creio que os momentos do inverno que se conservam mais longamente são aqueles que nada têm a ligá-los uns aos outros: são incandescências, imagens separadas pelo que parece terem sido grandes ausências ou desfocagens, durante as quais a noção de tempo e de lugar se perdeu para nós com uma sensação de profundo prazer, de interno conforto.
momentos em que nos deixámos deslizar à superfície de um rio nocturno, desde a montanha até ao mar, rodeados de tantas gotas e bolhas de ar que nunca pudemos ver o trajecto, mesmo que se tratasse de uma noite clara.
mais tarde queremos trazer essas ficções até ao texto, aconchegando-nos a rostos puríssimos, deitados sobre almofadas enormes, enquanto lá fora o tempo parece ter parado num claustro, sob a forma de uma fonte contínua, que se não vê, mas se ouve como um fluxo que escorre para dentro de nós, e nos entorpece suavemente como o álcool no começo de uma entrega lúbrica.
lembro-me. são recordações de bares, sítios onde existe uma barra entre esta realidade e muitas outras, muitos “para-além de” que o nosso desejo incansavelmente busca. mulheres, sim, sempre elas, sempre o seu rosto obsessivamente desdobrando-se noutros rostos, como que procurando entre as muitas expressões a que seria a primordial, a portadora do completo apaziguamento, da satisfação que (no entanto sabemos bem) para ser tal, tem de continuamente nos escapar.
são cheiros, odores que de súbito nos trazem um convite, como se viessem do hálito de uma boca que já entrou em nós. por isso de facto são imperiosos, não nos deixam sequer a possibilidade de escolher. voltamos à primordial dependência, a algo que já estava aqui desde o princípio, uma suavidade de mucosas e de licores que nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma gruta cheia de musgos muito verdes, cujas paredes se ajustam a todos os contornos da epiderme.
bares, sim, lembro-me de me encostar a essas barras, milhares de vezes, auscultando o lado de lá.
o convite vinha sob a forma de uns dedos postos sobre o meu braço (eu desconhecia aquela língua, aquele hálito de fumo raro), enquanto um sorriso indicava a porta dos fundos, Esta dava para um descampado, onde tínhamos de atravessar um arame farpado e escorregar por vários corpos viscosos de répteis, até entrar numa grande câmara. aí se encontravam as mulheres à espera, em disposição circular e seios nus, de mamilos muito ponteagudos, e parecendo dizer: sim, o lugar do encontro, da magia, é aqui. e cada uma vinha, como numa sequência combinada, depositar-me na boca um pedaço de fruto já mastigado e em processo de fermentação. enquanto as restantes voltavam o rosto, e eu me embriagava pouco a pouco. era assim o começo dessas noites ilegais, porque era interdito estar ali – era a zona das mulheres, e a punição que arriscávamos era indefinida, mas temível.
já em em lisboa, dessa vez. tinham-nos indicado um bar onde as adolescentes dançavam descalças sobre as mesas em que nos sentávamos. o problema é que apenas vestiam umas mini-saias muito curtas, e por cada golo tínhamos de lhes deitar a mão, apalpando o que calhasse, conforme a intersecção dos movimentos: as nádegas muito macias, a área frontal rósea e destilando aquele suco característico, a anca onde sentiam cócegas que as faziam rir bastante. claro que isto não podia prolongar-se por muito tempo. por mim, o que mais gostava era daquele jogo de deslocar uma rapariga em peso só com uma mão colocada no seu centro, através do ar nocturno, por caminhos que já não me lembro, até ao silêncio total. a minha mão ardia, sobre aquelas ervas do fundo do mar. tudo era negro em volta, como uma paisagem de azeviche em que tivessem pousado gotas de orvalho, confundidas com os brilhos pontuais do firmamento próximo. meu deus, que geologia de princípio do mundo.
