Do Aforismo à Alumiação: variações sobre os epífanos “acendimentos” da poesia de Vítor Oliveira Jorge *
Fátima Vieira
Universidade do Porto
Fátima Vieira
Universidade do Porto
Preâmbulo
Há livros de poesia que são como antologias de poemas que o poeta (ou o editor) compila e organiza, seguindo uma ordem cronológica ou obedecendo a uma lógica temática. E há livros de poesia que têm como característica o facto de serem unos, de formarem uma unidade de tal forma indivisa que arrancar-lhes um poema e considerá-lo fora do contexto equivaleria a arrancar um membro a um ser humano e querer considerá-lo completo. Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações inscreve-se nesta última categoria. E contudo, o título do livro é enganador, já que parece sugerir a associação, apenas por uma questão de conveniência de política editorial, de dois livros distintos; mas nós sabemos que o poeta é um enganador ou, como já dizia Pessoa, um fingidor.
Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações é um livro da maturidade poética de Vítor Oliveira Jorge. Esta maturidade revela-se essencialmente a três níveis: em primeiro lugar, a nível da organização do próprio livro, no inteligente jogo de significados que entrelaça os poemas, os temas que abordam e os elementos paratextuais; em segundo lugar, a nível da relação que é estabelecida entre o poeta e o leitor, habilmente gerida por um discurso pseudo-pedagógico e uma vontade, por parte do poeta, de cravar o seu nome na pedra da História; por fim, a nível da consciência do próprio fazer poético, marcado, tal como todos os actos criativos, pela dolorosa sensação de querer inovar ou, como o poeta repetidamente refere, surpreender. São estes alguns dos aspectos que me proponho analisar neste texto, embora não necessariamente por esta ordem.
Um ou dois livros?
Comecemos com a questão que me parece mais premente, a de devermos encarar esta obra como sendo composta por apenas um ou por dois livros. O título, como disse já, é enganador, direccionando-nos para uma leitura de duas obras separadas. Mas o leitor não tardará decerto muito a descobrir mais falácias despertadas pelo título: não só não se trata de um “pequeno livro”, como também as “alumiações” não são apenas algumas. Na verdade, cada uma das partes é constituída por vinte e dois poemas, num equilíbrio cuidadosamente organizado e que contribui para a expansão de um mesmo leque de sentidos.
Cada uma das partes é precedida de considerações sobre os conceitos de aforismo e de alumiação, respectivamente; mas a obra propriamente dita (isto é, o conjunto das duas partes) é antecedida de umas breves linhas dirigidas ao leitor, que definem claramente a relação simultaneamente pedagógica e afectiva que com ele o poeta pretende estabelecer:
disponibiliza-te
amorosamente
para me escutares sem fim,
como os gatos se entregam
confiadamente
a uma carícia interminável
Neste poema preambular, Vítor Oliveira Jorge interpela o leitor e pede-lhe tempo (ele, que tanto se preocupa com a noção e a função do tempo), pede dedicação, pede atenção, pede que o leitor se lhe entregue como um gato – e esta última solicitação é, sem dúvida, o maior privilégio, a maior dádiva que o poeta poderia conceder ao leitor. Convidados pelo poeta, andamos, percorremos, deambulamos pelos poemas como os gatos vagueiam pela casa do poeta, porque sentimos que é também nosso o território que pisamos; e fazemo-lo confiadamente, pois temos a promessa de uma carícia que, como nos é dito, será interminável. É, na verdade, de coisas sem fim ou do princípio das coisas que este livro fala. E este convite dirigido ao leitor no sentido de que se passeie pelos poemas tal como os gatos se passeiam anarquicamente pela casa do poeta, é um primeiro factor que contribui para que encaremos os dois conjuntos de vinte e dois poemas como parte integrante de uma mesma obra, pois não são senão duas divisões, de idêntica dimensão, de uma mesma morada.
A primeira parte da obra – que corresponde, em termos estruturais, ao Pequeno Livro de Aforismos – é precedida por uma definição do conceito de aforismo retirada do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo:
Aforismo [Do gr. Aphorismos]. 1. Máxima ou sentença, que em
poucas palavras encerra princípio de grande alcance.
2. Preceito moral.
Esta definição é seguida por uma nota explicativa que constitui mais um fingimento do poeta, ou, se quisermos, mais um engano de que o leitor é vítima:
N.B. Os textos seguintes não são
aforismos nos sentidos considerados acima
De facto, como o próprio Manuel António Pina refere no Prólogo ao livro, apesar da advertência inicial do poeta, a maior parte dos poemas de Oliveira Jorge são aforísticos “em sentido estrito, mesmo se sempre mais ‘sages’ que sentenciosos”. Acredito que uma breve incursão à exploração do conceito em foco poderá ajudar-nos a compreender melhor a intenção aforística do poeta.
Como explica Maria da Natividade Pires no verbete que assina para o E-Dicionário de Termos Literários organizado por Carlos Ceia, a maior parte das entradas de dicionário associa o aforismo ao ditado, provérbio ou sentença, mas o aforismo pode ter uma dimensão mais culta, que o situa entre o discurso filosófico e o literário. É também característica do pensamento aforístico a sua capacidade para condensar, em expressão curta, grandes “potencialidades significativas”. Como diz Maria da Natividade Pires, ao mesmo tempo que apresenta um código de prescrições sociais para a interpretação da realidade, o discurso aforístico recorre “a palavras polissémicas, a sinónimos, antónimos, a perguntas retóricas”, afirmando-se como um “instrumento clássico do poder do discurso”; e é este um primeiro aspecto do pensamento aforístico que me parece importante reter.
