderíamos viver sozinhos) atribuir um.
Seres da intencionalidade, somos sempre virados para a frente, mesmo quando recordamos nostalgicamente o passado (quando o criamos, na verdade, como essencial ao nosso equilíbrio psíquico). Uns têm a sorte de ter uma formação que os mantém entretidos e até, por vezes, entusiasmados, para não dizer em êxtase. Felizes deles. Possuem um escudo, uma almofada, que os distancia do choque directo da realidade, a não ser quando esta bate violentamente contra a pessoa sensível e frágil que cada um de nós, até o mais bruto bandido, é (doença, acidente, agressão, sentimento de pânico de qualquer tipo).
Felizes dos que morrem como se adormecessem. Dos que vivem para um ideal redentor, colados à sua crença, confundindo aparentemente realidade e utopia.
Felizes do que vivem construindo uma obra, imaginando-se deuses, fantasiando que vão perdurar no tempo, como se isso tivesse algum sentido. O sistema solar há-de explodir um dia, e Deus está tão longe que nem sentirá os estilhaços dessa explosão imensa.
Felizes dos que amam, dos que se apaixonam. Estão embriagados, virá a ressaca, mas eles por ora não sabem.
Felizes dos que se sentem felizes, dos que sentem esse arrepio na espinha da auto-consciência, e vivem já o futuro saboroso da recordação como presente.
Pois somos todos infantis, seres do jogo. E quando começamos a deixar de ser infantis, fazemos filhos, para poder voltar a brincar. A seriedade total seria insuportável, pois nós somos os únicos animais que sabem que vão morrer, e isso não é um pavor, um abismo. É simplesmente a fonte do prazer humano de viver,de poder inventar um sentido, tão arbitrário como qualquer outro.
Grandes poetas citados durante séculos, ou ignotos presos no fundo de uma cama de hospital esperando pelo fim, sem obra feita, nem família, nem notoriedade, todos, por igual, vivemos em função desse momento que nunca poderemos vivenciar.
Eis a nossa condição: jogar cartas, entreter o tempo.
Por isso às vezes deprime ver os jogadores. É como se fossem imagens sobrepostas. Fazendo uma cena sem sentido em cima do sem-sentido da vida. Há um ligeiro descolamento nessa sobreposição, um astigmatismo.

1 comentário:

AM disse...

Belíssimo texto. Muito obrigada.