uma vez estávamos numa casa de praia, e eu folheava o “play boy” que ali existia desde o primeiro número; uma raridade bibliográfica. hoje parece-me este um símbolo da minha vida, da minha solidão. a determinada altura o casal que estava deitado em frente de mim, num sofá, mudou de posição, expondo intencionalmente o rabo da rapariga (o qual era por sinal de grande perfeição) ao meu olhar impreparado. estiveram depois bastante tempo sobre o chão em movimentos bruscos, vindo-se sucessivamente sobre as revistas espalhadas, e batendo-me descuidadamente nos pés com as cabeças, até que ele me implorou: por favor, come-a tu agora por mim, estou cansado. a rapariga, que tinha ido ao corredor apenas para esticar o traseiro para fora e se aliviar de um gás que a incomodava (não se incomodando nada de, com isso, poder acordar quem dormia), caminhou desenvolta na minha direcção. lembrei-me nesse momento de uma canção de bob dylan, “moça de uma região do norte, que em tempos foi o meu querido e verdadeiro amor”, ou algo assim, e tentei imaginar-me em greenwich village.
a verdade é que no fundo das ruas sempre me encararam dois olhos que vim a encontrar em magritte, mas num quadro onde, por acaso, a face só tem uma vista. porém é esse o olhar que desde sempre me persegue, o olhar incondicional da entrega, da identificação. sem esse olhar, tudo o resto que nos aconteça, para cá ou para lá da barra de bar, é só deboche e prostituição; e esta é uma afirmação moral, sim. é uma nostalgia do amor absoluto, que o texto tem por obrigação tentar fixar, encarando-o de frente, sem retóricas, tal como se estivesse pedindo um copo a uma gaja dessas que servem detrás das barras de bar, e não conhecem horas de dia ou de noite, vivendo suspenssa do sem-sentido absoluto, disponíveis para tudo quanto sejam as suas variantes.
até para acreditar que uma peça que se lhes oferece porque se encontrou no fundo do bolso, numas calças de uma aventura anterior, é um belo colar de pedras de azeviche que rodeiam a noite, como se fossem as estrelas que estão em volta de nossa senhora, ou que constituem o símbolo da união europeia. sério, uma moça dessas é muito crédula, e chora quando lhe dão qualquer coisa, como os indígenas recém-descobertos em áfrica, ávidos de qualquer enfeite que lhes trouxessem os navegadores.
momentos em que nos deixámos deslizar à superfície de um rio nocturno, desde a montanha até ao mar, rodeados de tantas gotas e bolhas de ar que nunca pudemos ver o trajecto, mesmo que se tratasse de uma noite clara.
mais tarde queremos trazer essas ficções até ao texto, aconchegando-nos a rostos puríssimos, deitados sobre almofadas enormes, enquanto lá fora o tempo parece ter parado num claustro, sob a forma de uma fonte contínua, que se não vê, mas se ouve como um fluxo que escorre para dentro de nós, e nos entorpece suavemente como o álcool no começo de uma entrega lúbrica.
lembro-me. são recordações de bares, sítios onde existe uma barra entre esta realidade e muitas outras, muitos “para-além de” que o nosso desejo incansavelmente busca. mulheres, sim, sempre elas, sempre o seu rosto obsessivamente desdobrando-se noutros rostos, como que procurando entre as muitas expressões a que seria a primordial, a portadora do completo apaziguamento, da satisfação que (no entanto sabemos bem) para ser tal, tem de continuamente nos escapar.
são cheiros, odores que de súbito nos trazem um convite, como se viessem do hálito de uma boca que já entrou em nós. por isso de facto são imperiosos, não nos deixam sequer a possibilidade de escolher. voltamos à primordial dependência, a algo que já estava aqui desde o princípio, uma suavidade de mucosas e de licores que nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma gruta cheia de musgos muito verdes, cujas paredes se ajustam a todos os contornos da epiderme.
bares, sim, lembro-me de me encostar a essas barras, milhares de vezes, auscultando o lado de lá.