O livro de Pensamentos de Blaise Pascal é sem dúvida o referente mais comum da literatura ocidental para a definição do pensamento aforístico culto. Mas o que a maior parte dos seus leitores parece desconhecer é o facto de a organização do livro não ter sido da responsabilidade do filósofo francês, já que o que Pascal deixou, à sua morte, em 1662, foi um conjunto de notas soltas que diferentes editores trataram de ordenar. Existem pois diferentes edições dos Pensamentos de Pascal, que denotam intenções editoriais diversas, proporcionando assim leituras dissemelhantes. Na verdade, como Louis Marin procurou explicar, os Pensamentos de Pascal, exactamente por serem aforísticos, constituem momentos de força cujo significado só se torna claro quando jogam uns com os outros ou, se quisermos, uns contra os outros.
A grande potencialidade polissémica do pensamento aforístico enunciada por Maria da Natividade Pires, associada à ideia de jogo de momentos de força que ora se reiteram, ora se complementam, ora se questionam e contradizem, ajuda-nos a compreender, na minha perspectiva, que qualquer livro de poemas de intenção aforística só poderá ser entendido quando consideramos os poemas no seu conjunto. Defendo que este raciocínio, quando aplicado ao Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações, de Vítor Oliveira Jorge, tem a vantagem prática de lhe descortinar novos e sempre renováveis sentidos; e torna evidente que as Algumas Alumiações que constituem a segunda parte da obra entram também neste jogo poético, reforçando – ou, se quisermos, alumiando – as verdades aforísticas da primeira parte. De certa forma, em ambas as partes, o poeta assume uma função idêntica em relação ao mundo que o rodeia e ao leitor, em particular. Na verdade, o papel de pedagogo que ele assume na primeira parte da obra é reforçado e filosoficamente legitimado na segunda parte, onde ele desempenha o papel de alumiador, função que, em sentido figurado, corresponde à daquele que instrui ou esclarece. Note-se que este é um papel que o poeta sente que conquistou pela experiência que só a idade consegue conceder. No poema 9 (p. 24) do Pequeno Livro de Aforismos, Oliveira Jorge reconceptualiza a noção de juventude, reclamando-se da capacidade de uma visão mais esclarecida que só a passagem dos anos pode proporcionar:
são precisos muito anos
para se atingir a juventude.
muitas derivas
para se saber exactamente
o que se quer fazer.
para perder a vergonha
do corpo, e da alma,
e expô-los unidos
em toda a sua
circunstância
de brilhante ruína.
é preciso correr mundo
para se adquirir a serenidade
das árvores
que não estão tão paradas
quanto se julga;
e observam.
leva muito tempo
a desaprender,
a des-aparecer
(…)
e quando às vezes um gato corre
para nos encostar o focinho
ao nariz,
é preciso terem passado
muitos anos,
para se sentir a gratidão dessa atitude.
Do aforismo à alumiação: considerações sobre a busca poética da
verdade
Um dos aspectos interessantes desta obra de Vítor Oliveira Jorge é a forma como o poeta, que assume como missão a descoberta e a oferta da verdade, nos brinda com os seus poemas como se eles fossem fragmentos, elementos de um puzzle cuja montagem é confiada ao leitor. O 4.º poema do Pequeno Livro de Aforismos (p. 18) remete-nos de forma clara para esta visão pós-moderna de um mundo fragmentado:
fragmentámos o mundo
para o compreender,
e perdemos as instruções
para o voltar a juntar.
mas talvez assim
seja ainda melhor:
entre estilhaços, ferindo os pés,
ao menos temos espaço
para experimentar.
O poema que se segue (p. 19) completa esta ideia da busca da verdade a que, juntos, poeta e leitor, se deverão entregar, introduzindo a questão da alumiação de que tratará a segunda parte da obra e estabelecendo um laço de nó firme entre ambas as partes:
o importante é não deixarmos
que a mágoa nos invada,
impedindo-nos hoje, aqui,
de produzir uma discreta
alumiação:
mexer no lume,
tocar o calor da chama
sobre as ruínas
da des-ilusão.
apenas para sentir algo
que deixe marcas;
e pensar que «valeu a pena»,
que «o tempo não foi mal empregue»;
Creio ser importante sublinhar a forma como o tema da alumiação, que é desta forma anunciado no Pequeno Livro de Aforismos e que irrompe em vários poemas da segunda parte da obra, é neste poema associado à ideia de lume. De facto, o acto de alumiar encontra-se etimologicamente determinado pela ideia da claridade que é proporcionada pela luz da chama. No contexto literário-filosófico em que nos introduzem os “aforismos sages” de Vítor Oliveira Jorge, a imagem da Alegoria da Caverna de Platão surge-nos, inevitável, como pano de fundo para a busca poética da verdade. Mas Oliveira Jorge vai mais longe do que pretendia Platão: de facto, se o filósofo grego aspirava a que nos apercebêssemos de que as imagens projectadas na parede da caverna em que vivemos não são senão imagens falsas, sombras de objectos reflectidos por acção de uma fogueira, incitando-nos assim a sair da caverna e a enfrentar a luz do sol que nos dará acesso à verdade das coisas, Oliveira Jorge estimula-nos a “mexer no lume, / tocar o calor da chama”. E no já evocado poema 9 do Pequeno Livro de Aforismos, onde defende que a juventude corresponde a um estado de maturidade apenas alcançável com o passar dos anos, o poeta afirma (p. 25):
é preciso termos gasto
muitas ruas, muitos percursos,
para nos sentarmos frente
à realidade
e, sem esperar pelo resultado
de quaisquer oráculos,
vê-la arder em pequenos fogos
intensos e contidos
em suas aras.
Ter acesso a uma imagem verdadeira da realidade poderá ser contudo uma experiência negativa, já que poderemos compreender sentidos da vida que mais valeria ignorarmo. Como diz no longo poema 5 (pp.57-60) de Algumas Alumiações, o poeta é por vezes assombrado pela “urgência de não ver mais / esforço para não enlouquecer”. Há, de facto, aspectos da vida de tal forma luminosos que nem mesmo o poeta os consegue olhar de frente. Esta ideia é figurativamente explorada no poema 7 (p. 65) de Algumas Alumiações, onde Oliveira Jorge, interpelando uma fotografia de Nicole Kidman”, confessa: “não é possível encarar de frente / a perfeição do teu rosto”.
