terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pós-Processualismo em Arqueologia: um trabalho de Dânia Rodrigues (Licenciada pela FLUL)

[Publicado com anuência da autora, evidentemente]

UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA


Seminário sobre “Pós-Processualismo: a Morte da Arqueologia?”,

apresentado na cadeira de Seminário II, regida pelo Prof. Dr. Victor Gonçalves


Dânia Rodrigues,
nº 32308
Lisboa, 23 de Setembro de 2008



Dedicado à memória do meu pai,
que desde cedo me soltou as asas da imaginação,
e à minha mãe, que me alertou para o perigo de estas se
derreterem se me aproximasse demasiado do Sol.


Gostaria de agradecer à Prof. Dra. Mariana Diniz,
pela sua orientação, e a Maria da Conceição Rodrigues,
Evelina Rodrigues, Hugo Figueira,
Aida Rosa, Joana Barreto
Aquilino Rodrigues, Ricardo Gonçalves,
Tania Gonzalez e Matteo Dispenza,
sem a ajuda dos quais este seminário não teria sido possível.
A todos, o meu mais profundo obrigada.


____________________

Índice


Introdução
Contexto histórico
Propostas Pós-processualistas para a análise do passado
• Estruturalismo e Pós-Estruturalismo
• Arqueologia como texto
• Neo-marxismo
• Historicismo
• Ciência
• Prática
A arqueologia na sociedade contemporânea:
As Políticas do Passado
• Arqueologia e Identidades
a) Arqueologia e o “Outro”
b) Arqueologia e Nacionalismos
c) Arqueologia e Globalização
• Arqueologia e Responsabilidades Éticas
a) Arqueologia e Educação
b) Arqueologia e património
Conclusão
Bibliografia


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Introdução


Nos últimos anos, o campo teórico na arqueologia tem sido palco de ferozes confrontações. O edifício sólido da Nova Arqueologia começou a sofrer severos ataques a partir da década de 1980. Ainda que, numa fase inicial, as suas críticas fossem desacreditadas e desvalorizadas, gradualmente começou a afirmar-se a validade de muitos dos argumentos utilizados por estes autores. O pensamento pós-processual insidiou-se de tal forma na arqueologia que modificou muitos dos paradigmas até dos investigadores mais positivistas, e inspirou a criação de uma reformulação no seio do processualismo, a Arqueologia Cognitivo-Processual em meados da década de 1990.
Apesar disso, os seus defensores continuam a ser olhados com uma enorme desconfiança por parte da comunidade arqueológica convencional. Enquanto muitos investigadores se conseguiram adaptar à nova realidade, incorporando novas propostas nos seus esquemas de pensamento e tentando colaborar em projectos plurais e diversificados, a maioria optou por se distanciar, desenvolvendo a pior opinião destes autores e não procurando sequer reflectir como as suas propostas influenciaram os seus próprios modelos explicativos. Assim, desenvolveu-se sem qualquer explicação um enorme antagonismo entre os proponentes de cada corrente. Actualmente, assiste-se a um esforço de mitigar a hostilidade entre os dois campos, e tentar reconciliá-los, aproveitando as melhores propostas de ambos (Patterson 1990, Vanpool e Vanpool 1999, Trigger 2004, Alarcão 1996).
O objectivo do meu seminário é precisamente demonstrar que o pós-processualismo não deve ser encarado como uma ameaça, ou mesmo como o fim da arqueologia. O seu advento veio instaurar um debate crítico e extremamente necessário no campo teórico arqueológico. Levantou questões de extrema validade que levou os mais diversos arqueólogos a reformularem e melhorarem as suas teses, sem necessidade de se converterem a um diferente quadro epistemológico. Longe de determinar a morte da arqueologia, veio revitalizá-la, quando esta corria o risco de se fechar em si mesma e se alhear do mundo e da sociedade em que se insere. A inserção da arqueologia na sua contemporaneidade é fundamental, não meramente do ponto de vista económico – convencer governos e patrocinadores privados da necessidade da importância da arqueologia, de forma a que estes a financiem – como também do ponto de vista moral: a arqueologia afecta a forma como milhões de pessoas olham o passado. Esta é uma tarefa de enorme responsabilidade, que não pode ser encarada de ânimo leve. O arqueólogo deve ser consciente das implicações do seu trabalho na sociedade em que se insere.
Para além de uma introdução, conclusão e uma parte dedicada ao contexto histórico do desenvolvimento das correntes pós-modernas e pós-processuais (factor que considero primordial na análise de qualquer tipo de fenómeno), optei por dividir o meu seminário em duas grandes partes, seguindo a proposta de Dyson (1993). De facto, são os dois grandes ramos em torno dos quais se desenvolve o pós-processualismo: a procura de novos modelos de explicação para facilitar o nosso conhecimento do passado através do uso da cultura material, e a forma como as arqueologias operam na sociedade contemporânea. Defendo que este último tópico foi sem qualquer dúvida o ponto onde a dissertação pós-processual obteve maior sucesso: actualmente, praticamente nenhum arqueólogo se atreve a refutar a influência que o meio político e social desempenha na produção do conhecimento arqueológico, e a forma como este é uma poderosa ferramenta de acção na sociedade contemporânea.
Pretendo assim esclarecer os tópicos em torno dos quais se desenvolve o pensamento pós-processual, e demonstrar a forma como estes influíram no tipo de arqueologia que se pratica actualmente. O pós-processualismo está longe de significar o fim da arqueologia. Não deve ser considerada como uma ameaça, ou sequer uma força opositora quer à arqueologia quer ao processualismo. A combinação de ambas pode ser utilizada na produção de um conhecimento mais totalizante. Parafraseando as palavras de Todd e Christine VanPool, “an intellectual synergy between processual and postprocessual approaches is possible, a synergy in which the two programs working together can create a rich and robust understanding of the archaeological record by prompting archaeologists to ask a broader range of questions and to employ a greater number of analytical strategies”.


Contexto Histórico


Para compreender a génese do pensamento pós-processualista torna-se necessário inscrevê-lo no movimento mais abrangente que revolucionou o campo artístico e das ciências sociais, o pós-modernismo. Considerei premente a inserção destes dois quadros conceptuais no respectivo contexto histórico, sem a qual não seria possível uma avaliação satisfatória das causas e do impacto que ambos causaram nos meios em que se geraram.
Desde meados do século XIX que se afirmava no seio das elites uma crença optimista no progresso, favorecida pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Assistia-se à exaltação do homem racional, dominador da máquina, desmistificador da natureza e mestre do seu destino. Esta moral tão solidamente fundada sofre os primeiros abalos com o despontar do século XX, com o desenvolvimento da teoria da relatividade por Einstein e da psicanálise por Freud. Porém, será a I Guerra Mundial que mais profundamente irá revolucionar esta concepção optimista do Homem e da sociedade. A generalidade dos europeus compreende que a industrialização não serve apenas para o benefício da humanidade, mas que oferece potencialidades sem precedentes para a sua destruição. Instala-se um clima de angústia onde grassam a instabilidade económica, a crise de valores e a relativização de modelos. Foi neste contexto que se desenvolveu a corrente multifacetada apelidada de modernismo cultural. É caracterizada pela rejeição das convenções realistas e naturalistas, e pela exploração da forma e do estilo nas artes plásticas e na literatura a níveis nunca antes imaginados. Por se desenvolver num contexto tão complexo, as diversas correntes modernistas não apresentam qualquer unidade estrutural; porém, e sobretudo antes da I Guerra Mundial, mantêm uma crença generalizada no progresso e racionalidade.
A reconstrução da Europa após a II Guerra Mundial assistiu a uma forte componente capitalista para ajudar a superar a crise, e a esconjurar o perigo comunista. Afirmam-se os valores utilitaristas, a eficácia, a técnica, o resultado, o interesse, a competitividade, a racionalidade científica, provocando um mal-estar social e o desencanto do mundo. “Nesta sociedade, o indivíduo arrisca perder a sua identidade na medida em que aumentam as relações impessoais e mecânicas e o homem é reduzido a uma peça no funcionamento do sistema complexo, sendo valorizado não como pessoa ou personalidade, mas como função no processo produtivo. Desagregam-se as estruturas primárias de protecção como a família e o grupo, e o indivíduo é reduzido ao seu universo como cada um inventa e constrói. O homem goza de uma gama mais ampla de escolha pessoais, mas perde a segurança e a garantia de um futuro” (Jorge 1992).
O pós-modernismo irá então definir-se como a “era do vazio” (Marto 1992), o desencanto em relação às crenças modernistas no progresso e na racionalidade científica. Apesar do uso do termo remontar a tão cedo como 1934, apenas começa a ser generalizado após a célebre obra de Lyotard intitulada A Condição Pós-Moderna (Lyotard 1989). Não existe um corpo estruturado – de facto, o termo pós-modernismo significa muitas coisas diferentes (Thompson 2004). Pode ser caracterizado, genericamente, pelas suas as pretensões de liberdade e individualidade, a perda de confiança na ciência, a incredulidade em relação às metanarrativas, a consciência da instabilidade das estruturas. Nela se podem incluir uma variedade de correntes pós-estruturalistas, neo-marxistas, feministas, etc.



Propostas Pós-processualistas para a análise do passado



Critique, in connecting study and research
to its contexts is a constituent of any discipline
that thinks reflexively about itself
Michael Shanks, Postprocessual Archaeology and After, 2006.


