o que tem um rosto, quando nos olha? sem dúvida um enigma, o enigma do outro, do outro de mim, porque esse outro é outro para mim. presentifica-se-me todos os dias, para logo me fugir, como uma tentação traquina, rebelde.
estabelece uma distância, enche essa distância de vácuo entre ele e mim, e faz-me andar, correr, continuar. neste corredor contínuo, neste labirinto, aparecendo-me como uma promessa a espreitar por detrás da esquina seguinte. o rosto é um desejo infantil, é um apelo muito antigo, é um jogo do esconde-esconde, lembra um riso que ecoa lá longe, na meninice, num pátio vazio qualquer.
de facto, os enigmas em geral são entidades comuns; voltejam todos os dias no ar como penas de pássaros leves, e não nos dificultam a passagem, não nos impedem a progressão no espaço. habituámo-nos a circular entre enigmas, e é de crer, mesmo, que nos sejam essenciais à respiração, desde que se não acumulem subitamente na garganta desprevenida, na boca aberta por uma qualquer expressão de espanto. a contemplação fecha- os lábios, previne-nos para a experiência do inaudito.
mas certos rostos, quando nos olham, trespassam totalmente as nossas defesas, como uma espada fina, um estoque inesperado que, no fragor de uma batalha, nos entrasse verticalmente pelo crânio para só sair no abdómen, levando na ponta o cerne vermelho, o milagre microscópico que nos mantém vivos.
sabe-se bem que o rosto é o lugar da metamorfose da imagem, da sua miragem sedutora, e que já muitos se perderam, durante uma vida inteira, em deambulações constantes, numa fadiga extrema, à procura do “seu” rosto. provavelmente é esse o único sentido, o único projecto, da vida e da morte – um projecto insensato, claro, mas o único possível para nós. o problema é antigo, mil vezes glosado, mil vezes evitado; e nenhuma pessoa prudente e avisada o defronta.
o rosto é recente. dantes as pessoas tinham caras, e não perdiam tempo a olhar-se ao espelho, a repetir o erro de narciso. as caras voltavam-se para as tarefas, não para como agora para o interior de cada um, que queremos encontrar no rosto dos outros, no seu olhar parado pela fotografia.
o rosto fixo só existe como fantasma, como absoluto mal: mas, ao contrário de cristo no deserto, não conseguimos resistir à sua fascinação. talvez porque não tenhamos nenhum gólgota onde interrogar o pai, onde lhe comunicar esta pergunta terrível: “por que me abandonaste?”. estamos sós e os rostos todos acercaram-se, impedindo, ao contrário dos pólens leves e das penas que pairam na atmosfera, que possamos continuar a respirar. é por isso que o futuro se tornou tão incerto, que as pessoas vão às suas caixas mais preciosas e antigas, e, pegando na hematite fulgente, a apertam com força, procurando adquirir estigmas nas palmas abertas das mãos.
por isso predigo como vai ser o juízo final: é quando todas as imagens, passadas, presentes e futuras, se quiserem juntar aos seus enigmas, num delírio celeste de identificação total. nesse dia estaremos lá todos, assistindo à agonia dos anjos, ao seu despudor de calças arregaçadas, cada um mostrando, em descompostura, atrás, as suas duas nádegas e, à frente, os seus dois sexos.
copyright voj 2007
estabelece uma distância, enche essa distância de vácuo entre ele e mim, e faz-me andar, correr, continuar. neste corredor contínuo, neste labirinto, aparecendo-me como uma promessa a espreitar por detrás da esquina seguinte. o rosto é um desejo infantil, é um apelo muito antigo, é um jogo do esconde-esconde, lembra um riso que ecoa lá longe, na meninice, num pátio vazio qualquer.
de facto, os enigmas em geral são entidades comuns; voltejam todos os dias no ar como penas de pássaros leves, e não nos dificultam a passagem, não nos impedem a progressão no espaço. habituámo-nos a circular entre enigmas, e é de crer, mesmo, que nos sejam essenciais à respiração, desde que se não acumulem subitamente na garganta desprevenida, na boca aberta por uma qualquer expressão de espanto. a contemplação fecha- os lábios, previne-nos para a experiência do inaudito.
mas certos rostos, quando nos olham, trespassam totalmente as nossas defesas, como uma espada fina, um estoque inesperado que, no fragor de uma batalha, nos entrasse verticalmente pelo crânio para só sair no abdómen, levando na ponta o cerne vermelho, o milagre microscópico que nos mantém vivos.
sabe-se bem que o rosto é o lugar da metamorfose da imagem, da sua miragem sedutora, e que já muitos se perderam, durante uma vida inteira, em deambulações constantes, numa fadiga extrema, à procura do “seu” rosto. provavelmente é esse o único sentido, o único projecto, da vida e da morte – um projecto insensato, claro, mas o único possível para nós. o problema é antigo, mil vezes glosado, mil vezes evitado; e nenhuma pessoa prudente e avisada o defronta.
o rosto é recente. dantes as pessoas tinham caras, e não perdiam tempo a olhar-se ao espelho, a repetir o erro de narciso. as caras voltavam-se para as tarefas, não para como agora para o interior de cada um, que queremos encontrar no rosto dos outros, no seu olhar parado pela fotografia.
o rosto fixo só existe como fantasma, como absoluto mal: mas, ao contrário de cristo no deserto, não conseguimos resistir à sua fascinação. talvez porque não tenhamos nenhum gólgota onde interrogar o pai, onde lhe comunicar esta pergunta terrível: “por que me abandonaste?”. estamos sós e os rostos todos acercaram-se, impedindo, ao contrário dos pólens leves e das penas que pairam na atmosfera, que possamos continuar a respirar. é por isso que o futuro se tornou tão incerto, que as pessoas vão às suas caixas mais preciosas e antigas, e, pegando na hematite fulgente, a apertam com força, procurando adquirir estigmas nas palmas abertas das mãos.
por isso predigo como vai ser o juízo final: é quando todas as imagens, passadas, presentes e futuras, se quiserem juntar aos seus enigmas, num delírio celeste de identificação total. nesse dia estaremos lá todos, assistindo à agonia dos anjos, ao seu despudor de calças arregaçadas, cada um mostrando, em descompostura, atrás, as suas duas nádegas e, à frente, os seus dois sexos.
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