E contudo, o poeta tem consciência de que todo este processo de busca da verdade, de apreensão do real, não será conseguido, por muito que mexa no lume, correndo o risco de se queimar. Afinal, continuamos na Caverna de Platão, e as imagens a que temos acesso serão sempre falsas ou, como mais contemporaneamente Roland Barthes e Stuart Hall afirmaram, representações da realidade. Esta ideia é claramente ilustrada pelo belíssimo poema 4 de Algumas Alumiações (p. 56):
quando vejo o quadro
de manuel amado
que representa o terreiro do paço,
em Lisboa, lembro-me do meu pai.
dos domingos de manhã
em que ele me levava
a ver o Tejo.
da invasão da luz,
da ausência de pessoas,
da estranha estátua
a olhar.
e sinto uma pena
indescritível,
por ter perdido há tanto tempo
a mão do meu pai.
por ter de revisitar
o verdadeiro terreiro do paço,
em lisboa
− eu e o sítio onde portugal,
este vazio, feito país,
se dilui no mundo pela água –
no quadro do manuel amado,
único local onde ele,
terreiro do paço,
alguma vez existiu.
Os últimos versos deste poema colocam-nos perante a única possibilidade de acedermos à realidade das coisas. Ironicamente, o Terreiro do Paço, aquele que se encontra fisicamente localizado em Lisboa, não tem existência real; como diz o poeta, apenas “no quadro de manuel amado, / (…) ele, / terreiro do paço / alguma vez existiu.
Raciocínio semelhante poderá ser encontrado no poema 11 do mesmo livro (pp. 73-75), dedicado a Manuel Amado, onde os pinheiros que o poeta vê da janela do seu quarto se agitam “como que a quererem provar / que são reais”, rivalizando com os pinheiros representados na tela, esses que não são nunca iguais, constituindo uma visão que “varia com as horas, os dias”.
A fuga da Caverna: poesia, música e arte como espaços heterotópicos
Os poemas sobre as telas de Manuel Amado introduzem-nos no mundo das Artes Visuais, e simbolicamente representam um dos poucos caminhos possíveis para a fuga ao marasmo que impera na Caverna. Os outros caminhos possíveis são a poesia e a música. De facto, as artes visuais, a poesia e a música são colocadas na obra de Oliveira Jorge num mesmo nível. Na Caverna onde nos encontramos emboscados, e onde, como diz o poeta no primeiro poema de Pequeno Livro de Aforismos (p. 15), “nada vem ao nosso encontro. / nada de muito novo nos acontece”, a inovação, a surpresa (sentimentos de que necessitamos para que nos valha realmente a pena viver), correspondem à criação artística, em qualquer dos planos mencionados. Mas o acto de criação é um acto doloroso, não só porque quem mexe no lume se queima, mas também porque os momentos de criação, de suscitação da verdadeira surpresa, são momentos de epifania, constituindo, na Caverna em que vivemos, espaços heterotópicos, onde, embora fugazmente, somos felizes. Todos os outros momentos são de uma monotonia agoniante, correspondendo à gestão “de pequenas alegrias”, como diz o poeta no poema 6 (p. 21) de Pequeno Livro de Aforismos.
Assim se justifica a invasão, nesta obra de Oliveira Jorge, de imagens visuais (verdades, afinal, arquitectadas na tela) e de música, muita música. No poema 16 de Pequeno Livro de Aforismos (p. 36), assistimos a um processo de revigoração de uma planta ao som da Sonata em Dó Maior de Handel:
(…) vede a planta
que já julgávamos seca
no seu vaso vermelho brilhante.
a qual, desde que posta no beiral
da câmara onde escrevo e ouço música,
diariamente tem estendido para cima
os seus ramos, e desenvolvido
a carne das suas folhas,
com tão discreto esplendor;
seguindo dia a dia
andamento a andamento
o gesto erguido, grená,
da frase do violino
sobre o fundo verde seco do cravo.
Da mesma forma, no último poema do Pequeno Livro de Aforismos (pp. 43-44), a música de Johan Adolf Hasse conduz o poeta ao desejado momento de epifania: “(…) essa música cresce de tal modo / por dentro de mim, que é como um betume / glorioso, tapando todas as frinchas / que a velhice dos últimos dias / abriu”. Mas é sem dúvida no poema 13 de Algumas Alumiações (pp. 82-84) que a ideia da Arte – neste caso da música, mas também do cinema e da arte da representação – é oferecida, de forma mais sistematizada, como o passaporte para a formação de uma identidade mais feliz, mais completa, que coloca o ser humano em perfeita sintonia com o mundo e com os outros homens. Neste poema dedicado ao arqueólogo alemão Hermanfrid Schubart, o poeta descreve o momento de epifania por que passa o seu colega, quando se passeia pelas florestas que rodeiam Rauschenberg, ao mesmo tempo que, na televisão,
(…) que, em casa, por esquecimento
ficou acesa, rostropovich, no interior
da basílica de vézelay à noite,
explica a magia da sexta suite
para violoncelo solo, de j.s. bach,
que interpretará no dia seguinte.
(…)
o passeio demora, e o programa
passa a apresentar o filme por excelência,
saraband, de ingmar bergman.
o arqueólogo chega a casa ainda a tempo
de ver o rosto de liv ullmann,
resplandecente, interpelando-o
com toda a força de um olhar
longamente trabalhado pela vida.
(…)
e quando, ao longe, alguém enceta
a suite número um; e o perfil
de j. s. bach, aquele a quem deus
concedeu o dom da inspiração suprema,
da música cuja perfeição asfixia,
atravessa as florestas agora obscuras
de rauschenberg.
dentro de casa, os relógios
estão mais ou menos sintonizados;
algo está perfeito, como os tocos
da lenha que espera para ser queimada.
(…)
este é o momento
em que o amigo se dirige
imperiosamente
para o telefone.