O pós-processualismo irá buscar muita da sua inspiração aos movimentos acima referidos. Entre as correntes que mais o influenciaram, algumas das quais serão tratadas com maior pormenor no seguimento do texto, encontram-se o neo-marxismo de Althusser e Lulas, a visão pós-positivista da ciência de Feyerabend, o estruturalismo de Lévi-Strauss, a fenomenologia de Heidegger e Cassirer, a abordagem hermenêutica de Dilthey e Ricoeur, a Teoria Crítica da escola de Frankfurt, o pós-estruturalismo de Foulcault e Derrida, a teoria social de Giddens e Bourdieu, as abordagens feministas. (Bahn e Renfrew 2004). Ainda que o descontentamento com a Nova Arqueologia grassasse já no meio arqueológico desde meados da década de 1970, a primeira machadada no sólido edifício processual será desferido pela obra provocativa de Ian Hodder em 1982, Symbols in Action. Desde então, não parou de crescer o número de investigadores a criticar a visão convencional da arqueologia.
O pós-processualismo vai manter alguns pontos em comum com a Nova Arqueologia. Um destes é a visão crítica do status quo anterior. Ambas as correntes vão reclamar David Clarke como uma figura paternal, por este enfatizar a necessidade de “critical self consciousness in the discipline” (Clarke 1973). Esta componente, fundamental nos momentos iniciais da Nova Arqueologia, foi-se diluindo ao longo dos tempos. Os dois possuem ainda um entusiasmo pela reflexão nos procedimentos e conceitos da disciplina, e um optimismo intelectual: acreditam que a arqueologia desempenha um papel mais importante do que a mera documentação de vestígios de sociedades passadas – é possível construir algum tipo de conhecimento sobre estas. No entanto, as duas correntes discordam em alguns pontos essenciais: o pós-processualismo refuta a existência de leis universais, rejeita o modelo positivista e a concepção de conhecimento imparcial, crítica a Teoria dos Sistemas e os tipos evolucionários culturais, e exige uma maior aproximação às ciências sociais e humanísticas. Vai influenciar em larga medida o movimento cognitivo-processual, que surge na década de 1990, e que vai adoptar as propostas pós-processualistas da importância da análise simbólica, ideologia, conflito interno, agência humana, e insustentabilidade do positivismo extremo.
Quando se analisa o pós-processualismo, é fundamental tomar em conta que este é um fenómeno muito plural, e que qualquer generalização se torna perigosa. No entanto, pode fazer-se a distinção entre dois grupos: os hiper relativistas e os moderados. Os hiper relativistas aproximam-se mais do pós-modernismo extremado ao rejeitarem toda a verdade e conhecimento, e questionarem a habilidade humana de percepcionar qualquer realidade física ou mental. Acreditam que não é possível apreender a realidade, e muito menos transmiti-la a outros. Defendem que não é possível a construção de qualquer tipo de conhecimento, por este se encontrar sempre sujeito a preconceitos políticos, económicos e sociais – todas as visões têm a mesma validade (Berglund 2000). Os moderados acreditam que o registo arqueológico existe e pode ser estudado. Não rejeitam o conhecimento, mas questionam todas as premissas que foram aceites sem críticas. Reconhecem a influência de factores políticos e de outra ordem, e englobam-nos na construção do seu discurso, mas utilizam um critério de plausibilidade para determinar até que ponto as visões são legítimas. Neste grupo encontram-se incluídas tanto a arqueologia contextual de Ian Hodder como as arqueologias interpretativas e críticas de Shanks, Tilley e Leone, entre outros. A principal característica que distingue a primeira corrente de todas as outras é a crença numa reconstrução do passado; para as restantes, tal não é possível porque existem múltiplos passados, e ainda que seja possível rejeitar a grande maioria através da crítica e da hermenêutica, não é possível impor uma verdade sobre outras que sejam igualmente legítimas. O facto de reconhecer um passado pluralista faz com que sejam habitualmente rotulados de extremistas; neste seminário não os irei assim considerar, por acreditar que o seu trabalho prático e as suas dissertações teóricas se encontram num patamar completamente distinto do hiper relativismo.
Como referido na introdução, irei primeiramente debruçar-me alguns factores que influenciaram novos modelos de construção do passado. Pretendo através deles demonstrar como não faz sentido contrapor ao processualismo um ameaçador e apocalíptico hiper relativismo, ao enfatizar a riqueza e multiplicidade destas posições e como estas influenciaram a prática da arqueologia.


Estruturalismo e Pós-Estruturalismo


O estruturalismo foi uma das primeiras correntes a desafiar o pensamento pós-processualista. Esta corrente emergiu na década de 1960 no meio cultural francês, e reconhece a sua origem no linguista e semiótico suíço Ferdinand de Saussure. A teoria que este desenvolveu consistia na explicação da linguagem como um sistema de sinais onde o significado das palavras (significantes) dependia tanto da sua relação com outras palavras como dos conceitos (significados) com que se relacionam. Inspirados na sua obra, os estruturalistas advogavam que uma grande parte, ou mesmo toda a actividade humana, se encontrava codificada como a linguagem, sujeita a regras de gramática e sintaxe. O seu objectivo geral consistia em identificar os padrões expressos em várias áreas da cultura humana, através da importação destes conceitos da linguagem, e relacioná-las com estruturas profundas e universais do cérebro humano. No seu entusiasmo inicial, proclamavam que finalmente tinha sido desenvolvida uma abordagem definitivamente científica às ciências humanas (Thompson 2004). Entre os nomes que mais se destacaram, encontram-se o de Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Jacques Lacan, Nicos Poulantzas, e Paul Benaserraf, nos campos da mitologia, marxismo, psicologia, teoria política e filosofia da matemática, respectivamente. No entanto, o estruturalismo não foi capaz de apresentar qualquer explicação teórica para a origem da mudança. Assim, a corrente foi gradualmente sendo abandonada ao longo da década seguinte, para ser substituído por um sucessor muito mais duradouro, o pós-estruturalismo.
Esta nova corrente veio representar tanto uma continuidade como uma ruptura em relação à sua antecessora. O estudo da linguística continuou a desempenhar a maior centralidade; porém, o pós-estruturalismo veio repudiar quaisquer pretensões de cientificidade. A proclamação de que a Ciência é capaz de produzir conhecimento não-ambíguo é encarada como extremamente suspeita; sobretudo após o desenvolvimento da Mecânica Quântica e do princípio de incerteza de Heisenberg, que compreende a imprevisibilidade das partículas sub-atómicas, como os quarks e os electrões. Entre os nomes mais sonantes desta teoria encontram-se o de Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foulcault e Julia Kristeva. O pensamento pós-estruturalista encontra-se ainda hoje em voga nas mais diversas ciências sociais. De seguida, irei analisar a influência desta corrente e a da sua predecessora na teoria arqueológica.

O maior impacto provocado por estas duas correntes a nível do pensamento arqueológico, ultrapassando de longe o âmbito do pós-processualismo, foi sem dúvida a ênfase na análise simbólica. Em 1954, Hawkes expôs a sua célebre escada de inferência: sem registos escritos, o arqueólogo apenas se pode limitar ao estudo da economia de uma dada sociedade, e numa menor escala dos seus sistemas políticos e sociais (Robb 1998). A influência do estruturalismo na arqueologia começou a tornar cada vez mais incomportável esta noção, uma vez que se tornou claro que cada esfera de acção humana comporta uma componente simbólica, e que esta se encontra representada nos artefactos que os arqueólogos estudam. Começa lentamente a delinear-se a ideia que qualquer consideração séria de uma sociedade antiga tem que lidar com símbolos (Hodder 1982; Robb 1998). Uma vez que o simbolismo humano é tão diverso, estendendo-se desde áreas como conhecimento tecnológico, ideologia política, estruturas cognitivas e ícones rituais a identidades como género, prestígio e etnicidade, torna-se incomportável a ideia de ignorar o papel da simbólica humana na construção do discurso arqueológico.
John Robb (1998) distingue no seu artigo The Archaeology of Symbols três tradições distintas no estudo simbólico: a processualista, a estruturalista e a pós-moderna. A maior distinção entre a primeira corrente e as outras duas é que esta considera que os símbolos representam realidades sociais, enquanto para as outras os símbolos constituem realidades sociais. Os processualistas encaram os símbolos como Totems: a sua função é transmissão de informação. Entre os estudos mais significativos desta escola de pensamento encontram-se os de Binford (1962) e Wobst (1977). Já para os estruturalistas, os símbolos são concebidos como estruturas mentais – são inerentes ao ser humano e à sua sociedade, e este não pode optar por agir sem ser através deles. Concebem uma dicotomia entre significante material e significado ideal. Os estudos de Leroi-Gourhan (1984) sobre a arte paleolítica e de Ian Hodder (1990) sobre as estruturas culturais da Europa Neolítica são exemplos de investigações produzidas através deste quadro conceptual (este último conseguiu demonstrar através dos seus estudos da cerâmica e dos registos funerários como a cultura material não traduz necessariamente as estruturas sociais). O pós-modernismo irá encarar os símbolos como fragmentos arbitrários incorporados na experiência fenomenológica. Rejeitam a dualidade estruturalista, por acreditarem que o significado não reside no artefacto ou na pessoa, mas no momento de interacção entre ambos. Tais reflexões encontram-se patentes, por exemplo, nos estudos de Tilley (1993) e Barrett (1994).

A influência do pós-estruturalismo na arqueologia circunscreveu-se a uma esfera muito menos abrangente. Apesar de nas mais diversas ciências sociais ser predominante a concepção que não existe conhecimento livre de preconceitos culturais, sociais ou religiosos, e esta crença se ter já estendido em certa medida a algumas ciências exactas, a maioria da comunidade arqueológica continua filiada numa lógica de conhecimento positivista. Assim, o pós-estruturalismo afectou maioritariamente os pensadores pós-processuais. Perante um quadro de pluralismo e multivocalidade aberto por uma concepção relativista do conhecimento, a questão mais premente que se coloca é a seguinte: se aceitarmos que o passado é parcialmente construído no presente, e que temos que incorporar outras vozes e significados históricos (como mulheres, minorias étnicas, etc), onde se coloca uma linha de separação? (Renfrew 1989). Devem também ser aceites as vozes de criacionistas, ou de saqueadores? “What is the boundary between an open multivocality where any interpretation is as good as another and legitimate dialogues between “scientific” and American Indian, black, feminist, etc. interests?” (Hodder 1991, p.9). Este foi um aspecto que preocupou os mais variados autores, entre os quais Nietzsche, Foulcault, Kristeva, Barthes e Derrida. No campo pós-processualista, definiram-se dois tipos de atitude muito distintos no confronto deste problema: um tipo de posição hiper relativista, e outra mais moderada, como referido antes. Os hiper relativistas rejeitam toda a verdade e conhecimento, e questionam a habilidade humana de percepcionar qualquer realidade física ou pessoal (Berglund 2000) – assim, para estes, todas as visões têm a mesma validade. Os moderados seguem a linha de Collingwood – acreditam que, apesar de os dados terem múltiplas interpretações, estes são empíricos e reais (Leone 1986). “The real world constrains what we can say about it” (Hodder 1986 p.16). Assim, procuram uma solução para as questões levantadas pelo pluralismo – as mais exploradas consistem na utilização da hermenêutica (Shanks e Tilley 1987b, Hodder 1991) e na teoria crítica (Shanks e Tilley 1987b, Leone 1986). Estes dois tópicos serão explorados nos seguintes subtemas.


