terça-feira, 23 de dezembro de 2008

a arte



quando uma pessoa chega a uma certa idade,/
isto é, a um certo grau de amadurecimento e de experiência/
que lhe permite ver as coisas a distância e com alguma soberania,/
as várias funções começam a separar-se:/
comer, beber, dormir, defecar, copular, ler, falar, ouvir, conversar, sentir,/
emocionar-se:
/
tudo isso ocorre de forma diversificada, cada coisa em sua direcção e momento,/
tal como as folhas e os troncos das árvores se vão separando uns dos outros/
e cada qual segue a sua trajectória ou aparece no seu lugar próprio./

uma pessoa olha então à sua volta, e vê a condição desesperada dos mais novos/
tentando desapertar-se dos novelos que ainda, neles, ligam todas as coisas,/
e principalmente o crescimento doloroso das células e dos músculos,/
as vontades fortes retorcendo-se, os recortes e as superfícies colando-se,/
num espasmo interminável./

e introduzem-se dois dedos apontados nesta falha/
que distingue as idades; interpõe-se o livro, a imagem do livro apenas,/
no mais total silêncio,/
pois a palavra é já uma forma de ligação que confunde tudo./

bordam-se sobre o couro as insígnias da soberania;/
observam-se os quadros das famílias em movimento,/
com os seus bonecos, e animais, e crianças em volta,/
as linhas que se distinguem ao longe./

basta então um degrau para estabelecer o abismo./
o princípio da diferença, em que uma pessoa é soberana,/
fazendo cada coisa por sua vez, pegando no instrumento,/
segurando a taça, aperfeiçoando a lâmina:/
cada coisa na sua vez, no seu lugar./

é essa crista, que está no cimo das idades, antes do corpo/
se começar a decompor em vida, e o entendimento a desfocar,/
que constitui a loucura do Inventor, a cor, difícil de copiar,/
em que os retratistas hão-de pintá-lo para a posteridade./

com a face branca, os sapatos apontados, a mão pousada/
sobre todos os instrumentos, retratado na parte de cima/
da sua vida enobrecida pelo conhecimento, pela arte/
da separação./


voj dez. 2008 porto
imagem: Bogdan Zwir
Fonte (aut.): http://www.zwir.ru/zwir.htm

nota: a barra / marca o fim de cada verso, que se deforma ao ser inserido na postagem.

2 comentários:

Anónimo disse...

aloha!

belo texto
e a imagem é genial: o homem confiante segura a mini-gaiola vazia, enquanto real e imaginário entrecortados completam-se.

simulacros.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado.
Um abraço
V.