Enquanto ouvinte da música de Bach ou de Handel, apreciador da pintura de Manuel Amado, ou amante devoto dos filmes de Bergman, Oliveira Jorge consegue aceder a estes momentos de epifania. Mas ele pretende ir mais longe, procurando tornar-se ele próprio agente propiciador, criador desses momentos. Assim se justifica que o tema do fazer poético enquanto gerador de surpresa perpasse toda a obra. Esta ideia é tornada clara no poema 11 de Pequeno Livro de Aforismos:
fazer poesia é uma forma
de jardinagem:
manipular as plantas,
as coisas vivas.
umas fenecem,
outras surpreendem-nos
ao acordar,
pela carne
que discretamente
desenvolveram
durante a noite,
pelo tacto de veludo,
pela luz que parece
vir o seu centro.
(…)
fazer é polinizar,
provocar efeitos,
mas nunca se sabe
para que tempo,
nem a que distância.
O primeiro poema de Algumas Alumiações (p. 49) é ainda mais concreto na forma como aborda a “vocação inaugural” do texto, que começa por evocar “(…) apenas / gomos, polpas, pétalas / tumescentes flores”. Mas, como refere Oliveira Jorge, apenas pela experimentação poética se acede a algum estado (ainda que imperfeito de compreensão):
com estas ideias vivemos, deambulamos,
tocando nas coisas, fazendo frases,
pensando como são infindos
os caminhos e descaminhos do sentido.
Produzir um efeito de surpresa, inovar, criar, é, como foi já dito, um processo doloroso. Contudo, vale a pena, tentar, experimentar. Ainda que fugazmente, sentiremos o efeito da luz iluminando a escuridão da Caverna. Esta é uma ideia trabalhada de forma hábil no poema 12 de Algumas Alumiações (pp. 76-81):
a boca, sob os sedimentos,
pode ser apenas
a palavra que soube esperar
o tempo suficiente
para um dia sair da terra
e morder a mão
desprevenida.
(…)
às vezes não esperamos
o tempo suficiente;
como se, depois
de qualquer horror,
não viesse sempre a palavra;
o pombo
que pousa sobre as cruzes.
no fim do mais
desesperançado dia,
chegam sempre os cristais
brilhantes, não sei por quê.
Por vezes, refere o poeta, no poema 14 do mesmo livro (pp. 85-86), “(…) tudo é como num mar / sem água, e sem ondas a acontecer). Mas de repente, o inesperado acontece: a poesia, representada como uma jovem “(com cabelos longos, / ruivos e encaracolados, / como única veste), irrompe no texto e para ele transporta “toda a luz, / os tons da cor, / a sua sobrenaturalidade”. Para a leitura que faço de Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações, é particularmente significativo o facto de a identificação da poesia com uma musa ruiva surgir apenas perto do fim da obra. E é significativo porque nos conduz à ideia que atrás enunciei de que os dois livros funcionam como um todo, e de que o significado último da obra só é possível após a sua leitura integral. De facto, apenas depois de a jovem ruiva ter irrompido no texto em toda a sua nudez é que compreendemos quem é a mulher que o poeta beija insistentemente no poema 10 de Algumas Alumiações (pp. 70-72), cujas pontas dos mamilos parecem querer perfurar o branco do monitor.
Existem, na verdade, duas mulheres, na poesia de Oliveira Jorge: existe, em primeiro lugar, a mulher, Susana, com quem partilha a angústia da consciência da finitude da vida, e a quem pede: “quando estiveres para morrer / noutro ponto da casa, / por favor diz primeiro. / / combina comigo, / para eu ver se tenho tempo / de ir morrer lá também” – Algumas Alumiações, poema 9, pp. 68-69); é ela a companheira de toda a sua vida, num caminho percorrido há já trinta e cinco anos (“este dar de mãos iniciado / há muitas décadas, num movimento / jamais concluído - Algumas Alumiações, poema 15, pp. 87-88. E existe, por outro lado, a musa que o seduz, que transporta toda a luz por que ele anseia, capaz de provocar nele o tão desejado epífano “acendimento” (Algumas Alumiações, poema 14, p. 85). Num jogo interno bem organizado, os poemas da segunda parte do livro alumiam de facto os poemas aforísticos da primeira parte, permitindo-nos adivinhar que o ombro despido que dá o mote ao poema 19 do Pequeno Livro de Aforismos (p 40), “[iluminando] particularmente o dia já de si iluminado”, é suavemente afagado pelos caracóis ruivos da sua musa.
Cravar o nome na pedra da História
A vontade que o poeta tem de inovar, de surpreender, tem contudo também uma segunda intenção, a de cravar o seu nome na pedra da História. Essa vontade, anunciada no poema aforístico 10 (pp. 26-28), onde Oliveira Jorge encara a poesia como a forma de sobreviver “para outras supostas vidas, / outros imaginados mundos”, é alumiada pelo poema que encerra a obra (poema 22, pp. 43-44). Curiosamente, este poema, apresentado no âmbito de Algumas Alumiações, incorpora a lógica proverbial que caracteriza o Pequeno Livro de Aforismos, assegurando assim a ideia de jogo entre as duas partes da obra que acima referi. Nesse poema, Oliveira Jorge, defendendo-se da acusação de estar sempre centrado em si mesmo, declara:
Lembro-me então do conselho:
«não te entregues jamais
à sucção do pântano.
«nunca transformes
o que fazem os outros
em inevitabilidade.
«os legisladores, os que dizem
o que devíamos ser e fazer,
nunca produziram alegria,
«mas só a sistemática tirania
«de nos quererem fazer crer
que a sua rotina tinha de ser também
a nossa verdade.»
consolo-me assim
com estas frases apaziguadoras,
e dentro do meu cérebro
as ondas, musicais, sucedem-se
como que a repetir:
«enquanto tiveres força, poeta,
nunca desistas!»
E eu, que vou testemunhando os epífanos “acendimentos” de Vítor Oliveira Jorge, repito: “Enquanto tiveres força, poeta, nunca desistas!”