Arqueologia como texto


Anteriormente, referi como estruturalistas e pós-processualistas acreditavam poder aplicar as regras da linguística na compreensão de virtualmente todas as áreas da acção humana. Este princípio foi, a partir da década de 80, também adoptado por muitos pós-processualistas no campo da arqueologia. Segundo Tilley (1991), a leitura da cultura material como texto é possível porque partilham algumas características essenciais: o funcionamento como totalidades estruturadas, e o facto de ultrapassarem as intenções do seu autor e o contexto social da sua produção.
A primeira característica é directamente inspirada nos ensinamentos de Saussure no seu Curso de Linguística Geral, e requer a utilização dos conceitos de langue e parole. Enquanto o primeiro se refere a todo o conjunto de regras que nos permite comunicar (semânticas, sintácticas, gramaticais), o segundo significa os actos específicos de linguagem e comunicação. Assim, a parole corresponderia aos materiais que se encontram no campo em cada caso particular, e a langue aplicar-se-ia a todas as leis simbólicas – tal como os linguistas procuravam as regras por detrás da língua, também a arqueologia devia procurar as leis por detrás da matéria. Esta reflexão deu origem a duas posturas distintas: “A existência de um significado encerrado num contexto que pode ser redefinido e percebido, e assim o sentido das partes que a ele apelam, distingue a postura soft de Ian Hodder, de outras radicais posições que assumem a perpétua mutação da arbitrária relação significado-significante assumindo um passado nunca fixo e alcançável, mas em perfeito devir” (Diniz 2003).
Esta última concepção encontra-se estreitamente ligada com o conceito da “morte do autor”, avançada pelo semiotista Roland Barthes na década de 1960. De facto, as percepções mais radicais acreditam que a cultura material, tal como o texto, possuem uma vida própria – não é fundamental a intenção do autor, mas a interpretação pessoal de cada leitor. A forma como o passado é lido vai sempre depender dos paradigmas intelectuais do arqueólogo, e dos seus preconceitos e interesses pessoais, bem como do seu meio cultural e sócio-económico (Dyson 1993). O desenvolvimento do desconstrucionismo por Jacques Derrida vem enfatizar esta posição, ao demonstrar os significados ocultos e mensagens subliminares veiculadas pelos textos. O que autor pretendia quando escreveu o texto deixa de ser tão significante, quando é demonstrado que no próprio momento da sua produção este comporta já tantos elementos ambivalentes e complexos.
A partir do momento em que o registo arqueológico passa a ser concebido como um texto, torna-se necessário compreender as regras para a sua interpretação. O impacto da ciência hermenêutica nos ramos pós-processuais da arqueologia foi tão grande que algumas escolas se auto-apelidaram de “interpretativas” (Hodder 1991, Tilley 1993). Esta ciência remonta ao século XIX, altura em que Scheiermeier e Dilthey avançaram a noção de círculo hermenêutico – a relação dialéctica entre a parte e o todo. Alguns autores aplicam este conceito ao contexto arqueológico:

“Interpretation thus seeks to understand the particular in the light of the whole and the whole in the light of the particular to make sense of the interconnections between diverse areas of material culture patterning - burial, artifact use and disposal, ceramic designs, faunal remains, architectural directional placement, etc - requires some prior or anticipatory understanding of the social totality in which the material culture acted as symbol, code, or structure” (Shanks e Tilley 1987a).

Existe um consenso generalizado que, numa primeira abordagem, o autor terá sempre que necessariamente utilizar as suas assumpções pessoais, moldadas pelo seu meio histórico, sócio-económico e político. As opiniões dividem-se quanto às potencialidades da ciência hermenêutica. Heidegger, servindo de inspiração a várias correntes pós-processuais, acredita que não se podem aplicar critérios de verificabilidade ou falsidade no círculo hermenêutico, uma vez estes seriam sempre influenciado pela visão pessoal do investigador. As correcções tomam lugar através de um processo dialéctico dentro do próprio círculo (Shanks e Tilley 1987a). Betti propõe um método para salvaguardar a objectividade, que contempla a autonomia do objecto, a noção de coerência ou princípio de totalidade, e o controlo de preconceitos por parte do intérprete (Hodder 1991). Enquanto Habermas considera que este não criticou suficientemente a tradição sobre a qual os preconceitos sobre os dados são formados, Gadamer interpreta a hermenêutica como um processo dialéctico de perguntas e respostas – os termos pessoais utilizados inicialmente modificam-se no confronto com os dados. Esta será a posição adoptada por Ian Hodder e a arqueologia contextual: o passado pode ser compreendido nos seus próprios termos, desde que seja compreendido o contexto do intérprete entre a dialéctica passado/presente (Hodder 1991).
Outro grande estudioso da ciência hermenêutica foi Paul Ricoeur. Este inspirou arqueólogos que se apoiam na teoria crítica marxista, como Mark Leone, Michael Shanks ou Christopher Tilley, ao mostrar como esta se funda numa hermenêutica. Ao demonstrar como a tensão entre o próprio e o outro não é ultrapassável, e que assim nenhuma perspectiva se poderia arrogar universal, Ricoeur modificou a aplicação da teoria crítica na arqueologia por parte dos autores pós-processuais.


Neo-marxismo


O neo-marxismo, ou marxismo ocidental, é o nome dado a um conjunto de correntes esquerdistas nascidas na década de 1920 no campo das ciências sociais, desenvolvidas em torno das teses de Georg Lukàcs, Karl Korsch, Ernst Bloch, e Antonio Gramsci. Uma das correntes que mais influenciou o pensamento pós-processualista foi a que ficou para a posterioridade conhecida como antipositivismo da escola de Frankfurt.
Nascida em meados dos anos 30 no Instituto de Pesquisas Sociais em Frankfurt, foi numa primeira fase profundamente influenciada pelo pensamento do seu mentor, Max Horkheimer. Numa lógica antimetafísica, antipositivista e anticapitalista, Horkheimer propunha a criação de um socialismo fundado na razão e liberdade, opondo-se à massificação e perda de individualidade na sociedade capitalista. As principais figuras desta escola foram forçadas a fugir para os Estados Unidos da América, por serem vítimas de perseguição do regime nazi. Nesta segunda fase, os pensadores focaram-se na capacidade do capitalismo em assumir as suas próprias contradições, e em anular todo o pensamento crítico e movimentos de transformação do regime. A terceira fase, onde mais se destacaram os nomes de Adorno, Habermas e Marcuse, foi caracterizada genericamente por um pessimismo resultante das falhas do socialismo (como a invasão soviética da Hungria em 1956). Todas estas reflexões influenciaram o trabalho de arqueólogos contemporâneos (Leone 1981, Shanks e Tilley 1987b). Porém, a tese destes intelectuais que causou maior impacto no pensamento pós-processual foi a Teoria Crítica – uma dos ramos pós-processualista adoptou mesmo o nome de arqueologia crítica (Leone 1986).
A noção de Teoria Crítica foi avançada pela primeira vez em 1937 por Horkheimer, no seu artigo “Traditionelle und kritische Theorie” (Teoria Tradicional e Teoria Crítica), e desde então foi trabalhada pelos teóricos pertencentes à sua escola. Consiste numa análise crítica da sociedade, e na consideração real de se “poder coexistir numa sociedade organizada racionalmente, sem que isso implicasse a subordinação da vontade e da individualidade à autoridade logocêntrica. A análise do papel da ciência e da tecnologia na sociedade moderna atribui-lhe um cariz particularmente negativo, sobretudo em relação à formação da consciência e da razão. Adoptam uma perspectiva construtivista do conhecimento – a indissociação da localização social com as pretensões de verdade. Acreditam, assim, que a produção do conhecimento deve funcionar como uma guerra de posição, que se deve contrapor às estruturas de poder capitalistas. O papel do intelectual é, nas palavras de Foulcault, “no longer to place himself ‘somewhat ahead and to the side’ in order to express shuffled truth of the colectivity; rather, it is to struggle against the forms of power that transform him into his object and instrument in the sphere of ‘knowledge’, ‘truth’, ‘consciousness’ and ‘discourse’” (Foulcault, cit. por Shanks e Tilley 1987b). Os investigadores que optem por desenvolver uma arqueologia crítica devem então tomar um papel oposicional à sociedade contemporânea, travar uma luta intelectual contra o regime prevalecente da produção da verdade, e constituir o discurso arqueológico como parte de uma guerra de oposição (Shanks e Tilley 1987b).
A influência neo-marxista na arqueologia está longe de se ter relegado meramente às correntes pós-processuais. Este tipo de análise veio libertar muitos arqueólogos marxistas e processuais dos seus esquemas determinísticos e inflexíveis, focando tópicos como a hegemonia e a ideologia. Uma área que o neo-marxismo veio revolucionar foi o estudo da relação entre centro e periferia: ainda que se mantenha a primazia na análise económica, é enfatizada a tensão, exploração e agitação ao invés da estabilidade (Dyson 1993). Outro tópico de estudo privilegiado é a forma como as sociedades utilizaram instrumentos simbólicos e sistemas para propósitos de controlo e integração social. As elites usam símbolos para manter o domínio, e para conservar padrões de interacção que lhes permitam manter posição superior em relação ao resto da sociedade. Este interesse na interacção de símbolos, relações de poder e integração social da elite reflecte não apenas a preocupação com a ideologia e hegemonia cultural, e com o estudo dos sistemas simbólicos (influência estruturalista), como também demonstra o fascínio pelo complexo papel do poder nas relações sociais. Este não se vai limitar apenas ao estudo de instituições ou elites individuais, mas contempla também o poder ao micro-nível de acção – as motivações e intenções do agente humano. Para compreender claramente esta componente, torna-se necessário considerar o renovado interesse pelo historicismo na análise arqueológica.


