terça-feira, 9 de dezembro de 2008

intumescência


Só a uma cerejeira coberta de frutos brilhantes e carnudos, vermelhos na sua tonalidade prestes a rebentar de dentro de si mesma, só a uma árvore no pleno esplendor da sua gravidez, só a uma estação alta
situada na mais alta montanha, se podem comparar uns lábios.

Frutos vermelhos colocados uns ao lado dos outros, suplicando a poucos milímetros uns dos outros: misturem-nos as polpas! Desfaçam-nos o brilho, o insuportável contorno da perfeição, este desenho ardilosamente concebido para ser imagem, este desejo tornado eterno na proliferação dos frutos, no cume das árvores, na extrema necessidade das polpas se abrirem, se derramarem.
Comam-nos, desfaçam-nos, desfigurem-nos, assassinem-nos, pedem os lábios na projecção muda do seu fulgor, índices da glória, velas tensas até ao máximo sustentável das gáveas.
Meu deus, dizem os mortais que passam sob as estações assim floridas, ao lado das montanhas assim erguidas, roçando os ombros no brilho audacioso da Realidade, como vamos poder viver depois disto, como vamos sobreviver às imagens?
Custa morrer, custa desaparecer da terra da alegria, aquela onde florescem campos imensos de árvores de fruto, polpas se espalham na atmosfera, e raparigas saem de dentro de um gelado cor de rosa para dizer: olhem! aqui estamos, irredutíveis como todas as perguntas, vejam o violeta, o vermelho, o grená, vejam as cores, vejam os brilhos, vejam os lábios. sintam este ardor pronto a rebentar. esta torrente que a imagem conseguiu conter até agora à sua superfície.
As raparigas, sabe-se, são dos seres mais cruéis. Atiram para a frente a sua juventude, a sua incrível florescência. E comem gelados, devagar, como quem pinta os lábios, sempre devagar, num estranha maquilhagem que sobe sempre ao alto das mesas, mostra algo de interior, de íntimo, e no entanto é só uma superfície, um relance, uma cerejeira toda florida e toda fosforescente na sua intumescência.


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Foto: Liliana Jasmim
Fonte: http://lilianajasmim.blogspot.com/
Texto: voj porto dez. 2008

2 comentários:

Liliana Gonçalves disse...

na altura não me cruzei com o texto:(

e hoje num clik,vim aqui parar.

as cerejas são um fruto que irremediavelmente parece associado à juventude, à doçura, ao ensaio de uma entrega num sopro e também a uns lábios.

Talvez por isso na literatura abundem cerejas como metáforas.

Boa noite

e obrigado.

Vitor Oliveira Jorge disse...

eu, quando escrevi este texto, disse-lhe que ia utilizar (ou tinha utilizado) parte de uma foto do seu blogue, e até lhe perguntei se era uma foto sua, ou de si...mas a vida não nos dá tempo para nos debruçarmos com atenção, nem sobre nós próprios, nem sobre os outros. Estamos irrequietos, e isso não é apenas um estado passageiro, é o próprio modo de estar na complexa sociedade em que vivemos. Não é? E nessa irrequietude tudo nos passa à pressa,como as paisagens da janela de um comboio. Já não são as paisagens que vemos, o nosso olhar não se fixa nelas como dantes, é o próprio movimento em si, despaisado e sem sentido, o reflexo na janela da nossa trajectória,sempre irrequieta, que rejubila no seu próprio movimento para a frente, sem verdadeiro desejo de chegar seja onde for, mas impulsionado pelo próprio facto de estar em movimento.

os lábios, os frutos.natureza morta e a ironia do seu esplendor. quando a podíamos ver e a sentir,na sua centralidade e na sua paz.

as pessoas estão (nesta sociedade dita pós-moderna) estripadas desse centro, estripadas como se estripam as guelras de um peixe, belo na sua vida, belo ainda no seu estertor reluzente, mas sobre o qual desce mecânica a faca humana para o transformar em alimento.

Matamos tudo em que pousa a nossa acção e o nosso olhar.Mas nunca houve nenhum eldorado que tivéssemos perdido. Essa foi uma crença que tive quando era miúdo, e fui nostalgicamente à procura do primitivo, do pré-histórico, para afinal descobrir que era uma invenção moderna, uma caricatura de nós.