________________Há livros de poesia que são como antologias de poemas que o poeta (ou o editor) compila e organiza, seguindo uma ordem cronológica ou obedecendo a uma lógica temática. E há livros de poesia que têm como característica o facto de serem unos, de formarem uma unidade de tal forma indivisa que arrancar-lhes um poema e considerá-lo fora do contexto equivaleria a arrancar um membro a um ser humano e querer considerá-lo completo. Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações inscreve-se nesta última categoria. E contudo, o título do livro é enganador, já que parece sugerir a associação, apenas por uma questão de conveniência de política editorial, de dois livros distintos; mas nós sabemos que o poeta é um enganador ou, como já dizia Pessoa, um fingidor.
Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações é um livro da maturidade poética de Vítor Oliveira Jorge. Esta maturidade revela-se essencialmente a três níveis: em primeiro lugar, a nível da organização do próprio livro, no inteligente jogo de significados que entrelaça os poemas, os temas que abordam e os elementos paratextuais; em segundo lugar, a nível da relação que é estabelecida entre o poeta e o leitor, habilmente gerida por um discurso pseudo-pedagógico e uma vontade, por parte do poeta, de cravar o seu nome na pedra da História; por fim, a nível da consciência do próprio fazer poético, marcado, tal como todos os actos criativos, pela dolorosa sensação de querer inovar ou, como o poeta repetidamente refere, surpreender. São estes alguns dos aspectos que me proponho analisar neste texto, embora não necessariamente por esta ordem.
Um ou dois livros?
Comecemos com a questão que me parece mais premente, a de devermos encarar esta obra como sendo composta por apenas um ou por dois livros. O título, como disse já, é enganador, direccionando-nos para uma leitura de duas obras separadas. Mas o leitor não tardará decerto muito a descobrir mais falácias despertadas pelo título: não só não se trata de um “pequeno livro”, como também as “alumiações” não são apenas algumas. Na verdade, cada uma das partes é constituída por vinte e dois poemas, num equilíbrio cuidadosamente organizado e que contribui para a expansão de um mesmo leque de sentidos.
Cada uma das partes é precedida de considerações sobre os conceitos de aforismo e de alumiação, respectivamente; mas a obra propriamente dita (isto é, o conjunto das duas partes) é antecedida de umas breves linhas dirigidas ao leitor, que definem claramente a relação simultaneamente pedagógica e afectiva que com ele o poeta pretende estabelecer:
disponibiliza-te
amorosamente
para me escutares sem fim,
como os gatos se entregam
confiadamente
a uma carícia interminável
Neste poema preambular, Vítor Oliveira Jorge interpela o leitor e pede-lhe tempo (ele, que tanto se preocupa com a noção e a função do tempo), pede dedicação, pede atenção, pede que o leitor se lhe entregue como um gato – e esta última solicitação é, sem dúvida, o maior privilégio, a maior dádiva que o poeta poderia conceder ao leitor. Convidados pelo poeta, andamos, percorremos, deambulamos pelos poemas como os gatos vagueiam pela casa do poeta, porque sentimos que é também nosso o território que pisamos; e fazemo-lo confiadamente, pois temos a promessa de uma carícia que, como nos é dito, será interminável. É, na verdade, de coisas sem fim ou do princípio das coisas que este livro fala. E este convite dirigido ao leitor no sentido de que se passeie pelos poemas tal como os gatos se passeiam anarquicamente pela casa do poeta, é um primeiro factor que contribui para que encaremos os dois conjuntos de vinte e dois poemas como parte integrante de uma mesma obra, pois não são senão duas divisões, de idêntica dimensão, de uma mesma morada.
A primeira parte da obra – que corresponde, em termos estruturais, ao Pequeno Livro de Aforismos – é precedida por uma definição do conceito de aforismo retirada do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo:
Aforismo [Do gr. Aphorismos]. 1. Máxima ou sentença, que em
poucas palavras encerra princípio de grande alcance.
2. Preceito moral.
Esta definição é seguida por uma nota explicativa que constitui mais um fingimento do poeta, ou, se quisermos, mais um engano de que o leitor é vítima:
N.B. Os textos seguintes não são
aforismos nos sentidos considerados acima
De facto, como o próprio Manuel António Pina refere no Prólogo ao livro, apesar da advertência inicial do poeta, a maior parte dos poemas de Oliveira Jorge são aforísticos “em sentido estrito, mesmo se sempre mais ‘sages’ que sentenciosos”. Acredito que uma breve incursão à exploração do conceito em foco poderá ajudar-nos a compreender melhor a intenção aforística do poeta.
Como explica Maria da Natividade Pires no verbete que assina para o E-Dicionário de Termos Literários organizado por Carlos Ceia, a maior parte das entradas de dicionário associa o aforismo ao ditado, provérbio ou sentença, mas o aforismo pode ter uma dimensão mais culta, que o situa entre o discurso filosófico e o literário. É também característica do pensamento aforístico a sua capacidade para condensar, em expressão curta, grandes “potencialidades significativas”. Como diz Maria da Natividade Pires, ao mesmo tempo que apresenta um código de prescrições sociais para a interpretação da realidade, o discurso aforístico recorre “a palavras polissémicas, a sinónimos, antónimos, a perguntas retóricas”, afirmando-se como um “instrumento clássico do poder do discurso”; e é este um primeiro aspecto do pensamento aforístico que me parece importante reter.
O livro de Pensamentos de Blaise Pascal é sem dúvida o referente mais comum da literatura ocidental para a definição do pensamento aforístico culto. Mas o que a maior parte dos seus leitores parece desconhecer é o facto de a organização do livro não ter sido da responsabilidade do filósofo francês, já que o que Pascal deixou, à sua morte, em 1662, foi um conjunto de notas soltas que diferentes editores trataram de ordenar. Existem pois diferentes edições dos Pensamentos de Pascal, que denotam intenções editoriais diversas, proporcionando assim leituras dissemelhantes. Na verdade, como Louis Marin procurou explicar, os Pensamentos de Pascal, exactamente por serem aforísticos, constituem momentos de força cujo significado só se torna claro quando jogam uns com os outros ou, se quisermos, uns contra os outros.