Historicismo


Após a II Guerra Mundial, as estruturas geopolíticas e epistemológicas mundiais sofreram uma enorme alteração. O paradigma histórico-culturalista, que servira para sustentar nacionalismos sangrentos, foi progressivamente sendo abandonado. Nos anos 60, são recuperadas algumas teorias evolucionistas, ainda que reformuladas. O neo-evolucionismo será responsável pela criação de uma perspectiva funcionalista no registo arqueológico. Lado a lado, vão subsistindo várias escolas e correntes de pensamento com algumas variantes.
O culminar das críticas contra o histórico-culturalismo dá-se em 1968, o chamado ano Binclarke, com a publicação das duas obras fundadoras da arqueologia processual: Analytical Archaeology, de David Clarke, e New Perspectives in Archaeology, de Lewis e Sally Binford. Estes autores acreditam que a arqueologia só pode ser tratada num âmbito científico. Clarke defende veementemente que a disciplina se devia afastar da História, considerando os seus praticantes meros coleccionadores de factos, que ainda que fossem curiosos não tinham qualquer aplicação científica e social. (Clarke 1968). A evolução humana passa a ser entendida como a trajectória de uma espécie; não há questões que se ponham à escala do pequeno território. As sociedades são concebidas como sistemas, que se decompõem em diferentes subsistemas em comunicação entre si.
Ao mesmo tempo, desenvolvia-se nas ciências sociais uma concepção não sistémica da cultura: o fenómeno social total de Marcel Mauss, que só será transposta para a arqueologia com o advento das correntes pós-processuais. A Teoria dos Sistemas é entendida como demasiado inflexível e determinística. A questão passa a ser: como conceber que as pessoas nasçam determinadas por estruturas sociais, mas actuem também de forma a mudar estas estruturas? Abre-se então espaço para a agência humana: o potencial criativo do indivíduo, a sua capacidade de realizar projectos, de reflectir sobre o mundo à sua volta e a sua condição. Esta reflecte um profundo humanismo na leitura do passado: torna-se necessária uma compreensão humanizada de uma paisagem onde cabem as pessoas.
O pós-processualismo concebe assim estruturas sociais muito mais dinâmicas, onde determinismo e livre-vontade se encontram balançados. Aqui, a crítica pós-processual inspirou-se fortemente na teoria social de Giddens e Bourdieu, que basearam as suas noções de prática social numa relação dinâmica entre estrutura e as acções intencionais dos agentes sociais (Shanks 2008). Collingwood foi também uma das figuras paternais deste movimento, com a sua ênfase na imaginação histórica (Collingwood 1981). Para além destes historiadores, os pensadores da escola dos Annales provocaram também um grande impacto no pensamento pós-processualista, ao sublinhar a importância de dar voz às minorias e aos vencidos da História.
A crítica das totalidades sociais, e a ênfase na agência humana afastou o pós-processualismo da procura de leis universais e dos esquemas de evolução cultural. Estes investigadores vão-se afastar das generalizações impostas pelas categorias de pensamento evolucionário, focando-se nas particularidades e diferenças locais (Shanks e Tilley 1987a). Trata-se da transposição para o campo teórico arqueológico da definição de condição pós-moderna: a incredulidade em relação a todas as metanarrativas (Lyotard 1989). Habermas argumenta que “a pós-modernidade se caracteriza, não por uma narrativa mestra totalizadora, mas por narrativas menores e múltiplas que não buscam (nem obtém) qualquer estabilização ou legitimação universalizante” (Habermas, cit. por Hutcheon 2002). Como exemplos de metanarrativas na arqueologia, temos o desenvolvimento da complexidade social, como a ascensão e queda da civilização, as origens da agricultura, o desenvolvimento do estado, o nascimento do Estado-Nação. Não existe nenhuma lei que possa ser universalmente aplicada a estas realidades: é fundamental a análise do contexto. A suspeita em relação às metanarrativas encontra-se relacionada com a incredulidade na ciência. Porém, esta posição tem vindo a ser revista nos últimos anos.


Ciência

Convencionalmente, o aspecto que mais afasta as correntes pós-processualistas do processualismo é a atitude perante a ciência. Enquanto os primeiros, seguindo a perspectiva pós-moderna que domina o panorama das ciências sociais, começaram por rejeitar toda e qualquer pretensão de cientismo, os segundos desacreditaram-nos precisamente devido a este facto. A discussão desenrolada em torno deste aspecto toma contornos marcadamente hostis, quando nenhuma das posições se encontra disposta a ceder: os defensores da Nova Arqueologia consideram as práticas pós-processualistas um desperdício de recursos, por não apresentarem respostas úteis e rigorosas (Binford 1987; O’Shea 1992); os investigadores pós-processuais, ainda que nunca rejeitassem a ciência como um todo, mostraram-se durante muito tempo irredutíveis quanto à utilização científica para determinados fins (Yates 1990; Shanks e Tilley 1987a), ou o cientismo (Hodder 1986; Shanks e Tilley 1987a).
À medida que o tempo foi avançando, e o pós-processualismo se foi afastando do seu aspecto reaccionário contra a Nova Arqueologia, houve cada vez uma maior tendência para encarar a ciência numa perspectiva mais abrangente (Renfrew 1989; Hodder 1991; Vanpool e Vanpool 1999; Shanks 2003; Trigger 2004).
Para os positivistas, a ciência é totalmente racional; os observadores objectivos registam meticulosamente os dados, propõem hipóteses lógicas, não são sujeitos a preconceitos, e abandonam as suas teorias sempre que as evidências sugerirem uma melhor. Na comunidade científica, como Woodward e Goodstein demonstraram (1996), esta “visão lendária da ciência” (Rosenau, cit. por Vanpool e Vanpool 1999) já foi em larga medida ultrapassada. Reconhece-se que a demarcação entre a ciência e a não ciência é feita pela estrutura do sistema de conhecimento, e não pelo comportamento dos seus praticantes. Estes não são super-homens: como todos os outros, são afectados por preconceitos políticos, sociais, económicos, religiosos, etc. Porém, esta visão ainda vigora no campo da arqueologia processual (Wylie 2000, Vanpool e Vanpool 2002).
Não existe nenhuma definição universalmente aceite de ciência. O indutivismo de Francis Bacon, a base do sistema de pensamento positivista, foi refutado por Karl Popper (Popper 2000). Este afirma que o método de observação empírica não é um meio seguro para a criação de leis universais, porque a explicação do passado não permite a previsão do futuro. Também se revela insuficiente por permitir que muitas não-ciências se possam arrogar uma pretensão científica. Woodward e Goodstein (1996), bem como Thagard e Feyerabend (cit. por Vanpool e Vanpool 1999) demonstram ainda como um número infinito de observações possíveis pode ser feito a partir de qualquer fenómeno empírico. Popper avançou a noção de falibilidade enquanto critério de demarcação, afirmando que a justificação não era importante por ser muito fácil encontrar provas para suportar qualquer tipo de teoria. Defende então que todas as teorias deveriam ser testadas como se estivessem erradas, de forma a descartar as que de facto não fossem apropriadas. A objecção Duhem-Quine demonstra como é impossível falsificar logicamente uma teoria; para além do mais, vários autores (como Thagard, Feyerabend, Kuhn, Lauden, ou Woodward e Goodstein) demonstraram como o critério é insuficiente para demarcar a ciência das não ciências, e como impede o progresso da ciência por impedir teorias jovens e revolucionárias de se desenvolverem, como a de Copérnico ou Newton (Vanpool e Vanpool 1999).
Assim, foram avançados sete características que a ciência deve possuir. Ainda que já vários autores tivessem defendido um cariz científico para determinadas correntes pós-processuais, foi o trabalho pioneiro de Todd e Christine VanPool que finalmente ofereceu alguma sustentação teórica para essa pretensão, ao tentar incluir o pós-processualismo nestas sete categorias. Em primeiro lugar, a ciência tem que estudar sujeitos empíricos (fisicamente observáveis), o que inclui não-tangíveis como o comportamento e os sistemas sociais. O erro das objecções levantadas por processualistas e pós-processualistas quanto a este ponto consiste em equacionar empírico com algo palpável, que possa ser apreendido pelos cinco sentidos. As não-tangíveis na ciência, como a física quântica, a gravidade e os círculos espaço-tempo são considerados empíricos por possuírem consequências observáveis que são intersubjectivamente observáveis; da mesma forma, as regras, estruturas sociais e ideologias estudadas pelos pós-processualistas reflectem-se nos símbolos. A segunda e terceira características encontram-se interligadas: o conhecimento científico baseia-se em estruturas teóricas, que não devem ser contraditórias. Ainda que não se possa avançar que o pós-processualismo possua um corpo teórico coerente ou sistemático, partilha certas premissas (o papel da agência e da ideologia nas sociedades humanas, a necessidade de hermenêutica) que são mais universalmente aceites que a maior parte das teorias da Nova Arqueologia. De facto, o fundamental é que cada corpo teórico seja coerente e consistente consigo próprio. A quarta característica é mais problemática: a ciência deve ser objectiva. Os autores argumentam que no meio científico a equiparação de objectivo a imparcial, absoluto ou verdade foi ultrapassada na década de 1950. O objectivo é o que pode ser intersubjectivamente testável e verificável; coincide assim com a plausibilidade (concordância com aspectos do registo arqueológico de tal forma que as interpretações sejam logicamente compatíveis com o registo) defendida pelos pós-processuais. Autores como Hodder, Preucel, Shanks e Wylie começam já a admitir como o reconhecimento da influência da política nas construções arqueológicas não é impeditiva à objectividade científica: “Politically engaged science is often much more rigorous, self-critical, and responsive to the facts that allegedly neutral science” (Wylie 1992, p.30). A quinta característica encontra-se relacionada com a anterior: a inclusão de componentes de avaliação, que para os autores consiste na plausibilidade pós-processualista. A ciência deveria ainda utilizar leis da natureza universais e estritas: esta tese, fortemente criticada pela biologia e filosofia da ciência, foi reformulada por Dunnell, arqueólogo evolucionário. Para este existem space-like sciences, que lidam com padrões consistentes ao longo do tempo, e por isso podem usar leis, e time-like sciences, onde não é possível construir generalizações por as condições anteriores afectarem manifestações futuras. Enquanto a física e química se enquadram no primeiro grupo, a biologia e a arqueologia inscrevem-se no segundo – esta proposta permite que estas duas disciplinas mantenham o carácter de ciências sem terem que obedecer à elaboração de leis universais. Por fim, a ciência deve englobar o conceito de progresso: o desenvolvimento de sistemas cada vez mais complexos e completos que contemplam mais factos e menos perguntas se resposta. Os autores defendem que o pós-processualismo se encontra envolvido num programa de pesquisa crescente, que pode potencialmente aumentar o nosso conhecimento sobre o passado.



