sábado, 20 de dezembro de 2008

encontros botânicos: no jardim

estarei contigo, sempre aqui. a este sítio, a este jardim, voltarei sempre. e olhá-lo-ei sempre sentado do mesmo banco, registando como as estações e o jardineiro vão fazendo o seu trabalho. mas o mais importante é evidentemente a Luz, sem a qual nada disto aconteceria, ou chegaria até mim. a luz é importante para as Sombras, que é isso tudo o que vemos, como já Platão sabia. quando eu também me tiver confundido com a minha sombra (quero dizer, quando os recortes de ambas coincidirem para a eternidade), volta a este sítio. senta-te neste banco frio de azulejos. deixa a saudade invadir-te as nádegas em contacto com esse frio. lê o que agora escrevo. e escreve por cima disso. até tudo se tornar ininteligível, e poderes voltar enfim para casa, para as tuas amizades, para a vida de todos os dias, livre da minha sombra. parte daqui para os países.




volto sempre aqui. ao chão. caminho, ando, salto, corro, como num jogo que quisesse evitar uns sinais e pisar outros, como aqueles miúdos que brincam. também o vento brinca com as folhas espalhadas e secas, fazendo-as mudar ligeiramente de lugar, e às vezes levando-as num impulso até muito acima das copas a que já pertenceram no passado. é: caminho, deixo pegadas, traços para que não me volto, com receio de que me apareçam de novo à frente dos pés, dificultando o passo, exigindo constantemente opções: piso, não piso. sou um ser distraído por natureza, caminho para o meu futuro, sem saber o que ele exactamente é, como se estivesse a vê-lo como passado, e isso fizesse algum sentido.




há árvores muito parecidas com elefantes. são de facto elefantes que pararam. e das suas patas desenvolveram-se raizes em profundidade. isto é produto de uma investigação científica, e portanto absolutamente certo e correspondente à Verdade. há Provas na Pele. de facto são absolutamente similares, a pele da árvore e a pele do elefante, pelo menos nalguns casos em que a verdade assoma, como que a piscar o olho e a deixar ver um bocadinho do corpo (dela, Verdade). A Verdade é como uma Mulher, tem as artes da aparência e da metamorfose, do strip. E tal como um elefante ou uma árvore, pode-nos deixar estupefactos nos seus meneios, sejam eles monumentais ou subtis. é fantástico como pode passar quase despercebido! e no entanto está tudo na Pele.




uma só palavra, uma simples frase, pode ser mais decisiva do que tudo o que os poderosos deste mundo contantemente congeminam, do que tudo o que os Filósofos
e os Matemáticos inventaram. trata-se de lançar a enxada para o sítio certo, sobre as folhas deitadas. trata-se de tomar o pulso à vara do equilibrista, e passar como Grande Equilibrista sobre o abismo. mas o equilibrista, mesmo que consiga chegar ao outro lado, e ter o Aplauso, nunca ficará satisfeito com a proeza. irá sempre subindo mais alto, segurando a vara maior. e o que cava, quererá sempre experimentar uma vez mais. é isso que têm as folhas caídas de infinitamente superior: abandonam-se, não desejam nada. só possuem a luz que sobre elas desce.





quando todos os valores partiram deste mundo, ficou o do ouro, que foi aliás o primeiro valor. por isso os antigos falavam de uma idade do ouro, e os exploradores corriam em busca do el dorado. não admira assim que seja esse valor o que ainda hoje persiste: uns querem-no armazenado em grandes cofres, mas outros mandaram fazer coroas com folhas de ouro: e há séculos caminham, e há séculos sobem as escadarias que levam ao sítio da coroação. por isso a vida humana é um cortejo. e todos querem lá ir, com o seu pedaço de ouro, nem que seja o da lâmina que há-de ser usada pelo segundo deles a atingir o topo, para assim poder chegar ao interior do peito do primeiro.





enterrei os joelhos na terra mole e húmida, na terra adubada pelo meu próprio corpo. e assim ajoelhado olhei para cima, e pedi às folhas: deixai de voltejar sobre mim como insectos policiais e assassinos. deixai-me um espaço para que que a minha alma possa ascender no azul, reencontrar a minha casa, a mãe que não tive, o pai que não tive, o irmão que não tive, a companhia que não tenho. quero voltar ao meu presépio. sentir o bafo dos bichos, a humidade dos focinhos. diluir-me no seu afago azul. esperar pelos embaixadores deste mundo, que me hão-de trazer as essências, as quais, se chegadas às narinas, inebriam. tenho ânsia de que esse azul me entre pelo corpo todo, e me permita esticar até aos quatro cantos do Conforto. Basta de adiamentos.