A grande potencialidade polissémica do pensamento aforístico enunciada por Maria da Natividade Pires, associada à ideia de jogo de momentos de força que ora se reiteram, ora se complementam, ora se questionam e contradizem, ajuda-nos a compreender, na minha perspectiva, que qualquer livro de poemas de intenção aforística só poderá ser entendido quando consideramos os poemas no seu conjunto. Defendo que este raciocínio, quando aplicado ao Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações, de Vítor Oliveira Jorge, tem a vantagem prática de lhe descortinar novos e sempre renováveis sentidos; e torna evidente que as Algumas Alumiações que constituem a segunda parte da obra entram também neste jogo poético, reforçando – ou, se quisermos, alumiando – as verdades aforísticas da primeira parte. De certa forma, em ambas as partes, o poeta assume uma função idêntica em relação ao mundo que o rodeia e ao leitor, em particular. Na verdade, o papel de pedagogo que ele assume na primeira parte da obra é reforçado e filosoficamente legitimado na segunda parte, onde ele desempenha o papel de alumiador, função que, em sentido figurado, corresponde à daquele que instrui ou esclarece. Note-se que este é um papel que o poeta sente que conquistou pela experiência que só a idade consegue conceder. No poema 9 (p. 24) do Pequeno Livro de Aforismos, Oliveira Jorge reconceptualiza a noção de juventude, reclamando-se da capacidade de uma visão mais esclarecida que só a passagem dos anos pode proporcionar:
são precisos muito anos
para se atingir a juventude.
muitas derivas
para se saber exactamente
o que se quer fazer.
para perder a vergonha
do corpo, e da alma,
e expô-los unidos
em toda a sua
circunstância
de brilhante ruína.
é preciso correr mundo
para se adquirir a serenidade
das árvores
que não estão tão paradas
quanto se julga;
e observam.
leva muito tempo
a desaprender,
a des-aparecer
(…)
e quando às vezes um gato corre
para nos encostar o focinho
ao nariz,
é preciso terem passado
muitos anos,
para se sentir a gratidão dessa atitude.
Do aforismo à alumiação: considerações sobre a busca poética da
verdade
Um dos aspectos interessantes desta obra de Vítor Oliveira Jorge é a forma como o poeta, que assume como missão a descoberta e a oferta da verdade, nos brinda com os seus poemas como se eles fossem fragmentos, elementos de um puzzle cuja montagem é confiada ao leitor. O 4.º poema do Pequeno Livro de Aforismos (p. 18) remete-nos de forma clara para esta visão pós-moderna de um mundo fragmentado:
fragmentámos o mundo
para o compreender,
e perdemos as instruções
para o voltar a juntar.
mas talvez assim
seja ainda melhor:
entre estilhaços, ferindo os pés,
ao menos temos espaço
para experimentar.
O poema que se segue (p. 19) completa esta ideia da busca da verdade a que, juntos, poeta e leitor, se deverão entregar, introduzindo a questão da alumiação de que tratará a segunda parte da obra e estabelecendo um laço de nó firme entre ambas as partes:
o importante é não deixarmos
que a mágoa nos invada,
impedindo-nos hoje, aqui,
de produzir uma discreta
alumiação:
mexer no lume,
tocar o calor da chama
sobre as ruínas
da des-ilusão.
apenas para sentir algo
que deixe marcas;
e pensar que «valeu a pena»,
que «o tempo não foi mal empregue»;
Creio ser importante sublinhar a forma como o tema da alumiação, que é desta forma anunciado no Pequeno Livro de Aforismos e que irrompe em vários poemas da segunda parte da obra, é neste poema associado à ideia de lume. De facto, o acto de alumiar encontra-se etimologicamente determinado pela ideia da claridade que é proporcionada pela luz da chama. No contexto literário-filosófico em que nos introduzem os “aforismos sages” de Vítor Oliveira Jorge, a imagem da Alegoria da Caverna de Platão surge-nos, inevitável, como pano de fundo para a busca poética da verdade. Mas Oliveira Jorge vai mais longe do que pretendia Platão: de facto, se o filósofo grego aspirava a que nos apercebêssemos de que as imagens projectadas na parede da caverna em que vivemos não são senão imagens falsas, sombras de objectos reflectidos por acção de uma fogueira, incitando-nos assim a sair da caverna e a enfrentar a luz do sol que nos dará acesso à verdade das coisas, Oliveira Jorge estimula-nos a “mexer no lume, / tocar o calor da chama”. E no já evocado poema 9 do Pequeno Livro de Aforismos, onde defende que a juventude corresponde a um estado de maturidade apenas alcançável com o passar dos anos, o poeta afirma (p. 25):
é preciso termos gasto
muitas ruas, muitos percursos,
para nos sentarmos frente
à realidade
e, sem esperar pelo resultado
de quaisquer oráculos,
vê-la arder em pequenos fogos
intensos e contidos
em suas aras.
Ter acesso a uma imagem verdadeira da realidade poderá ser contudo uma experiência negativa, já que poderemos compreender sentidos da vida que mais valeria ignorarmo. Como diz no longo poema 5 (pp.57-60) de Algumas Alumiações, o poeta é por vezes assombrado pela “urgência de não ver mais / esforço para não enlouquecer”. Há, de facto, aspectos da vida de tal forma luminosos que nem mesmo o poeta os consegue olhar de frente. Esta ideia é figurativamente explorada no poema 7 (p. 65) de Algumas Alumiações, onde Oliveira Jorge, interpelando uma fotografia de Nicole Kidman”, confessa: “não é possível encarar de frente / a perfeição do teu rosto”.