Prática

Uma das maiores críticas que é dirigida aos arqueólogos pós-processualistas é o facto de eles se limitarem à especulação teórica, não se debruçando sobre a vertente prática da arqueologia. Ainda que o pós-processualismo não tenha produzido quaisquer textos metodológicos ou uma nova prática de campo, não significa que não se encontre ligado ao estudo da cultura material. Isto deve-se ao facto de considerarem que não existe nada de errado com as ferramentas metodológicas que o processualismo utiliza, mas sim na forma como são utilizadas. Os exemplos de projectos práticos elaborados por estes investigadores multiplicam-se: desde a análise simbólica (Hodder 1982; Tilley 1993; Thomas 1999), ou a antiguidade greco-romana (Shanks 1999, Hingley 2005), passando pelos estudos medievais (Johnson 1996), a arqueologia histórica nos Estados Unidos da América (Leone 1995) ou mesmo a arqueologia do passado contemporâneo (Buchli e Lucas 2001). Intervenções como o Stonehenge Riverside Project, de Julian Thomas e Christopher Tilley, entre outros; a campanha de 25 anos de Ian Hodder em Çatal Hüyük; o Kalaureia Excavation Project de Yannis Hamilakis; o Garbage Project de William Rathje; são todos exemplos de escavações levadas a cabo com grande profissionalismo e extremamente reputadas. O projecto internacional que se encontra em execução em Monte Polizzo, na Sicília, é um óptimo exemplo de interacção e coordenação entre grupos de arqueólogos distintos de diferentes nacionalidades e escolas conceptuais.
Apesar do pós-processualismo não ter avançado um corpo metodológico distinto, apresenta algumas propostas em relação ao tratamento da realidade artefactual. Uma delas é que não faz sentido separar a arqueologia da sua “vida concreta” (Shanks 2003) – as dificuldades políticas, culturais, logísticas e práticas, porque sem elas a arqueologia não pode existir. As escolas ortodoxas frisam a necessidade de distinção entre ciência/não ciência, arqueologia/não arqueologia. O pós–processualismo vem propor que realidades como a utilização de instrumentos, terminologias, direitos de acesso, linhas de autoridade, fotografia, sistemas de gravação, linhas telefónicas, logística, organização de transportes, superintendência local de antiguidades, ou diferenças culturais entre locais e equipa, sejam consideradas como parte estrutural e indispensável da arqueologia; reconhecem a prática arqueológica como um mundo vastíssimo e pretendem a abolição das fronteiras artificiais.
Através das ferramentas de estudo convencionais, os pós-processuais enfatizam a ênfase na multiplicidade do passado, a complementaridade de diferentes abordagens, e um modelo de interpretação final aberto. São também apologistas de uma sensibilidade e imaginação aplicada no confronto da realidade arqueológica. Esta pode traduzir-se, por exemplo, num estabelecimento de relações com os vestígios do passado, de identificação com estes. Pode também constituir num exercício de reconstrução do passado, procurando recolocar as coisas no seu lugar, organizá-las segundo uma lógica menos funcionalista e mais realista, concebendo uma paisagem mais vasta através de um sentido de lugar. Pode ainda revelar-se numa atitude forense no estudo das provas do passado; ou num interesse no processo de metamorfose e transformação em ruína de um local, na análise dos processos pós-deposicionais.





A arqueologia na sociedade contemporânea: As Políticas do Passado


“- Quem domina o passado domina o futuro;
quem domina o presente domina o passado.”
George Orwell, 1984, p. 231



Até meados da década de 1980, as reflexões sobre a influência do pensamento político na produção do conhecimento arqueológico haviam-se limitado a breves dissertações sobre a manipulação ideológica exercida pelos regimes fascistas europeus na leitura do passado. De facto, a arqueologia havia permanecido afastada do longo debate sobre a independência epistemológica do pensamento académico que se desenrolava desde as origens das ciências sociais no século XIX (Shanks 2003). Quando, por altura do Primeiro World Archaeology Congress (WAC), em 1986, Michael Shanks e Christopher Tilley frisaram no seu ensaio a necessidade de reconhecer as políticas da disciplina, foram sobejamente criticados “for polluting the discipline with irrelevancy” (Shanks 2003). O observador distante pode reconhecer uma certa paradoxalidade nesta situação, uma vez que a própria elaboração do congresso se encontrava envolta numa grande controvérsia política – o banimento das delegações sul-africanas e namíbianas devido ao seu regime de apartheid. A negação da liberdade académica e o compromisso com os interesses sociais levaram à ruptura de uma facção (mais tarde conhecida como WAC) com a International Union of Pre- and Proto-Historic Sciences (IUPPS). Desde então, a ênfase neste tópico aumentou de tal forma que se tornou praticamente numa subdisciplina, com revistas, cursos e conferências a ele dedicados.
A popularidade deste tema encontra-se relacionada com a multiplicação de casos polémicos e mediáticos envolvendo a politização da herança arqueológica, desde a destruição dos Buddhas de Bamyian ao reconhecimento dos direitos dos povos nativos, passando pelo despontar de inúmeras tensões étnicas e nacionalistas na zona do Médio Oriente e da antiga União Soviética (Kohl 1998). Mas um factor de ordem epistemológica explica também a forte produção recente neste campo: o reconhecimento cada vez mais generalizado da teoria crítica, que advoga a inseparabilidade da localização social com as pretensões de verdade (Shanks 2003). Este pode mesmo ser encarado como um resultado da perda de inocência na arqueologia que David Clarke enfatizou no seu célebre artigo, preconizando a necessidade de uma atitude crítica de dúvida e suspeita quanto aos objectivos e práticas da disciplina e uma auto-consciência reflexiva (Clarke 1972).
Actualmente, a maioria dos arqueólogos das mais diversas escolas de pensamento, desde o histórico-culturalismo, ao processualismo, passando pelas diferentes escolas pós-processuais, reconhecem que existem interesses políticos na leitura do passado. Porém, adoptam as mais diversas posturas em relação a este tema: às posições mais polarizadas contrapõem-se uma miríade de opiniões mais subtis e flexíveis. A cobertura deste tópico não poderia de forma alguma reclamar-se exaustiva, pela massiva produção a ele dedicada; tentarei porém expor as problemáticas mais debatidas actualmente e o tratamento que alguns autores optaram por dar-lhes.


Arqueologia e Identidades

Jenkins descreve a identidade como a forma pela qual os indivíduos e colectividades se distinguem nas suas relações com outros indivíduos e colectividades (cit. por Meskell 2002, p. 180). Os esquemas explicativos do histórico-culturalismo e do processualismo pressupunham a identidade como uma entidade estática e imutável: enquanto o primeiro se focava na atribuição de grupos de cultura material a determinadas entidades étnicas, numa tentativa de determinar a “alma dos povos”, o segundo concebia a sociedade humana como determinística, e a sua cultura e identidade como algo de inflexível e imutável. Estas concepções fixas, elaboradas num quadro conceptual influenciado, respectivamente, pelo colonialismo e pós-colonialismo, justificam a existência de identidades nacionais, que sempre tiveram dificuldade em lidar com a diversidade – as ideias de autodeterminação, liberdade e unidade colidem com a supressão do que é diverso: favoreceram historicamente o domínio e a exclusão no lugar de um pluralismo igualitário (Shanks 2003).
Um dos factores que caracteriza a pós-modernidade é precisamente a criação de identidades flexíveis e fracturadas, sendo a sua maleabilidade o resultado de complexas interacções globais. “Just now everybody wants to talk about “identity”... identity only becomes an issue when it is in crisis, when something assumed to be fixed, coherent and stable is displaced by experience of doubt and uncertainty.” (Mercer 1990, p.12). Neste quadro conceptualizante, as entidades rígidas já não fazem sentido: são interpretadas como um sistema de significados, ou uma tentativa de projectar estabilidade num mundo instável.
As arqueologias da identidade estão em expansão: “They represent our contemporary engagement with other fields and audiences and fulfill part of our ethical responsability as public figures charged with the trusteeship of the past” (Meskell 1998). O tratamento deste tema exige uma especial precaução por parte do investigador, devido à sua particular relevância e significado social.




a) Arqueologia e o “Outro”


Fundamental para definir identidade é o conceito do “Outro” – nas palavras de Oscar Wilde, “Most people are other people” (cit. por Holland 2007, p. 35). As dimensões psicoanalíticas de Lacan explicam como esta noção nasce quando o bebé toma consciência da sua separação física da mãe. No mundo greco-romano, o “Outro” é o bárbaro, ou aquele que não é civilizado; Said (1978) mostra como o mundo Ocidental procura perpetuar a imagem do Oriental como fonte de fascínio e perigo – exótico mas não-civilizado.
Desde a génese do conhecimento científico moderno, no século XVII, as disciplinas de teor científico, naturais ou humanas, sempre foram dominadas por uma elite de homens brancos. Estes pensadores embuídos de espírito iluminista e positivista acreditavam que o seguimento de cânones racionais os mantinha numa posição neutral, e lhes permitiria eventualmente atingir a Verdade Una e Absoluta. Actualmente, qualquer leitura cuidada pode determinar sem qualquer dificuldade o quanto os seus preconceitos machistas, raciais e epistemológicos os influenciaram na construção do seu raciocínio (a mesma tarefa não é tão fácil para os tempos contemporâneos, onde alguns positivistas extremos proclamam ainda a sua neutralidade). As revoluções políticas e sociais do século XX permitiram que um número cada vez maior e heterogéneo de pessoas pudesse participar na pesquisa científica, levando à crítica destas posições e à elaboração de múltiplas novas reinterpretações.