no princípio deus fez o homem e a mulher. o homem rugoso e cheio de bicos. a mulher macia e cheia de poros. e deus disse à mulher: ondula como areia do deserto, como água do mar, como serpente irrequieta. e deus disse ao homem: espera pelo momento certo. e assim aconteceu. um dia uma língua enorme envolveu o corpo da mulher e encheu-a de sémen. a mulher começou de imediato a dilatar-se de uma maneira desmesurada. e rebentou como um balão no ar. foi assim que se iniciaram todas as coisas. desde então a mulher continua a dançar como um balão que ainda não parou, para espanto do homem que espera a segunda ordem de deus.






as plantas são produto de antigas explosões, quando todo o universo era verde, feito de clorofila densa, sem interstícios. um dia deus espirrou, e as plantas ficaram assim, explodidas a partir de si mesmas, como uma espécie de movimento da clorofila inicial derramada para fora, em todos os sentidos possíveis e imagináveis, o que era obviamente impossível, mas se tornou a explicação mais plausível. é isto tudo o que sabemos sobre o assunto.




era suposto estarmos no meio de um deserto. mas encostaram-nos a uma parede. de modo que toda a nossa erecção verde tem o seu quê de trágico. Mas passamos bem. feliz natal para todos, especialmente para si. até ao mais extremo vómito repetiremos as frases que todos esperam. encostados à parede, mas sem perder uma certa compostura. vai tudo bem, obrigados. está-se bem, até ver.





deixa-me um momento ser feliz. atravessei um caminho cinzento e árido. terras sem sentido. cidades feias onde procurei uma imagem salvadora. filhos da puta, cabrões, gajas horríveis, todos quiseram travar-me o passo. deixa-me ao menos tu chegar à ponta, contra todas as expectativas, florir. vermelho, na ponta. pleno e calmo. sem ressentimentos. com a minha música e a minha poesia. pois toda a minha riqueza é esta viola, toda a minha ternura está concentrada na sua cintura, tão usada pelas mãos ainda ágeis.





A natureza das coisas: crescem em linhas. Mas as linhas são cansativas, conduzem à sem-razão absoluta e à morte. Então, de vez em quando, excretam bolas, tumescências, bolbos, filhos. Para fazer de conta que estão aqui para alguma coisa. Jubilam as coisas nas coisas redondas que produzem e reproduzem.




procuramos abrigo sob o amarelo, talvez porque não possamos suportar a rotina azul do firmamento.
ou tão só queremos fazer aqui por baixo algo que atraia a atenção dos pequenos bichos. para estendermos os braços às sanguessugas (como quando entregamos a veia à agulha) e podermos diluir-nos no ambiente líquido que habitam.




Nunca uma foto capta as cores verdadeiras, as que Deus estende, do outro universo que nos vedou, nas suas mãos cheias. deus é neste caso o nosso mais temível diabo, o que escapa sempre ao entendimento, e nem a nossa mão aberta segura as suas cores.



a casa, as áleas. alguém viveu/passou aqui. hoje só ouço os meus (?) passos. Isto é: olho para os meus (?) pés e vejo (ouço) que alguém parece estar a andar no meu preciso lugar. É o meu representante no espaço da locomoção.

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fotos e texto: voj dezembro porto (jardim botânico)
(ensaio de "arte" propriamente em formato blogue. isto não é poesia, nem fotografia, nem umas (fotografias, frases mais ou menos "poéticas") legendam as outras. tenta ser outra coisa (evidentemente a um nível muito artesanal - corresponde a apenas c. de 5 horas de trabalho)

dedico esta experiência a bob dylan, com cuja música nos ouvidos compus todos os textos, nomeadamente o seu notável último disco Tell Tale Signs, em particular as faixas Mississipi, Red River Shore e Born in Time (obra-prima de arte pop). Também de assinalar a última composição do seu CD anterior (Modern Times, obra não tão boa, quanto a mim), nomeadamente a última faixa, Ain't Talkin'.




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