E contudo, o poeta tem consciência de que todo este processo de busca da verdade, de apreensão do real, não será conseguido, por muito que mexa no lume, correndo o risco de se queimar. Afinal, continuamos na Caverna de Platão, e as imagens a que temos acesso serão sempre falsas ou, como mais contemporaneamente Roland Barthes e Stuart Hall afirmaram, representações da realidade. Esta ideia é claramente ilustrada pelo belíssimo poema 4 de Algumas Alumiações (p. 56):
quando vejo o quadro
de manuel amado
que representa o terreiro do paço,
em Lisboa, lembro-me do meu pai.
dos domingos de manhã
em que ele me levava
a ver o Tejo.
da invasão da luz,
da ausência de pessoas,
da estranha estátua
a olhar.
e sinto uma pena
indescritível,
por ter perdido há tanto tempo
a mão do meu pai.
por ter de revisitar
o verdadeiro terreiro do paço,
em lisboa
− eu e o sítio onde portugal,
este vazio, feito país,
se dilui no mundo pela água –
no quadro do manuel amado,
único local onde ele,
terreiro do paço,
alguma vez existiu.
Os últimos versos deste poema colocam-nos perante a única possibilidade de acedermos à realidade das coisas. Ironicamente, o Terreiro do Paço, aquele que se encontra fisicamente localizado em Lisboa, não tem existência real; como diz o poeta, apenas “no quadro de manuel amado, / (…) ele, / terreiro do paço / alguma vez existiu.
Raciocínio semelhante poderá ser encontrado no poema 11 do mesmo livro (pp. 73-75), dedicado a Manuel Amado, onde os pinheiros que o poeta vê da janela do seu quarto se agitam “como que a quererem provar / que são reais”, rivalizando com os pinheiros representados na tela, esses que não são nunca iguais, constituindo uma visão que “varia com as horas, os dias”.
A fuga da Caverna: poesia, música e arte como espaços heterotópicos
Os poemas sobre as telas de Manuel Amado introduzem-nos no mundo das Artes Visuais, e simbolicamente representam um dos poucos caminhos possíveis para a fuga ao marasmo que impera na Caverna. Os outros caminhos possíveis são a poesia e a música. De facto, as artes visuais, a poesia e a música são colocadas na obra de Oliveira Jorge num mesmo nível. Na Caverna onde nos encontramos emboscados, e onde, como diz o poeta no primeiro poema de Pequeno Livro de Aforismos (p. 15), “nada vem ao nosso encontro. / nada de muito novo nos acontece”, a inovação, a surpresa (sentimentos de que necessitamos para que nos valha realmente a pena viver), correspondem à criação artística, em qualquer dos planos mencionados. Mas o acto de criação é um acto doloroso, não só porque quem mexe no lume se queima, mas também porque os momentos de criação, de suscitação da verdadeira surpresa, são momentos de epifania, constituindo, na Caverna em que vivemos, espaços heterotópicos, onde, embora fugazmente, somos felizes. Todos os outros momentos são de uma monotonia agoniante, correspondendo à gestão “de pequenas alegrias”, como diz o poeta no poema 6 (p. 21) de Pequeno Livro de Aforismos.
Assim se justifica a invasão, nesta obra de Oliveira Jorge, de imagens visuais (verdades, afinal, arquitectadas na tela) e de música, muita música. No poema 16 de Pequeno Livro de Aforismos (p. 36), assistimos a um processo de revigoração de uma planta ao som da Sonata em Dó Maior de Handel:
(…) vede a planta
que já julgávamos seca
no seu vaso vermelho brilhante.
a qual, desde que posta no beiral
da câmara onde escrevo e ouço música,
diariamente tem estendido para cima
os seus ramos, e desenvolvido
a carne das suas folhas,
com tão discreto esplendor;
seguindo dia a dia
andamento a andamento
o gesto erguido, grená,
da frase do violino
sobre o fundo verde seco do cravo.
Da mesma forma, no último poema do Pequeno Livro de Aforismos (pp. 43-44), a música de Johan Adolf Hasse conduz o poeta ao desejado momento de epifania: “(…) essa música cresce de tal modo / por dentro de mim, que é como um betume / glorioso, tapando todas as frinchas / que a velhice dos últimos dias / abriu”. Mas é sem dúvida no poema 13 de Algumas Alumiações (pp. 82-84) que a ideia da Arte – neste caso da música, mas também do cinema e da arte da representação – é oferecida, de forma mais sistematizada, como o passaporte para a formação de uma identidade mais feliz, mais completa, que coloca o ser humano em perfeita sintonia com o mundo e com os outros homens. Neste poema dedicado ao arqueólogo alemão Hermanfrid Schubart, o poeta descreve o momento de epifania por que passa o seu colega, quando se passeia pelas florestas que rodeiam Rauschenberg, ao mesmo tempo que, na televisão,
(…) que, em casa, por esquecimento
ficou acesa, rostropovich, no interior
da basílica de vézelay à noite,
explica a magia da sexta suite
para violoncelo solo, de j.s. bach,
que interpretará no dia seguinte.
(…)
o passeio demora, e o programa
passa a apresentar o filme por excelência,
saraband, de ingmar bergman.
o arqueólogo chega a casa ainda a tempo
de ver o rosto de liv ullmann,
resplandecente, interpelando-o
com toda a força de um olhar
longamente trabalhado pela vida.
(…)
e quando, ao longe, alguém enceta
a suite número um; e o perfil
de j. s. bach, aquele a quem deus
concedeu o dom da inspiração suprema,
da música cuja perfeição asfixia,
atravessa as florestas agora obscuras
de rauschenberg.
dentro de casa, os relógios
estão mais ou menos sintonizados;
algo está perfeito, como os tocos
da lenha que espera para ser queimada.
(…)
este é o momento
em que o amigo se dirige
imperiosamente
para o telefone.