O final da Segunda Guerra Mundial veio ditar o final dos grandes impérios europeus e redesenhar o mapa da geografia mundial. A afirmação de novas nações surge sustentada por uma ideologia pós-colonial, que procura a sua legitimação num passado remoto. Neste processo, a arqueologia irá desempenhar um papel crucial – desde a apropriação de elementos da cultura material de elevada carga simbólica, como a Macedónia, ou a adopção do nome de uma entidade outrora gloriosa, como o Zimbabué (Bahn e Renfrew 2004, p. 548).
Torna-se por esta altura evidente que os campos antropológico e arqueológico se encontram dominados por uma perspectiva eurocêntrica e teleológica, completamente insustentável perante a nova realidade política e social. O processo de colonização dos outros continentes por parte das potências europeias não se limitara à ocupação efectiva do território. De facto, os grandes estudiosos da cultura europeia como Thomas Mann e Oswald Spengler identificaram como aspecto muito particular da psique ocidental “its boundless aspirations, its expansionism, its identification of knowledge with power, its attempt to subdue nature, its yearning for control over its own destiny” (Van Cromphout 1979, p.18), algo que Van Cromphout optou por denominar de ethos faustico. O desenvolvimento das correntes indigenistas na arqueologia veio levantar complexas questões éticas sobre quem tem direito ao passado, e obrigar à revisão da relação com o Outro.
Um dos aspectos éticos mais delicados diz respeito ao estudo de vestígios físicos humanos. Ainda que não possuamos acesso directo aos desejos e crenças dos povos pré-históricos, sabemos como as antigas tradições cristã, egípcia, chinesa, grega, entre outras, temiam o distúrbio dos seus mortos. Deverá a ânsia de conhecimento sobrepor-se às mais profundas convicções dos sujeitos em estudo? Mas a questão é muito mais sensível quando existem populações que se reclamam descendentes dos indivíduos que os arqueólogos pretendem estudar. O caminho a seguir parece ser a negociação e o compromisso (Bahn e Renfrew 2004, p.553) apesar das situações serem frequentemente muito voláteis (ex: Índios Zuni) ou mesmo hostis (ex: fundamentalistas judaicos). Nos Estados Unidos da América e na Austrália, onde a legislação reconheceu os direitos dos povos indígenas, desenvolvem-se grandes projectos de reenterramento dos vestígios mortais ancestrais. A situação é muito heterogénea, mas os melhores resultados processam-se quando ocorre o envolvimento da população local no estudo e deposição das ossadas e respectivo espólio.
Outra questão diz respeito ao retorno da propriedade cultural, pilhada durante a época colonial. Em 1999, a Grécia exigiu ao Museu Britânico o repatriamento das esculturas conhecidas como “Mármores de Elgin”, que o diplomata escocês com o mesmo nome retirou do Parthénon com autorização do governo turco que então regia o país (Reenvies 1996). Este é um dos casos mais mediáticos dos tempos recentes, mas os exemplos multiplicam-se: a Grécia exige também o regresso da Vénus de Milo, exposta no Louve; o Egipto pede o retorno do busto da rainha Nefertiti, que se encontra no museu de Berlim; a Turquia encontra-se em processo de negociação com vários museus, após ter recuperado com sucesso a “Lydian Hoard” do Museu Metropolitano de Nova York (Bahn e Renfrew 2004, p.550). Esta situação intrinsicamente política é extremamente sensível, e as opiniões dividem-se no seio da comunidade de arqueólogos. No caso de se admitir que os países de origem têm direito a recuperar o seu espólio, levanta-se a questão se estes têm condições para as preservar, ou se se deve optar pela elaboração de uma réplica, que a tecnologia recente permite fazer virtualmente perfeita. Algumas das reclamações são feitas não por entidades nacionais, mas por grupos étnicos que reclamam descendência directa sobre determinados grupos do passado, e portanto o direito sobre os seus vestígios materiais (Diaz-Andreu 2006); outros grupos que não se identificam com qualquer identidade académica, étnica e nacional, como os New Age Travellers (Finn 1997), os druidas (Chippindale et al. 1990) e as eco-feministas (Hodder 1998), exigem também o seu direito ao passado e aos seus vestígios materiais. Mas muitos acreditam que a herança material do passado transcende as suas fronteiras actuais e é um legado de toda a humanidade. Defendem que existe uma maior vantagem na exposição das peças nos grandes museus, onde um maior número de pessoas lhes possa aceder, e contemplar “a sample of the whole variety of human experience” (Bahn e Renfrew 2004, p.558). Não falta quem denuncie estes argumentos como base de um neo-colonialismo, que é abraçado em nome da universalidade e multiculturalismo (Zizek 1997).
No seio de toda esta complexa contenda política, e numa realidade em permanente mutação, a relação da arqueologia ocidental com o “Outro” teve que ser repensada. A questão deixou de ser como se salvam outras culturas do desaparecimento, ou mesmo como as representamos, mas como nos relacionamos com outras pessoas quando nos parece insustentável a noção de distância neutral e científica (Shanks e Tilley 1987b). “Siamo stati educati a pensare che utilizzare il sé per scoprire l’altro offende i canoni fondamentali della scienza antropológica… questa segregazione dogmática del sé e dell’altro há avuto la conseguenza di costituire noi (il sé) come qualitativamente diverso dall’ altro, nei termini della nostra complessità e unicità e della loro semplicità e generalizzabilità.” (Cohen, cit. por Sacchi 2003, p.79). Nos últimos anos, assistiu-se a uma profunda transformação no processo de construção de alteridade. Este tipo de atitude perante o “Outro” já não faz sentido na nova realidade política e social - muitos passam a conceber a experiência etnográfica como “un dialogo interculturale tra esseri umani attivi che plasmano la loro interazione.” (Hastrup, cit. por Sacchi 2003 p.79). A desconstrução adaptada à realidade arqueológica demonstra como a medição, comparação da cultura do “Outro” tende a reduzi-la (Shanks e Tilley 1987b) – deve ser adoptada uma abordagem de cooperação e interacção com o “objecto” em estudo, para melhor o analisar em toda a sua complexidade.

Mas o “Outro” não existe apenas em terras longínquas e exóticas. O “Outro” são todos aqueles que foram esquecidos na narração da trajectória de progresso da civilização ocidental. Entre eles encontram-se os emigrantes, são os pobres, os marginais, os toxicodependentes, todos os que escapam à Ordem e racionalidade. O “Outro” são também as mulheres.
A arqueologia é tradicionalmente uma disciplina dominada por homens. Compreende-se portanto que o discurso feminista tenha estado sempre ausente da produção de conhecimento arqueológico, mesmo após o emergir das primeiras correntes pós-processualistas. Apenas em 1984/1985 se começam a constituir os primeiros esboços de uma arqueologia feminista, com Conkey, Spector e Gero. (Shanks e Tilley 1987b). Esta vai desenvolver um trabalho que se apoia nos estudos das escolas antropológicas feministas, que se foca na redefinição da importância da mulher no passado: “over the past three decades feminist anthropologists have documented enormous variability in the role played by the women, in the degrees to which they are active rather than passive, mobile than rather than bound to a “home base”, and powerful rather than stereotypically disposseded and victimized. All of this decisively challenges any presupposition that women are inherently less capable of self-determination and strategic manipulation of resources than their male contraparts” (Wylie 1992).
As diversas tradições feministas discordam quanto à adopção dos cânones científicos ou das perspectivas relativistas: Harding (1986) defende a utilização das “tools of science”, enquanto a bióloga Fausto-Sterling (1985) considera o feminismo “the better science”. Hawkesworth denota uma certa contradição entre os pedidos feministas de tolerância para com as diversas perspectivas com o desejo de “develop a sucessor science that can refute once and for all the distortion of androcentrism” (Hawkesworth 1989, p.538). Concordam, no entanto, em comprometer-se politicamente com o potencial emancipatório do feminismo – têm a missão de compreender como as estruturas de género operam para combaterem efectivamente contra as injustiças que estas estruturas perpetuam. Este trabalho é fundamental, uma vez que a auto-ilusão não é uma base efectiva para a acção política (Wylie 1992). Esta consciência encontra-se cada vez mais presente das diversas realidades, sobretudo nas mais delicadas, como a relação da arqueologia com os nacionalismos – apenas um estudo sóbrio e não iludido pode ajudar à compreensão das causas envolvidas e á consequente não-repetição dos erros do passado.


b) Arqueologia e Nacionalismos

Uma das relações mais problemáticas da arqueologia com a política tem provado ser a sua utilização por parte de regimes nacionalistas. Esta disciplina tem-se revelado um instrumento por excelência para a fundamentação de nacionalismos, por conferir uma materialidade às construções do passado que estes elaboram. O passado confere identificação e legitimidade, promovendo a coesão social. Quando manipulado de forma particularmente nefasta, apresenta um potencial incrivelmente destrutivo. Para a compreensão deste fenómeno, torna-se necessária uma breve leitura histórica.
O nacionalismo moderno surgiu como produto da Revolução Francesa, associado aos valores de liberdade e igualdade, e como uma revolta ao estatuto de súbdito de um rei absoluto. Fortalecido pelas ideologias do poder da vontade de Rousseau, pela visão dinâmica da História de Herder e pelo conceito de Weltgeist, ou espírito do mundo hegeliano, o fervor nacionalista incendiou toda a Europa por meio das Invasões Francesas e teve um papel preponderante na unificação de principados e construção de nações. Rapidamente as estruturas conservadoras no poder, a princípio receosas da sua força incontrolável, se aperceberam do gigantesco potencial do nacionalismo, apropriando-se dele. O nacionalismo não tardou a afastar-se do hiper racionalismo iluminista em que se houvera gerado – abraça o romantismo, cuja apologia do sentimento e a desconstrução da razão alimenta muito mais o fervor popular. Numa primeira fase, a ênfase no passado irá concentrar-se mais na procura de raízes medievais e na revalorização do património e tradições autóctones, aliada ao culto dos heróis como símbolos de uma gloriosa época dourada – o Rei Artur, Cuchulain, Guilherme Tell ou Aquiles. Mas após a I Guerra Mundial, a situação altera-se drasticamente. Os povos que se sentiram prejudicados ou privados dos seus direitos colectivos (como a Alemanha e a Itália após a Primeira Grande Guerra), ou que conheceram grandes momentos de instabilidade e cisão interna (como Espanha e Portugal), irão procurar glorificar o seu passado em bases míticas e emocionais, prometendo uma nova ordem que iria restaurar o esplendor de outros tempos. Gustaf Kossinna será o primeiro arqueólogo a associar o registo material à busca da etnogénese que obcecava o espírito europeu de então (Renfrew 1987) – abriu o caminho para toda uma geração de arqueólogos, particularmente alemães e italianos (mas não só) procurar no solo a confirmação da superioridade étnica e racial dos seus antecessores directos, e mesmo da inferioridade biológica de outros grupos em particular (Ubago 2005). Actualmente, as diversas escolas de pensamento arqueológico insistem no carácter maleável e permanentemente mutável da etnicidade: as tradições são inventadas e conscientemente manipuladas por motivos políticos, sociais e económicos. É portanto extremamente díficil fazer remontar uma etnia actual à sua correspondente no passado: o arqueólogo tem a responsabilidade de sublinhar a incerteza da etnicidade e da etnogénese (Kohl 1998).
Os regimes aos quais a arqueologia forneceu sustentação ideológica causaram ao mundo dezenas de milhões de mortos e a guerra mais catastrófica que a humanidade conheceu até hoje. Meskell (2002) defende que este terá sido o facto pelo o qual a arqueologia se manteve afastada do debate construtivista das ciências sociais, refugiando-se numa pretensa neutralidade científica. O papel da arqueologia nos nacionalismos que se desenvolveram nos países recém-libertados do jugo colonial foi, por isso mesmo, largamente ignorado.
A nova situação geopolítica que se seguiu ao rescaldo da queda do Muro de Berlim e do desmantelamento da URSS veio obrigar a comunidade arqueológica a sair da comodidade das suas torres de marfim. Tornou-se claro que, a menos que a arqueologia adoptasse uma postura crítica em relação à nova realidade em que se encontrava, facilmente se podia tornar um instrumento ideológico por parte dos numerosos nacionalismos que despontaram na zona das Balcãs e Médio Oriente, e voltar a suportar sangrentas limpezas étnicas. As recentes campanhas de erradicação da memória que se têm desenrolado nalguns destes países (Bahn e Renfrew 2004) vêm suportar esta teoria. Por todo o globo foram-se levantando vozes que reclamam que a arqueologia aja eticamente em consciência, utilizando a revisão historiográfica e a contraposição com vozes alternativas para combater a manipulação do passado por parte de regimes nacionalistas (Diaz-Andreu 2006; Meskell 2002; Kohl 1998). O Estado-Nação é concebido como uma construção social, sem justificação cultural na geografia, história, raça ou etnicidade (Anderson 1991; Bhabha 1990).