o convite vinha sob a forma de uns dedos postos sobre o meu braço (eu desconhecia aquela língua, aquele hálito de fumo raro), enquanto um sorriso indicava a porta dos fundos, Esta dava para um descampado, onde tínhamos de atravessar um arame farpado e escorregar por vários corpos viscosos de répteis, até entrar numa grande câmara. aí se encontravam as mulheres à espera, em disposição circular e seios nus, de mamilos muito ponteagudos, e parecendo dizer: sim, o lugar do encontro, da magia, é aqui. e cada uma vinha, como numa sequência combinada, depositar-me na boca um pedaço de fruto já mastigado e em processo de fermentação. enquanto as restantes voltavam o rosto, e eu me embriagava pouco a pouco. era assim o começo dessas noites ilegais, porque era interdito estar ali – era a zona das mulheres, e a punição que arriscávamos era indefinida, mas temível.
já em em lisboa, dessa vez. tinham-nos indicado um bar onde as adolescentes dançavam descalças sobre as mesas em que nos sentávamos. o problema é que apenas vestiam umas mini-saias muito curtas, e por cada golo tínhamos de lhes deitar a mão, apalpando o que calhasse, conforme a intersecção dos movimentos: as nádegas muito macias, a área frontal rósea e destilando aquele suco característico, a anca onde sentiam cócegas que as faziam rir bastante. claro que isto não podia prolongar-se por muito tempo. por mim, o que mais gostava era daquele jogo de deslocar uma rapariga em peso só com uma mão colocada no seu centro, através do ar nocturno, por caminhos que já não me lembro, até ao silêncio total. a minha mão ardia, sobre aquelas ervas do fundo do mar. tudo era negro em volta, como uma paisagem de azeviche em que tivessem pousado gotas de orvalho, confundidas com os brilhos pontuais do firmamento próximo. meu deus, que geologia de princípio do mundo.
uma vez estávamos numa casa de praia, e eu folheava o “play boy” que ali existia desde o primeiro número; uma raridade bibliográfica. hoje parece-me este um símbolo da minha vida, da minha solidão. a determinada altura o casal que estava deitado em frente de mim, num sofá, mudou de posição, expondo intencionalmente o rabo da rapariga (o qual era por sinal de grande perfeição) ao meu olhar impreparado. estiveram depois bastante tempo sobre o chão em movimentos bruscos, vindo-se sucessivamente sobre as revistas espalhadas, e batendo-me descuidadamente nos pés com as cabeças, até que ele me implorou: por favor, come-a tu agora por mim, estou cansado. a rapariga, que tinha ido ao corredor apenas para esticar o traseiro para fora e se aliviar de um gás que a incomodava (não se incomodando nada de, com isso, poder acordar quem dormia), caminhou desenvolta na minha direcção. lembrei-me nesse momento de uma canção de bob dylan, “moça de uma região do norte, que em tempos foi o meu querido e verdadeiro amor”, ou algo assim, e tentei imaginar-me em greenwich village.
a verdade é que no fundo das ruas sempre me encararam dois olhos que vim a encontrar em magritte, mas num quadro onde, por acaso, a face só tem uma vista. porém é esse o olhar que desde sempre me persegue, o olhar incondicional da entrega, da identificação. sem esse olhar, tudo o resto que nos aconteça, para cá ou para lá da barra de bar, é só deboche e prostituição; e esta é uma afirmação moral, sim. é uma nostalgia do amor absoluto, que o texto tem por obrigação tentar fixar, encarando-o de frente, sem retóricas, tal como se estivesse pedindo um copo a uma gaja dessas que servem detrás das barras de bar, e não conhecem horas de dia ou de noite, vivendo suspenssa do sem-sentido absoluto, disponíveis para tudo quanto sejam as suas variantes.
até para acreditar que uma peça que se lhes oferece porque se encontrou no fundo do bolso, numas calças de uma aventura anterior, é um belo colar de pedras de azeviche que rodeiam a noite, como se fossem as estrelas que estão em volta de nossa senhora, ou que constituem o símbolo da união europeia. sério, uma moça dessas é muito crédula, e chora quando lhe dão qualquer coisa, como os indígenas recém-descobertos em áfrica, ávidos de qualquer enfeite que lhes trouxessem os navegadores.
copyright voj
Sem comentários:
Enviar um comentário