Enquanto ouvinte da música de Bach ou de Handel, apreciador da pintura de Manuel Amado, ou amante devoto dos filmes de Bergman, Oliveira Jorge consegue aceder a estes momentos de epifania. Mas ele pretende ir mais longe, procurando tornar-se ele próprio agente propiciador, criador desses momentos. Assim se justifica que o tema do fazer poético enquanto gerador de surpresa perpasse toda a obra. Esta ideia é tornada clara no poema 11 de Pequeno Livro de Aforismos:
fazer poesia é uma forma
de jardinagem:
manipular as plantas,
as coisas vivas.
umas fenecem,
outras surpreendem-nos
ao acordar,
pela carne
que discretamente
desenvolveram
durante a noite,
pelo tacto de veludo,
pela luz que parece
vir o seu centro.
(…)
fazer é polinizar,
provocar efeitos,
mas nunca se sabe
para que tempo,
nem a que distância.
O primeiro poema de Algumas Alumiações (p. 49) é ainda mais concreto na forma como aborda a “vocação inaugural” do texto, que começa por evocar “(…) apenas / gomos, polpas, pétalas / tumescentes flores”. Mas, como refere Oliveira Jorge, apenas pela experimentação poética se acede a algum estado (ainda que imperfeito de compreensão):
com estas ideias vivemos, deambulamos,
tocando nas coisas, fazendo frases,
pensando como são infindos
os caminhos e descaminhos do sentido.
Produzir um efeito de surpresa, inovar, criar, é, como foi já dito, um processo doloroso. Contudo, vale a pena, tentar, experimentar. Ainda que fugazmente, sentiremos o efeito da luz iluminando a escuridão da Caverna. Esta é uma ideia trabalhada de forma hábil no poema 12 de Algumas Alumiações (pp. 76-81):
a boca, sob os sedimentos,
pode ser apenas
a palavra que soube esperar
o tempo suficiente
para um dia sair da terra
e morder a mão
desprevenida.
(…)
às vezes não esperamos
o tempo suficiente;
como se, depois
de qualquer horror,
não viesse sempre a palavra;
o pombo
que pousa sobre as cruzes.
no fim do mais
desesperançado dia,
chegam sempre os cristais
brilhantes, não sei por quê.
Por vezes, refere o poeta, no poema 14 do mesmo livro (pp. 85-86), “(…) tudo é como num mar / sem água, e sem ondas a acontecer). Mas de repente, o inesperado acontece: a poesia, representada como uma jovem “(com cabelos longos, / ruivos e encaracolados, / como única veste), irrompe no texto e para ele transporta “toda a luz, / os tons da cor, / a sua sobrenaturalidade”. Para a leitura que faço de Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações, é particularmente significativo o facto de a identificação da poesia com uma musa ruiva surgir apenas perto do fim da obra. E é significativo porque nos conduz à ideia que atrás enunciei de que os dois livros funcionam como um todo, e de que o significado último da obra só é possível após a sua leitura integral. De facto, apenas depois de a jovem ruiva ter irrompido no texto em toda a sua nudez é que compreendemos quem é a mulher que o poeta beija insistentemente no poema 10 de Algumas Alumiações (pp. 70-72), cujas pontas dos mamilos parecem querer perfurar o branco do monitor.
Existem, na verdade, duas mulheres, na poesia de Oliveira Jorge: existe, em primeiro lugar, a mulher, Susana, com quem partilha a angústia da consciência da finitude da vida, e a quem pede: “quando estiveres para morrer / noutro ponto da casa, / por favor diz primeiro. / / combina comigo, / para eu ver se tenho tempo / de ir morrer lá também” – Algumas Alumiações, poema 9, pp. 68-69); é ela a companheira de toda a sua vida, num caminho percorrido há já trinta e cinco anos (“este dar de mãos iniciado / há muitas décadas, num movimento / jamais concluído - Algumas Alumiações, poema 15, pp. 87-88. E existe, por outro lado, a musa que o seduz, que transporta toda a luz por que ele anseia, capaz de provocar nele o tão desejado epífano “acendimento” (Algumas Alumiações, poema 14, p. 85). Num jogo interno bem organizado, os poemas da segunda parte do livro alumiam de facto os poemas aforísticos da primeira parte, permitindo-nos adivinhar que o ombro despido que dá o mote ao poema 19 do Pequeno Livro de Aforismos (p 40), “[iluminando] particularmente o dia já de si iluminado”, é suavemente afagado pelos caracóis ruivos da sua musa.
Cravar o nome na pedra da História
A vontade que o poeta tem de inovar, de surpreender, tem contudo também uma segunda intenção, a de cravar o seu nome na pedra da História. Essa vontade, anunciada no poema aforístico 10 (pp. 26-28), onde Oliveira Jorge encara a poesia como a forma de sobreviver “para outras supostas vidas, / outros imaginados mundos”, é alumiada pelo poema que encerra a obra (poema 22, pp. 43-44). Curiosamente, este poema, apresentado no âmbito de Algumas Alumiações, incorpora a lógica proverbial que caracteriza o Pequeno Livro de Aforismos, assegurando assim a ideia de jogo entre as duas partes da obra que acima referi. Nesse poema, Oliveira Jorge, defendendo-se da acusação de estar sempre centrado em si mesmo, declara:
Lembro-me então do conselho:
«não te entregues jamais
à sucção do pântano.
«nunca transformes
o que fazem os outros
em inevitabilidade.
«os legisladores, os que dizem
o que devíamos ser e fazer,
nunca produziram alegria,
«mas só a sistemática tirania
«de nos quererem fazer crer
que a sua rotina tinha de ser também
a nossa verdade.»
consolo-me assim
com estas frases apaziguadoras,
e dentro do meu cérebro
as ondas, musicais, sucedem-se
como que a repetir:
«enquanto tiveres força, poeta,
nunca desistas!»
E eu, que vou testemunhando os epífanos “acendimentos” de Vítor Oliveira Jorge, repito: “Enquanto tiveres força, poeta, nunca desistas!”
Texto da apresentação do livro, realizada na livraria Books & Living/Leitura, no dia 25 de Novembro de 2008.
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