c) Arqueologia e Globalização

Nos anos mais recentes, assistiu-se à sofisticação a um ritmo exponencial da tecnologia, e ao seu uso massificado. Os novos meios permitiram a expansão das fronteiras físicas e do conhecimento. Paralelamente aos avanços científicos e tecnológicos, assistiu-se no plano político à queda do Muro de Berlim e à abertura dos mercados de leste e chineses à economia capitalismo. Esta nova era, denominada como globalização, é caracterizada por uma grande mobilidade, e pela velocidade de transmissão da informação e do conhecimento. Os antigos poderes imperiais foram transformados em operações supranacionais de capital, comunicação e cultura. Estes veiculam uma unidade ideológica, simbolizada pelos Estados Unidos da América, caracterizada pela massificação do consumo e da informação.
Mas a globalização é um processo muito complexo: não se trata da simples hegemonia da cultura americana homogeneizada sobre a identidade local, mas “the way external and internal forces interact to produce, reproduce and disseminate global culture within local communities” (Shanks 2003, p.474). Os processos de integração cultural estão a ocorrer a um nível global, mas numa situação cada vez mais pluralística em termos de novos níveis de diversidade (Hingley 2005). Alguns estudos recentes têm tentado demonstrar como a homogeneidade cultural promovida pela dinâmica global pode conduzir ao afastamento da identidade com a comunidade e o lugar, bem como criar algumas formas de resistências e nacionalismos (Woodward 2001). As migrações resultantes deste processo produzem identidades plurais mas contestadas, marcadas pela desigualdade. Para alguns autores, estas identidades fluidas poderão perfeitamente ter existido no passado; no entanto, para lidar com a fragmentação do presente, algumas comunidades procuram o regresso a um unificado passado perdido. A sociedade europeia possui como mitos de origem a herança da cultura greco-romana e a barbaridade (com a conjunção de ambos a representar o melhor interesse da agenda política actual).
Muitos autores utilizam o quadro conceptual de pesquisa elaborado no contexto da globalização para estudar o passado. Podem ser citados, entre outros, Richard Hingley (2005), no seu estudo da fragmentária identidade romana existente durante a expansão do Império Romano, ou Mark Leone (1995), na sua análise arqueológica da génese do capitalismo americano. Este último, tal como Yannis Hamilakis, inscreve-se numa corrente de pensamento que defende uma responsabilidade social no estudo do passado:

“Nowadays, many archaeologists seem quick to embrace the naive discourse that sees globalisation as a new liberating state of affairs that allows people to travel more and communicate globally with each other, forgetting that, along with the new opportunities, the past decades have created new boundaries and borders and new sophisticated techniques of global surveillance (Bauman 1998). More importantly, to recall Bhabha (1992) again, "the globe shrinks for those who own it," while for the "displaced or the dispossessed, the migrant or refugee, no distance is more awesome than the few feet across borders or frontiers" (88). These are the worlds that we need to embrace, not in any attempt to represent them as hopeless and powerless victims in need of humanitarian help, but as worlds and communities whose voices, whose pain--but also whose frustration and anger--need to be heard, and whose views and links with their material culture and heritage need to be embraced and understood”. (Hamilakis 2006).

Este discurso inscreve-se numa linha de pensamento que remonta a Lukàcs e Habermas, na década de 1970, sobre a intervenção do intelectual na sociedade. Georg Lukàcs, na sua célebre obra História e Consciência de Classe, defende que o historiador tem o dever de mostrar às classes baixas um passado onde a sua condição era diferente, de lhes revelar que não são responsáveis pela sua condição (Lukàcs 1974). Habermas acredita que esta situação idílica extremamente difícil apenas pode ser atingida através do discurso ideal entre ambas as partes, um diálogo entre iguais que compreende intelegibilidade, honestidade, legitimidade e credibilidade, o que se traduz no estudo do registo arqueológico numa ênfase na democracia e num tratamento não preferenciado de todos os grupos humanas. Este tipo de raciocínio insere-se num debate que se tem vindo a desenvolver a partir da década de 1990 na comunidade arqueológica sobre as responsabilidades éticas do arqueólogo.


Arqueologia e Responsabilidades Éticas



O crescimento da arqueologia enquanto disciplina científica, e enquanto prática profissional, levou à criação de associações profissionais, como o Institute of Field Archaeologists no Reino Unido e a Society for American Archaeology nos Estados Unidos da América, a nível nacional, ou do International Council on Monuments and Sites/Conseil international des monuments et des sites (ICOMOS) e do World Archaeological Congress no plano internacional. Todos eles possuem códigos de ética, que obedecem forçosamente a uma lógica política. Estes consideram os direitos, competências e papel do investigador, determinando quem pode escavar, como deve ser treinado, o que é considerado certo e errado na prática arqueológica, o que faz o arqueólogo um bom praticante da disciplina, etc. Embora variem ligeiramente nos seus princípios constituintes, todos comportam a mesma essência. Irei de seguida analisar alguns dos aspectos mais focados por estes códigos éticos.


a) Arqueologia e Educação

O princípio nº4 do Código de Ética da Society for American Archaeology (2007) reza o seguinte:
“Archaeologists should reach out to, and participate in cooperative efforts with others interested in the archaeological record with the aim of improving the preservation, protection, and interpretation of the record. In particular, archaeologists should undertake to: 1) enlist public support for the stewardship of the archaeological record; 2) explain and promote the use of archaeological methods and techniques in understanding human behavior and culture; and 3) communicate archaeological interpretations of the past. Many publics exist for archaeology including students and teachers; Native Americans and other ethnic, religious, and cultural groups who find in the archaeological record important aspects of their cultural heritage; lawmakers and government officials; reporters, journalists, and others involved in the media; and the general public. Archaeologists who are unable to undertake public education and outreach directly should encourage and support the efforts of others in these activities.” (SAA 2007).


O facto das mais diversas associações arqueológicas assumirem como responsabilidade fundamental não só a educação académica mas também a de outros públicos representa uma revolução epistemológica muito profunda no seio da disciplina. Quando a arqueologia se afastou do histórico-culturalismo, lutou de tal forma para ganhar um lugar entre as ciências exactas que acabou por hermetizar o seu discurso, tornando-o completamente inacessível. Pode admitir-se que a proposta pós-processual da importância da educação social foi um dos pontos mais bem assimilados por parte das outras correntes: actualmente, a maioria dos cientistas reconhece esta como uma das suas missões fundamentais.
Mas existe um grande fosso entre a teoria e a prática. A publicação, forma por excelência de divulgação com os outros públicos, é muito limitada na comunidade por falta de fundos, seja por falta de fundos ou por incapacidade profissional. Bahn e Renfrew (2004) consideram esta realidade um duplo roubo: uma vez que os locais não podem ser reescavados, se não existir a publicação a informação que ali se encontra perdeu-se para sempre.
A apresentação de resultados ao público envolve certas responsabilidades com que o arqueólogo tem grandes dificuldades em lidar. Uma vez que a arqueologia se deve esforçar para manter o seu apoio social, político e financeiro (Clarke 2004), a divulgação deve ser feita de forma apelativa e acessível às comunidades – o recurso aos meios audiovisuais e à Internet representa um precioso auxiliar. Recentemente, tem surgido uma crítica quanto à tentativa de apresentar um passado objectivo e uniforme. Multiplicam-se as vozes que enfatizam como as publicações, programas de televisão e museus apresentam um passado, e não o passado (Leone 1995, Shanks 2003, Harke e Wolfram 1993). Alguns denunciam mesmo a distorção ideológica do passado em museus (Leone 1981; Horne 1984). Para contrastarem com as visões unas e autoritárias, os autores propõem diversas soluções. Alguns adoptam a posição de Sartre e Barthes, que defendem a produção de textos que estimulem o autor (writerly texts), que o incitem ao debate, à reflexão, à discussão (Shanks 2003). Outros insistem na premência do envolvimento com o presente – na impossibilidade de um passado objectivo, devem apresentar-se visões múltiplas e relacioná-las com as ideologias actuais, apresentando diversidade suficiente para incitar o espírito crítico no observador (Harke e Wolfram 1993).
A apresentação de um passado ao público levanta a questão da autoridade. Quem pode falar sobre o passado? Pode existir mais que uma leitura sobre o passado? Que visão vale mais? Tem a mesma validade que uma verdade religiosa?
O princípio nº8 do Código de Ética da Society for American Archaeology pronuncia-se sobre este tópico:

“Given the destructive nature of most archaeological investigations, archaeologists must ensure that they have adequate training, experience, facilities, and other support necessary to conduct any program of research they initiate in a manner consistent with the foregoing principles and contemporary standards of professional practice.” (SAA 2007).

Este artigo delega então directamente às universidades e institutos a responsabilidade pela selecção e treino de futuros arqueólogos. Com o advento da globalização, estas instituições encontram-se num complexo processo de mutação. O corte de fundos públicos força as universidades a aceitar patrocínios privados; no entanto, seria ingénuo e perigoso considerar este tipo de numeração como desinteressado e apolítico – não existe o estudo desinteressado do passado por amor ao conhecimento (Shanks e Tilley 1987b). A lógica de maximização de lucros é transposta para a realidade académica: a educação torna-se um mero treino para competências técnicas utilitárias, e o conhecimento “a commodity to be sold and exchanged, rather than a life transforming experiential process” (Hamilakis 2004). Yannis Hamilakis reflecte da seguinte forma sobre o assunto:

“Above all, it is the colonization, the attempt gradually to take over one of the last spaces that has been reserved for social critique, for the questioning of authority and of the established orders, by mentalities and practices that valorise individualism above everything else, practices that establish as one of the main goals of all university activity the maximization of profit, be in the terms of university income, spin-off company share values or graduate earnings.” (Hamilakis 2004).
Alguns autores vão ainda mais longe, e denunciam como esta lógica afectou a produção de conhecimento arqueológico: o estudo de realidades pré-históricos com quadros conceptuais contemporâneos, como a maximização e eficiência de custos. (Shanks 2003; Shanks e Tilley 1987b). Se já a experiência etnográfica demonstra a falácia deste tipo de aplicações, seguramente estes esquemas farão ainda menor sentido na análise do passado. Uma alternativa seria, por exemplo, demonstrar como a materialidade arqueológica se encontra inserida no meio de processos de identidade e memória (Hamilakis 2004). O professor deve então exercer a sua autoridade na suscitação de espírito crítico e auto-reflexividade aos seus alunos; mostrar como o conhecimento e as ideias não são “a closed narrative that needs to be memorized, but something that can be negotiated, challenged, modified and rejected” (Giroux 1991 p. 508)

b) Arqueologia e património

Existe um grande debate em torno da questão da preservação e da conservação. O trabalho do estudioso do passado consiste sempre na selecção e interpretação das fontes. Este tipo de discurso reveste-se de particular importância nos dias de hoje, quando o passado se encontra em risco de destruição a larga escala pela agricultura intensiva, a construção de estradas, o turismo e a pilhagem. A escolha do que deve ser preservado reside principalmente numa questão de valor e financiamento. A legislação sobre este assunto varia grandemente ao longo do mundo. As soluções mais radicais para a conservação são demasiado dispendiosas – silicone, ar-condionado, ou mesmo o banimento de turistas. O encerramento ao público da rainha Nefertari demonstrou a eficácia deste tipo de medidas (Bahn e Renfrew 2004), mas tal torna-se insustentável quando as receitas de um país se apoiam fortemente no rendimento da sua herança histórica. A rentabilização do passado pode comportar alguns riscos, como a sua sobre-utilização turística, reconstruções erróneas e interessadas, ou mesmo o perigo de terrorismo. Porém, o assunto que mais tem preocupado a comunidade arqueológica internacional é a pilhagem e comércio ilegal de antiguidades.
O Código de Ética da Australian Archaeological Association (AAA) comporta o seguinte no seu ponto 2.3:

Members will neither engage in nor support the illicit trade in cultural heritage (AAA 2008).

O envolvimento da arqueologia com a remoção do património cultural de outros países aparentemente terminara com o final dos grandes impérios, altura em que este acto se passou a considerar eticamente condenável. Mas na realidade, o mercado ilegal de actividades encontra-se em expansão desde a auto-determinação das colónias africanas e asiáticas nos anos 60. A pilhagem não é apenas levada a cabo por membros necessitados da população indígena: de forma mais ou menos camuflada, a arqueologia encontra-se envolvida nesta actividade, através de escavações ilegais, esvaziamento de museus nacionais, e negócio com coleccionadores ocidentais assistidos por galerias e universidades (Shepherd 2002).
Nos últimos anos, um dos casos mais mediatizados relativo ao roubo de bens culturais ocorreu por ocasião da guerra do Iraque. A comunidade arqueológica revoltada insurgiu-se à vista de um cenário de pilhagem generalizada dos museus perante a impassividade das tropas invasoras. Não faltou mesmo quem sugerisse que os soldados deviam matar os saqueadores (Kennedy, cit. por Hamilakis 2003). No entanto, uma facção do WAC denunciou a hipocrisia da comunidade arqueológica em censurar a pilhagem de artefactos mas não se revoltar e até compactuar com uma invasão ilegal (um grupo de arqueólogos foi seleccionado para dar consultadoria ao exército invasor, instruindo-o sobre quais locais não deveriam ser bombardeados – entre estes, não se encontravam contemplados os concernentes à tradição árabe recente). Uma moção foi aprovada durante o WAC5, que frisava, entre outros aspectos, que “The invasion and occupation has had tragic consequences for the archaeological heritage of Iraq, but more importantly, it has resulted in death and injury for thousands, and it is bound to have detrimental long-term effects for the Iraqi people and environment” (Hamilakis 2003, p.109). Conseguiu afirmar-se uma sensibilidade diferente no seio da comunidade científica, cujo espírito se encontra bem patenteado na frase “no epic Sumerian cuneiform tablet, majestic Neo-Assyrian lamassu sculpture, or any other Mesopotamian artifact is worth a human life, be it Iraqi, American, British or other” (Deblauw, cit. por Hamilakis 2003, p.108). Isto representa o triunfo numa das maiores organizações mundiais de arqueólogos de uma posição humanística – a preocupação com o ser humano sobrepõe-se ao interesse na preservação do registo material do passado, embora não afaste de modo algum esta responsabilidade.


Muito embora a maior parte da comunidade arqueológica já tenha aceitado a indissociabilidade entre a arqueologia e a política, existe um enorme debate quanto à forma como os investigadores devem lidar com este facto. Muitos defendem que este reconhecimento pode conduzir à construção de um discurso mais correcto sobre o passado – para além de animais políticos (Kohl 1998), os arqueólogos são também investigadores interessados na melhor reconstrução do passado. Acreditam que existe uma relação entre política e arqueologia, mas que estes podem ser separados – “Archaeologists then may be able to support a particular reconstruction of the past as plausible or as the most reasonable interpretation of the data and still condemn the political uses to which it may be put” (Kohl & Tsetskhladze, cit. por Kohl 1998). Mas uma facção mais liberal defende que a ideologia política deve ser activamente abraçada pela arqueologia - “'the philosophers have only interpreted the world, in various ways; the point is to change it” (Marx e Engels, cit. por Shanks e Tilley 1987b, p.195). Os usos políticos da arqueologia podem ser os mais variados: pode ser uma ferramenta para o desenvolvimento nos países do Terceiro Mundo - “a vehicle for enhancing our quality of life and promoting development and self-reliance” (Sawunmi, cit. por Shepherd 2002 p.217), ou uma resistência contra o capitalismo – “The intellectual must ceaselessly combat his or her own class (usually petty bourgeois), itself moulded by hegemonic culture, thought and sentiment. Reason must be related to the life and situation of the researcher” (Shanks e Tilley 1987b p.201). Tal não significa que todas as pretensões sobre o passado possuem a mesma validade: através de exercícios de hermenêutica e crítica é possível evitar o perigo de nacionalismos e descartar as pretensões de criacionistas e saqueadores. O pluralismo repressivo pode ser contraposto a um pluralismo radical. O arqueólogo pode estar envolvido em actividades políticas sem que isso interfira com o seu trabalho; no entanto, o discurso político mais poderoso que produz é o seu trabalho.
A arqueologia modifica a forma como milhões de pessoas olham para o passado – suporta ideias e valores da sociedade capitalista, legitimizada por uma ênfase na tradição e longas escalas temporais: mitos de génio, individualidade, patriarcado, a natureza económica essencial da humanaidade, a universalidade e inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico como progressivo, como é natural a estabilidade social se opor às contradições, a inferioridade ou superioridade de certas formas de organização social, etc. O papel da disciplina é demonstrar que não existe inevitabilidade histórica, é obrigá-las a reflectir sobre o passado e a sua condição e mostrar-lhes como esta poderia ser diferente. É também dar-lhes um sentido de identidade. Num mundo onde o alienamento e o individualismo cerram fileiras, a noção de pertença vai-se esbatendo, mas não a sua necessidade. O esbatimento de cinzentas identidades monolíticas em favor de umas coloridas e fluidas torna o passado mais compreensível e mais útil para o presente. Se o passado conseguir encontrar modelos de significação para o presente, então estará mais próximo de concluir a sua missão social.






Conclusão



“Os boatos sobre a minha morte foram um pouco exagerados”
Mark Twain, após ver o seu obituário publicado no jornal



A morte da arqueologia foi anunciada pelos mais ferozes defensores do positivismo. “A inexistência de um bloco epistemológico comum, a impossibilidade de atingir um passado verdadeiro, a legitimação de construções «value-commited», a valorização da leitura múltipla e interactiva, onde o autor já não é dono de uma verdade que expõe, mas meio pelo qual outras ideias se geram permitiu a alguns identificar pós-processualismo com pós-arqueologia (Diniz 2003, p. 10). Esta declaração de óbito não é exclusiva da arqueologia. Também no meio científico, a relatividade de Einstein, o princípio da incerteza de Heisenberg e o teorema da incompletude de Gödel abalaram de tal forma as fundações das suas disciplinas que muitos pensaram que esta jamais seria capaz de recuperar.
Mas no fundo, a ciência não morreu. E, se as ciências exactas conseguiram sobreviver à desconstrução do positivismo, seguramente também a arqueologia o fará. Porque os argumentos considerados suicidas por parte dos investigadores mais conservadores fazem precisamente parte do que caracteriza a ciência: “a crítica constante (o que implica a recusa da tradição e da autoridade como argumentos últimos) e o controlo sistemático de erros (o que implica "blind refereeing" e, uma vez mais, abertura à crítica)” (Buescu, cit. por Murcho 2003).
O pós-processualismo abriu os horizontes da arqueologia, da mesma forma de o processualismo o fez cerca de quinze anos antes. Tal como este, foi recebido com uma grande dose de desconfiança e hostilidade por parte dos seus predecessores. Mas foi possível conceber um espaço onde permaneceram histórico-culturalistas adaptados aos novos tempos com os mais radicais proponentes da Nova Arqueologia. Os primeiros foram capaz de incorporar as premissas que lhes pareceram mais significantes no seu próprio quadro cultural.
As perspectivas futuras são optimistas. À medida que o pós-processualismo cada vez menos se pode caracterizar como um movimento reaccionário contra o seu antecessor, cada vez mais praticantes ortodoxos hibridizam o seu pensamento com propostas inovadoras. O ramo cognitivo da arqueologia processualista reconhece abertamente o profundo impacto que o pensamento pós-processual causou na sua constituição (Bahn e Renfrew 2004). Surgem cada vez mais projectos que incorporam a colaboração de diversas arqueologias com abordagens e objectivos diversos, capazes de construir visões mais complexificadas e completas do passado (Moser 2002). O impacto do pensamento político e social na arqueologia e o papel desta disciplina na sociedade foram já virtualmente aceites por todos os arqueólogos.
Neste seminário procurei fazer mais do que uma simples exposição das características do pós-processualismo: tentei mostrar a forma como este revitalizou a arqueologia, e o impacto que as suas teorias tiveram não apenas entre os seus preponentes mas também na restante comunidade. As suas premissas são de tal forma insidiosas que afectam a forma como muitos arqueólogos processuais raciocinam sem que os próprios de apercebam desse facto. O reconhecimento desta realidade e a aproximação ao pós-processualismo moderado tem provado ser um método muito produtivo e profícuo para a arqueologia. Devem abandonar-se ideias feitas e abraçar-se plenamente a reflexividade que David Clarke tanto enfatizou.
A arqueologia não está morta. Mas para sobreviver, precisa de mudar para se adaptar ao mundo, precisa de se envolver neste. “Postprocessual should not involve going into an ivory tower of abstract theory and slamming the door. The way postprocessual, in fact all archaeology, will endure is by not remaining indoors” (Hodder 1991, p.16).



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